Lembranças de um fracasso – VI
Pedro J. Bondaczuk
A algazarra era infernal naquele 16 de julho de 1950, antes do início do jogo decisivo do Brasil contra o Uruguai, num Maracanã hiper-lotado. O público oficial divulgado foi de 173.850 pagantes, mas a maioria jura que havia muito mais torcedores presentes. Os mais exagerados chegaram a estimar em 210 mil pessoas. Menos, gente, menos...
O clima de euforia e de empolgação tomava conta do Brasil inteiro, do Oiapoque ao Chuí. Na casa do Zé Gordo, onde eu ouviria o jogo, a batucada havia começado cedo. Nós, crianças (nunca é demais repetir que eu tinha sete anos e meio na ocasião) brincávamos do que era comum na época antes de partidas de futebol. Cada um de nós assumia o papel de algum jogador da Seleção (de mentirinha, claro). “Eu sou o Ademir”, gritou antes de todos o Neuclair. “E eu sou o Zizinho!”, gritamos, simultaneamente, eu e o Eduardo, um garoto um ano mais velho que eu. “Falei primeiro!”, garanti. “Não, fui eu!”, retrucou meu companheiro.
Os colegas foram chamados a desempatar a controvérsia e deram razão ao meu competidor. Relutei em aceitar a decisão, mas acabei gritando, de surpresa, antes que outro o fizesse: “Então sou o Friaça!”. E fiz excelente escolha, pois o ponta direita faria um dos gols nesse jogo prestes a começar.
Subitamente, um adulto gritou: “Silêncio! A partida começou!”. Cessou o burburinho. Todos nós, meninos, nos calamos, reservando energia para gritarmos o primeiro gol do Brasil que tínhamos certeza de que não tardaria. E, logicamente, para as comemorações do título que prometiam não apenas varar a madrugada, mas se estender por dias, por semanas ou por meses, até.
Assim que o árbitro inglês, Mister George Reader, apitou o início da partida, havia imensa carga de tensão no ar. Não era de medo, certamente, mas de ansiedade pelo momento de soltar o grito de gol e, principalmente, o de “é campeão!”
Empurrada pelo maior público que já se fez presente em qualquer tipo de espetáculo – e não somente de futebol – em qualquer tempo e lugar, a seleção partiu para o ataque. Não precisava, pois jogava pelo simples empate. Contudo, se mandou toda para a frente. Martelou, martelou e martelou, perdeu chances atrás de chances e nada do gol sair. E assim terminou o primeiro tempo. Ou seja, sem que o placar fosse mexido.
Agora faltavam, apenas, 45 minutos para a consagração. A batucada, na casa do Zé Gordo, recomeçou. Muitos dos adultos presentes já estavam pra lá de Marrakesh, ou seja, visivelmente embriagados, não dizendo coisa com coisa.
Nós, crianças, fazíamos apostas, valendo bolinhas de gude, peões e principalmente figurinhas, sobre quem marcaria o gol da vitória brasileira. Eu ganhei. Friaça marcou. Contudo, não seria o da vitória como desejava que fosse. Naquele momento, porém, isso nem passava pela nossa cabeça. Seu gol foi o que colocou um vidro inteiro de pimenta malagueta no “banquete”, que em vez de satisfação, causou, no fim das contas, indigestão e dor de barriga.
A abertura do placar ocorreu aos 13 minutos do segundo tempo. Como já disse, foi Friaça que marcou. Daí, até os 22, ou seja, por nove minutos consecutivos, ninguém mais na sala da casa do Zé Gordo ouviu a voz do locutor. O samba comeu solto a todo o vapor, de um lado; nós, a meninada, gritávamos do outro e a algazarra era geral. Desconfio que o barulho poderia ser ouvido até da Lua.
Até que alguém, que estava com o ouvido bem colado ao rádio, gritou: “Silêncio! Os uruguaios empataram!” Foi recepcionado, claro, com uma vaia geral. Ninguém acreditou. Mas outras pessoas, não tão confiantes quanto nós, foram conferir. De fato, era verdade. Aos 22 minutos do segundo tempo, Ghiggia venceu o zagueiro Bigode na corrida, tocou a bola para Schiafino, que a mandou para as nossas redes.
Aos poucos, um silêncio tenso foi se instalando na sala. A batucada cessou. Nenhum de nós ousava dar um pio. Lembro-me, como se fosse hoje, que pensei, de fato, no pior. Seria intuição? Provavelmente sim. “E se eles fizerem como fizeram contra a Suécia e virarem o jogo?”, pensei, aflito. “Não, não vai acontecer”, disse para mim mesmo, mas duvidando das minhas palavras.
E... Outra vez Ghiggia venceu Bigode na corrida e chutou sem ângulo, parece que apenas para se livrar da bola (foi a impressão que tive). Mil chutes daquele local, estou plenamente convicto, iriam ou pela linha de fundo ou bateriam na trave, quando muito. Mas aquele... Caprichosamente entrou no gol brasileiro, sem que o goleiro Barbosa nada pudesse fazer para evitar.
Todos culparam o nosso guarda-metas (que por sinal, nasceu aqui em Campinas), atribuindo-lhe toda a responsabilidade pela perda do título. Tremenda burrice fazer isso. Se houve alguém que nada poderia fazer no lance, pela rapidez com que ele ocorreu, foi o goleirão.
O gol da virada uruguaia aconteceu aos 35 minutos do segundo tempo. O Brasil tinha dez para reagir, mas os nervos não deixaram. Quando Mister Reader soou o apito, encerrando o jogo e a Copa do Mundo, estava consumado o que passou a ser conhecido como “!Maracanazo”. Atônitos, não acreditando no que havia acontecido, os brasileiros, do Oiapoque ao Chuí, se calaram. Reinava, em todo o País, um incômodo e doloroso “silêncio ensurdecedor” que me incomoda até hoje, sessenta anos depois.
Pedro J. Bondaczuk
A algazarra era infernal naquele 16 de julho de 1950, antes do início do jogo decisivo do Brasil contra o Uruguai, num Maracanã hiper-lotado. O público oficial divulgado foi de 173.850 pagantes, mas a maioria jura que havia muito mais torcedores presentes. Os mais exagerados chegaram a estimar em 210 mil pessoas. Menos, gente, menos...
O clima de euforia e de empolgação tomava conta do Brasil inteiro, do Oiapoque ao Chuí. Na casa do Zé Gordo, onde eu ouviria o jogo, a batucada havia começado cedo. Nós, crianças (nunca é demais repetir que eu tinha sete anos e meio na ocasião) brincávamos do que era comum na época antes de partidas de futebol. Cada um de nós assumia o papel de algum jogador da Seleção (de mentirinha, claro). “Eu sou o Ademir”, gritou antes de todos o Neuclair. “E eu sou o Zizinho!”, gritamos, simultaneamente, eu e o Eduardo, um garoto um ano mais velho que eu. “Falei primeiro!”, garanti. “Não, fui eu!”, retrucou meu companheiro.
Os colegas foram chamados a desempatar a controvérsia e deram razão ao meu competidor. Relutei em aceitar a decisão, mas acabei gritando, de surpresa, antes que outro o fizesse: “Então sou o Friaça!”. E fiz excelente escolha, pois o ponta direita faria um dos gols nesse jogo prestes a começar.
Subitamente, um adulto gritou: “Silêncio! A partida começou!”. Cessou o burburinho. Todos nós, meninos, nos calamos, reservando energia para gritarmos o primeiro gol do Brasil que tínhamos certeza de que não tardaria. E, logicamente, para as comemorações do título que prometiam não apenas varar a madrugada, mas se estender por dias, por semanas ou por meses, até.
Assim que o árbitro inglês, Mister George Reader, apitou o início da partida, havia imensa carga de tensão no ar. Não era de medo, certamente, mas de ansiedade pelo momento de soltar o grito de gol e, principalmente, o de “é campeão!”
Empurrada pelo maior público que já se fez presente em qualquer tipo de espetáculo – e não somente de futebol – em qualquer tempo e lugar, a seleção partiu para o ataque. Não precisava, pois jogava pelo simples empate. Contudo, se mandou toda para a frente. Martelou, martelou e martelou, perdeu chances atrás de chances e nada do gol sair. E assim terminou o primeiro tempo. Ou seja, sem que o placar fosse mexido.
Agora faltavam, apenas, 45 minutos para a consagração. A batucada, na casa do Zé Gordo, recomeçou. Muitos dos adultos presentes já estavam pra lá de Marrakesh, ou seja, visivelmente embriagados, não dizendo coisa com coisa.
Nós, crianças, fazíamos apostas, valendo bolinhas de gude, peões e principalmente figurinhas, sobre quem marcaria o gol da vitória brasileira. Eu ganhei. Friaça marcou. Contudo, não seria o da vitória como desejava que fosse. Naquele momento, porém, isso nem passava pela nossa cabeça. Seu gol foi o que colocou um vidro inteiro de pimenta malagueta no “banquete”, que em vez de satisfação, causou, no fim das contas, indigestão e dor de barriga.
A abertura do placar ocorreu aos 13 minutos do segundo tempo. Como já disse, foi Friaça que marcou. Daí, até os 22, ou seja, por nove minutos consecutivos, ninguém mais na sala da casa do Zé Gordo ouviu a voz do locutor. O samba comeu solto a todo o vapor, de um lado; nós, a meninada, gritávamos do outro e a algazarra era geral. Desconfio que o barulho poderia ser ouvido até da Lua.
Até que alguém, que estava com o ouvido bem colado ao rádio, gritou: “Silêncio! Os uruguaios empataram!” Foi recepcionado, claro, com uma vaia geral. Ninguém acreditou. Mas outras pessoas, não tão confiantes quanto nós, foram conferir. De fato, era verdade. Aos 22 minutos do segundo tempo, Ghiggia venceu o zagueiro Bigode na corrida, tocou a bola para Schiafino, que a mandou para as nossas redes.
Aos poucos, um silêncio tenso foi se instalando na sala. A batucada cessou. Nenhum de nós ousava dar um pio. Lembro-me, como se fosse hoje, que pensei, de fato, no pior. Seria intuição? Provavelmente sim. “E se eles fizerem como fizeram contra a Suécia e virarem o jogo?”, pensei, aflito. “Não, não vai acontecer”, disse para mim mesmo, mas duvidando das minhas palavras.
E... Outra vez Ghiggia venceu Bigode na corrida e chutou sem ângulo, parece que apenas para se livrar da bola (foi a impressão que tive). Mil chutes daquele local, estou plenamente convicto, iriam ou pela linha de fundo ou bateriam na trave, quando muito. Mas aquele... Caprichosamente entrou no gol brasileiro, sem que o goleiro Barbosa nada pudesse fazer para evitar.
Todos culparam o nosso guarda-metas (que por sinal, nasceu aqui em Campinas), atribuindo-lhe toda a responsabilidade pela perda do título. Tremenda burrice fazer isso. Se houve alguém que nada poderia fazer no lance, pela rapidez com que ele ocorreu, foi o goleirão.
O gol da virada uruguaia aconteceu aos 35 minutos do segundo tempo. O Brasil tinha dez para reagir, mas os nervos não deixaram. Quando Mister Reader soou o apito, encerrando o jogo e a Copa do Mundo, estava consumado o que passou a ser conhecido como “!Maracanazo”. Atônitos, não acreditando no que havia acontecido, os brasileiros, do Oiapoque ao Chuí, se calaram. Reinava, em todo o País, um incômodo e doloroso “silêncio ensurdecedor” que me incomoda até hoje, sessenta anos depois.
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