O anjo da perna torta
Pedro J. Bondaczuk
O futebol, por suas características peculiares, é um dos esportes que mais se prestam à Literatura. Nos pouco mais de noventa minutos em que se desenvolve uma disputa, ocorrem dramas, comédias, tragédias etc. presenciadas, muitas vezes, por multidões que chegam a equivaler à toda a população de uma cidade de porte médio. E não somente o jogo, como tudo o que o cerca, antes e depois, são dignos das mais brilhantes penas e podem gerar grandes romances, contos e novelas. Mas o gênero a que o futebol mais se presta é a poesia.
Grandes ídolos do passado tiveram seus feitos exaltados e imortalizados por grandes poetas, que os chegaram, até, a mitificar. Poucos jogadores, no entanto, inspiraram mais escritores do que Manoel Francisco dos Santos. Dito assim, expondo seu nome de batismo a seco, poucos associam-no a um dos grandes gênios dos estádios, que encantaram e alegraram multidões, tanto a ponto de ser alcunhado de “A alegria do povo”. O leitor inteligente já percebeu que me refiro a Garrincha, ou ao “Mané das Pernas Tortas”.
Poucos ídolos foram mais reverenciados nos gramados e, simultaneamente. tiveram a vida real mais dramática e sofrida, do que esse fenômeno.. Esse homem, cujo nome consta em todas as relações dos mais talentosos craques do mundo de todos os tempos, morreu pobre, esquecido, abandonado e na semi-indigência. Não é esse aspecto, porém, que quero enfocar. É o do mito, que encantou multidões, recebeu homenagens e mais homenagens post-mortem e inspirou centenas dos nossos melhores poetas.
Em rápida pesquisa na internet, localizei tantos poemas que lhe foram dedicados que, se reunidos, comporiam toda uma coleção de antologias e não somente um único volume. Separtei, um tanto quanto a esmo, as produções que mais me agradaram (das que li, claro, pois muitas e muitas e muitas ficaram por ler) e lhes trago, para exemplificar o quanto o futebol e, principalmente, um de seus maiores mitos, tende a andar de mãos dadas com a literatura de boa qualidade.
O primeiro poema que partilho com vocês é de Marco Polo Guimarães, intitula-se, simplesmente, “Garrincha”, e diz: “ele tinha a perna torta/perna troncha, distorcida/perna errada, perna virada/invertida, dobrada, partida//era como fosse uma perna/por uma bala atingida/mas a bala que é a morte/ele a transformara em vida//e virava a bala em bala/de chupar multicolorida/ou virava a bala em bola/elétrica, trica, divertida”. Gostaram? Eu gostei!
Outro poema, este de Aníbal Beça, que o poeta dedicou ao amigo Antonio Carlos Secchin, tem este título comprido, mas que lhe cabe a caráter: “Celebrando Garrincha, anto inventor da ginga”. Diz: “Frente a frente/quatro colunas/de dois templos em ebulição e/raios arqueados/oscilam/ossos/músculos/nervos/pernas em balanço://arquitetura móvel/para o pêndulo de sur-/presa./Não se sabe/ao certo/- dono de um mundo em rotação/verde/rolado no plano pleno de desejos - /a direção/daquele equilibrando a esfera/a fera/perseguida/se para a direita/ou/para a esquerda/se para trás/ou pelo vão/que se arre-/ganha/à frente/(abóbada de igreja livre/para a passagem do andor/com seu santo rotundo)/No frêmito feroz/olhos vivos e/lentes onduladas/se congelam no cristal/da ânsia espectável/Súbito/pára/e/dispara/navegante da luz/em direção ao corpo/só-/lido/num fio evanescente/de malabarismo alumbrado/o espectro do clown/Parte/com ela/a esfera/a fera//aos olhos de espanto/de feras de outras esferas/Vai/Não vai/Foi”.
Poetas de maior projeção literária também se inspiraram em Garrincha e nos legaram excelentes produções. Um deles foi o já saudoso jornalista Armando Nogueira, recentemente falecido, que além de amante da arte e das artimanhas do Mané da Pena Torta, era botafoguense ferrenho, time que revelou e projetou esse gênio do futebol. Compôs-lhe, entre tantos e tantos textos, este poema intitulado “A flor e a bola”, tão bom, que foi afixado em um banner que fica junto ao busto de “Anjo de Perna Torta” em frente ao Estádio do Engenhão. Mestre Armando diz: “ "Um dia, um poeta entreabriu as pétalas de uma rosa brandante./No íntimo da flor encontrou, vislumbrado, um verão inteiro./Eu também quis ver de perto a alma de outro devaneio, a bola./ Despetalei os gomos, um por um, e encontrei um drible de Garrincha". Como se vê, é um gênio das letras louvando um gênio da bola.
O poeta Sérgio de Castro Pinto também se inspirou nesse craque, com apelido de pássaro. São dele estes versos, escritos todos em letras minúsculas, embora o sentimento que os inspirou seja maiúsculo, extraordinário e grandioso, intitulado “Garrincha”:: “quando garrincha dribla, fica./o adversário retém/na memória/a imagem da bola/entre os parênteses/das pernas tortas./quando garrincha dribla,/fica o adversário/crava na memória/a imagem da bola/qual uma seta/no retesado arco/das pernas tortas/quando garrincha dribla,/fica o adversário/pra contar a história/de uma camisa/cujo sete às costas/conduzia a bola/qual uma seta/no retesado arco/das pernas tortas”.
Mas ainda não acabei. Trago, para o seu deleite, paciente leitor, um poema do nosso sau8doso e sempre lembrado poetinha (que falta que você nos faz!), Vinícius de Moraes, cujo título é o mesmo destas considerações, ou seja, “O anjo de pernas tortas”, e que diz: “A um passe de Didi, Garrincha avança/colado o couro aos pés, o olhar atento,/dribla um, dribla dois, depois descansa/como a medir o lance de momento.//Vem-lhe o pressentimento, ele se lança,/mais rápido que o próprio pensamento/dribla mais um, mais dois, a bola trança/feliz entre seus pés – em pé de vento!//Num só transporte, a multidão contrita/em ato de morte, se levanta e grita/seu uníssono canto de esperança.//Garrincha, o anjo, escuta e atende: Gooooool!/É pura imagem em G que chuta um O/dentro da meta em L. É pura dança”.
Antes de encerrar, quero meter, também, minha colher de pau nesse angu. Como os citados (e as centenas que não citei por falta de espaço), igualmente me inspirei nesse gênio da bola e escrevi um poema para Garrincha, em uma época que, hoje sei, foi a mais criativa e fértil da minha vida. Era um período em que eu não tinha nenhuma preocupação formal. O que queria era escrever, escrever e escrever. E, de fato, escrevi, e muito.
O poema que partilho com vocês foi escrito em 22 de abril de 1963. Inspirou-se na performance do Maná na Copa do Mundo de 1962, no Chile, quando, face à ausência de Pelé, comandou a Seleção Brasileira na conquista do bicampeonato mundial. Seu título é “Guerreiro alado” e diz: “Garrincha, pequeno pássaro encantado,/alado guerreiro, ingênuo e inocente,/que faz desfilar, no presente, galhardia,/e humor e graça, as sementes do amanhã,/e que alimenta nossa fragílima fantasia/no palco grandioso do Maracanã.// Mameluco cavaleiro do sonho,/de auriverde manto sagrado,/corcel veloz, galopa e voa/a felicidade perfeita dos simples/nos gramados da América e Europa.//Pés alados. Pés de anjo. Pés calçados/de couro e poesia, de poder e magia,/na luta heróica, com espírito lúdico,/faz acenos familiares à glória/e, em danças, coreografias, corrupios,/bêbedo de luz, sorve o vinho da vitória.//Líder nato, sem bazófia ou arrogância,/dançando, com dez exímios bailarinos,/tece, com os pés, o painel encantado da vida/no teatro, dramática arena dos bravos,/do Estádio Nacional de Santiago.//A fama é tênue e pesa toneladas./Heróis despencam no esquecimento/vítimas da ingratidão covarde e infeliz./Mas Garrincha voa, flutua, ganha alento/e, com arte, com magia e encantamento/desperta, orgulha e enaltece um país”.
Certamente, voltarei ao assunto.
Pedro J. Bondaczuk
O futebol, por suas características peculiares, é um dos esportes que mais se prestam à Literatura. Nos pouco mais de noventa minutos em que se desenvolve uma disputa, ocorrem dramas, comédias, tragédias etc. presenciadas, muitas vezes, por multidões que chegam a equivaler à toda a população de uma cidade de porte médio. E não somente o jogo, como tudo o que o cerca, antes e depois, são dignos das mais brilhantes penas e podem gerar grandes romances, contos e novelas. Mas o gênero a que o futebol mais se presta é a poesia.
Grandes ídolos do passado tiveram seus feitos exaltados e imortalizados por grandes poetas, que os chegaram, até, a mitificar. Poucos jogadores, no entanto, inspiraram mais escritores do que Manoel Francisco dos Santos. Dito assim, expondo seu nome de batismo a seco, poucos associam-no a um dos grandes gênios dos estádios, que encantaram e alegraram multidões, tanto a ponto de ser alcunhado de “A alegria do povo”. O leitor inteligente já percebeu que me refiro a Garrincha, ou ao “Mané das Pernas Tortas”.
Poucos ídolos foram mais reverenciados nos gramados e, simultaneamente. tiveram a vida real mais dramática e sofrida, do que esse fenômeno.. Esse homem, cujo nome consta em todas as relações dos mais talentosos craques do mundo de todos os tempos, morreu pobre, esquecido, abandonado e na semi-indigência. Não é esse aspecto, porém, que quero enfocar. É o do mito, que encantou multidões, recebeu homenagens e mais homenagens post-mortem e inspirou centenas dos nossos melhores poetas.
Em rápida pesquisa na internet, localizei tantos poemas que lhe foram dedicados que, se reunidos, comporiam toda uma coleção de antologias e não somente um único volume. Separtei, um tanto quanto a esmo, as produções que mais me agradaram (das que li, claro, pois muitas e muitas e muitas ficaram por ler) e lhes trago, para exemplificar o quanto o futebol e, principalmente, um de seus maiores mitos, tende a andar de mãos dadas com a literatura de boa qualidade.
O primeiro poema que partilho com vocês é de Marco Polo Guimarães, intitula-se, simplesmente, “Garrincha”, e diz: “ele tinha a perna torta/perna troncha, distorcida/perna errada, perna virada/invertida, dobrada, partida//era como fosse uma perna/por uma bala atingida/mas a bala que é a morte/ele a transformara em vida//e virava a bala em bala/de chupar multicolorida/ou virava a bala em bola/elétrica, trica, divertida”. Gostaram? Eu gostei!
Outro poema, este de Aníbal Beça, que o poeta dedicou ao amigo Antonio Carlos Secchin, tem este título comprido, mas que lhe cabe a caráter: “Celebrando Garrincha, anto inventor da ginga”. Diz: “Frente a frente/quatro colunas/de dois templos em ebulição e/raios arqueados/oscilam/ossos/músculos/nervos/pernas em balanço://arquitetura móvel/para o pêndulo de sur-/presa./Não se sabe/ao certo/- dono de um mundo em rotação/verde/rolado no plano pleno de desejos - /a direção/daquele equilibrando a esfera/a fera/perseguida/se para a direita/ou/para a esquerda/se para trás/ou pelo vão/que se arre-/ganha/à frente/(abóbada de igreja livre/para a passagem do andor/com seu santo rotundo)/No frêmito feroz/olhos vivos e/lentes onduladas/se congelam no cristal/da ânsia espectável/Súbito/pára/e/dispara/navegante da luz/em direção ao corpo/só-/lido/num fio evanescente/de malabarismo alumbrado/o espectro do clown/Parte/com ela/a esfera/a fera//aos olhos de espanto/de feras de outras esferas/Vai/Não vai/Foi”.
Poetas de maior projeção literária também se inspiraram em Garrincha e nos legaram excelentes produções. Um deles foi o já saudoso jornalista Armando Nogueira, recentemente falecido, que além de amante da arte e das artimanhas do Mané da Pena Torta, era botafoguense ferrenho, time que revelou e projetou esse gênio do futebol. Compôs-lhe, entre tantos e tantos textos, este poema intitulado “A flor e a bola”, tão bom, que foi afixado em um banner que fica junto ao busto de “Anjo de Perna Torta” em frente ao Estádio do Engenhão. Mestre Armando diz: “ "Um dia, um poeta entreabriu as pétalas de uma rosa brandante./No íntimo da flor encontrou, vislumbrado, um verão inteiro./Eu também quis ver de perto a alma de outro devaneio, a bola./ Despetalei os gomos, um por um, e encontrei um drible de Garrincha". Como se vê, é um gênio das letras louvando um gênio da bola.
O poeta Sérgio de Castro Pinto também se inspirou nesse craque, com apelido de pássaro. São dele estes versos, escritos todos em letras minúsculas, embora o sentimento que os inspirou seja maiúsculo, extraordinário e grandioso, intitulado “Garrincha”:: “quando garrincha dribla, fica./o adversário retém/na memória/a imagem da bola/entre os parênteses/das pernas tortas./quando garrincha dribla,/fica o adversário/crava na memória/a imagem da bola/qual uma seta/no retesado arco/das pernas tortas/quando garrincha dribla,/fica o adversário/pra contar a história/de uma camisa/cujo sete às costas/conduzia a bola/qual uma seta/no retesado arco/das pernas tortas”.
Mas ainda não acabei. Trago, para o seu deleite, paciente leitor, um poema do nosso sau8doso e sempre lembrado poetinha (que falta que você nos faz!), Vinícius de Moraes, cujo título é o mesmo destas considerações, ou seja, “O anjo de pernas tortas”, e que diz: “A um passe de Didi, Garrincha avança/colado o couro aos pés, o olhar atento,/dribla um, dribla dois, depois descansa/como a medir o lance de momento.//Vem-lhe o pressentimento, ele se lança,/mais rápido que o próprio pensamento/dribla mais um, mais dois, a bola trança/feliz entre seus pés – em pé de vento!//Num só transporte, a multidão contrita/em ato de morte, se levanta e grita/seu uníssono canto de esperança.//Garrincha, o anjo, escuta e atende: Gooooool!/É pura imagem em G que chuta um O/dentro da meta em L. É pura dança”.
Antes de encerrar, quero meter, também, minha colher de pau nesse angu. Como os citados (e as centenas que não citei por falta de espaço), igualmente me inspirei nesse gênio da bola e escrevi um poema para Garrincha, em uma época que, hoje sei, foi a mais criativa e fértil da minha vida. Era um período em que eu não tinha nenhuma preocupação formal. O que queria era escrever, escrever e escrever. E, de fato, escrevi, e muito.
O poema que partilho com vocês foi escrito em 22 de abril de 1963. Inspirou-se na performance do Maná na Copa do Mundo de 1962, no Chile, quando, face à ausência de Pelé, comandou a Seleção Brasileira na conquista do bicampeonato mundial. Seu título é “Guerreiro alado” e diz: “Garrincha, pequeno pássaro encantado,/alado guerreiro, ingênuo e inocente,/que faz desfilar, no presente, galhardia,/e humor e graça, as sementes do amanhã,/e que alimenta nossa fragílima fantasia/no palco grandioso do Maracanã.// Mameluco cavaleiro do sonho,/de auriverde manto sagrado,/corcel veloz, galopa e voa/a felicidade perfeita dos simples/nos gramados da América e Europa.//Pés alados. Pés de anjo. Pés calçados/de couro e poesia, de poder e magia,/na luta heróica, com espírito lúdico,/faz acenos familiares à glória/e, em danças, coreografias, corrupios,/bêbedo de luz, sorve o vinho da vitória.//Líder nato, sem bazófia ou arrogância,/dançando, com dez exímios bailarinos,/tece, com os pés, o painel encantado da vida/no teatro, dramática arena dos bravos,/do Estádio Nacional de Santiago.//A fama é tênue e pesa toneladas./Heróis despencam no esquecimento/vítimas da ingratidão covarde e infeliz./Mas Garrincha voa, flutua, ganha alento/e, com arte, com magia e encantamento/desperta, orgulha e enaltece um país”.
Certamente, voltarei ao assunto.
No comments:
Post a Comment