Monday, January 25, 2010




Desenho sem borracha

Pedro J. Bondaczuk

A nossa vida é balizada por determinados acontecimentos externos, que nada têm a ver diretamente conosco e isso ocorre, principalmente, quando eles coincidem com momentos pessoais, positivos ou negativos, que se fixam em nossa lembrança. À nossa revelia, incorporam-se, de vez, a nossas biografias, mesmo que estas jamais venham a ser escritas. Caso o sejam, tais fatos são, invariavelmente, lembrados por nossos biógrafos e associados àqueles episódios que nos dizem respeito diretamente.
Por exemplo, não consigo dissociar a destruição das torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York, ocorrida em 11 de setembro de 2001, de uma ocorrência pessoal muito sofrida e angustiante. Uma semana antes desse incrível atentado, eu havia sofrido um acidente doméstico dos mais bestas. Tive uma queda, que resultou na “trinca” da cabeça do fêmur da perna esquerda.
Como, na oportunidade, eu já não era tão novinho assim, a aflição (minha e da família) era imensa. Permaneci dois dias internado em um hospital aqui de Campinas. Os médicos queriam fazer uma operação, para colocar parafusos no osso fraturado e assim garantir sua consolidação. Contudo, eu havia tido acesso às radiografias. E estas mostravam que a trinca era muito discreta, quase que apenas um imperceptível “risquinho” na cabeça do fêmur. Opus-me, portanto, veementemente, a tal cirurgia.
Fizeram-me assinar um termo de responsabilidade (o que fiz, sem susto ou hesitação) e liberaram-me para voltar para casa. Eu teria que permanecer por algumas semanas com peso no pé, para que o osso ficasse no lugar correto e pudesse se consolidar sem problemas.
Avesso a medicamentos, suportei a dor “a seco”. E garanto que não era das mais pequenas. No dia do atentado, eu estava com a TV a cabo ligada, logo de manhã (embora não costume, e nem possa, assistir televisão nesse período), pois na noite anterior, o então prefeito de Campinas, Antonio da Costa Santos, havia sido assassinado, num caso que até hoje carece de explicações plausíveis.
A todo o momento a TV trazia flashes do velório e das investigações policiais. De repente, surgiu na telinha a imagem de um avião de passageiros chocando-se, espetacularmente, contra uma das torres gêmeas do World Trade Center. Pensei, distraído, que se tratasse de trailler de um desses tantos filmes de catástrofe, dos quais a imaginação dos produtores de Hollywood é fartíssima. Não tardou, porém, para que percebesse que a ocorrência era real.
Minutos depois, um segundo avião chocou-se com a torre que havia ficado intacta no primeiro choque. O coração veio parar na minha boca. Fui tomado de horror com o que estava acontecendo e com as notícias complementares dando conta de que o Pentágono também havia sido parcialmente destruído e de que uma nova aeronave se dirigia a Washington, provavelmente para arrasar a Casa Branca.
O trauma completou-se quando as duas torres gêmeas vieram abaixo, num turbilhão de poeira e de fumaça, como se fossem frágil castelo de cartas. Desde então, associo, em meu subconsciente, até automaticamente, os dois fatos: a dor que sentia no momento em decorrência da fratura e o desmoronamento do World Trade Center.
Recuperei-me por completo do acidente sem que ficasse nenhuma seqüela. Mas sempre que penso num desses dois fatos, o outro vem, imediatamente, à memória. Embora sem a mínima relação um com o outro, ambos ficaram, para sempre, associados um ao outro em minha lembrança.
Felizmente, esse tipo de associação também ocorre com eventos positivos. Por exemplo, recebi o sim, da minha primeira namorada (oficial), à minha proposta de namoro, no dia exato da inauguração de Brasília, ou seja, em 21 de abril de 1960. O fato (para mim, na época, dos mais auspiciosos), ocorreu na Fonte Sônia, em Valinhos, onde a escola em que estudava fazia piquenique nesse tão aprazível local. A declaração (e o conseqüente sim) ocorreram no interior de um barco, no qual ambos navegávamos, numa espécie de lago artificial ali existente. Romântico, não é mesmo?
O evento vai completar, em 2010, meio século, assim como este momento marcante em minha vida. Ambas as ocorrências estão indelevelmente associadas em minhas lembranças, sem ter, contudo, a mínima relação uma com a outra.
Brasília, aliás, tem importância muito especial para mim. Meu saudoso pai, que era mestre de obras, participou da epopéia que foi a sua construção. Há, pois, muito da participação dos Bondaczuk na sua existência. Sinto que a cidade é um pouco minha também (embora, claro, não o seja).
Pensando em tudo isso, concluo, como fez Millôr Fernandes (êta sujeitinho inteligente!): “Viver é desenhar sem borracha”. E não é?!! É verdade que não podemos apagar os erros que cometemos, os sofrimentos que tivemos, os fracassos que nos abateram etc. Em contrapartida, porém, ninguém pode, igualmente, suprimir, como num passe de maligna mágica, as experiências gratificantes e inesquecíveis pelas quais passamos, que se tornam nosso mais precioso patrimônio pessoal enquanto tivermos um sopro que seja de vida.



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