Monday, November 16, 2009




Um toque de letra

Pedro J. Bondaczuk


A literatura, que se propõe a ser um ato de criação em cima da realidade, ou que pelo menos tem, em geral, nela seu parâmetro de verossimilhança, peca por não abordar, com a freqüência desejável, um dos fenômenos de massa mais representativos do mundo atual: o futebol.
Aliás, não é só ela. À exceção do cinema, e da música popular, que vez por outra traz canções homenageando, ou pelo menos citando, um clube ou outro ou um ídolo aqui, outro ali, outras formas de arte raramente exploram esse filão quase que inesgotável.
Contudo, o tema presta-se, e muito bem, a diversas expressões artísticas. Por exemplo, que riqueza plástica o pintor e o escultor deixam de aproveitar, nos movimentos dos jogadores, no momento do chute, na explosão do gol e até numa jogada de bola dividida!
Para a dança, então, é um campo vasto. Basta que os coreógrafos deixem a imaginação trabalhar à solta. Muitos poderão me contestar por abordar, neste espaço nobre da internet, destinado à opinião e à reflexão, um assunto considerado “não sério”. Afinal, podem argumentar, trata-se de um jogo, de um espetáculo, de um lazer, de uma forma de diversão. Mas isso não é importante?! Depende do critério adotado para definir “importância”.
Raros são os contos, em nossa literatura, que exploram o futebol. Conheço dois ou três em que a modalidade é enfocada, aliás, subsidiariamente, não como tema principal. Poemas só são compostos e divulgados em épocas de Copa do Mundo, isto quando são. Em 2002, a “Folha de S. Paulo” publicou (não me lembro se na editoria de Esportes, ou se na Folha Ilustrada ou se no caderno Mais), alguns textos no gênero, muito bons, por sinal.
Mas foi só. Passada essa competição internacional, que mobiliza em torno de dois bilhões de pessoas ou mais (dizem que desperta a atenção de metade da humanidade), o assunto é prontamente esquecido, embora freqüente, com enorme assiduidade, nosso cotidiano. João Cabral de Mello Neto foi um dos raros poetas que incursionaram pelo tema. Compôs um antológico poema em homenagem ao supercraque Ademir da Guia.
Romance, que eu saiba, não existe nenhum que se passe num clube ou que envolva jogador, diretor ou treinador de algum time. Isso sem falar no torcedor, em especial nos integrantes das torcidas organizadas, que vivem freqüentando manchetes policiais pelas estripulias que causam, notadamente nas grandes cidades, em dias de grandes clássicos. Pode até ser que existam, mas são tão poucos, e tão mal divulgados, que pouca gente conhece. Eu, pelo menos, não conheço.
E por que esse preconceito, ou, pelo menos, omissão? Não se trata de uma realidade, onipresente, do mundo contemporâneo? Não é uma atividade que movimenta somas de dinheiro incríveis e que desperta tantas e tão contraditórias paixões mundo afora?!
No caso dos cronistas, até que se entende. E no dos articulistas, entende-se mais ainda. Nestes tempos bicudos, onde faltam líderes e abundam os canalhas e os corruptos, as pessoas usam o futebol como mera válvula de escape das tensões do dia-a-dia, como uma forma de catarse coletiva, uma espécie de fuga da realidade. O pior é que acabam se fanatizando. Muitos encaram, por exemplo, a paixão pelos seus times, como uma religião. Aliás, dão mais importância a eles do que às denominações religiosas a que dizem pertencer. O que fazer? O errado, no caso, não é, evidentemente, o futebol, concordam?
Gosto pelo esporte, aliás, muitos escritores têm e tiveram e sempre fizeram questão de não esconder de ninguém. Foram os casos, para citar apenas dois, de Mário de Andrade e de Nelson Rodrigues (especialmente este último, torcedor ferrenho e apaixonado do Fluminense do Rio de Janeiro). Mas poderíamos mencionar muitos e muitos outros que, no entanto, ficaram nos devendo obras-primas tendo o esporte bretão (que se diz nascido no século XIX na Grã-Bretanha) como tema.
Aqui em Campinas, onde resido, se algum cronista quiser publicar, nas colunas dos jornais da cidade, fora da editoria de Esportes, algum texto leve, abordando Ponte Preta e Guarani, por exemplo, dificilmente vai conseguir. E caso a crônica seja publicada, será, certamente, com reservas. Afinal, o assunto não é considerado “sério”. E, no entanto, raros são os campineiros, que gostem de esporte, que não torçam para um desses dois times. A mesma coisa ocorre em outras grandes cidades em relação aos seus grandes clubes. Preconceito estranho e, sobretudo, bobo, não é verdade?

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