Friday, November 20, 2009




No princípio era o verbo...

Pedro J. Bondaczuk


O meu mundo é o das palavras. Pesquiso-as, sorvo-as, bebo-as, uso-as, faço delas minha voz, minha vez, minha forma de ser e de dizer presente diante dos meus pares. São meu instrumental, meu ar, minha luz intelectual, o alimento do meu espírito, a matéria-prima dos meus sonhos, dos meus versos, das minhas elucubrações. São a minha forma de ganhar o pão sagrado e indispensável de cada dia. São meu credo, meu objetivo, minha alegria e minha preocupação. Desde que surgiu o primeiro ser inteligente no mundo, vivemos por palavras, lutamos por palavras, morremos por palavras.
Os grandes líderes da espécie humana, os guardiões do sagrado ou do profano; os mestres sublimes como Cristo, Buda, Maomé, Lincoln, Gandhi; ou os verdugos do gênero humano, como Alexandre, Júlio César, Átila, Napoleão ou Hitler; os poetas e os profetas; os filósofos e os feiticeiros; os disseminadores das ciências e os arautos do obscurantismo fizeram delas o seu instrumental de luz ou de trevas, de liberdade ou de opressão, de inteligência ou de ignorância. de grandeza ou de miséria.
Nunca vou me cansar de lê-las, de estudá-las, de aprendê-las, de dissecá-las, de entendê-las, de utilizá-las para dar corpo aos meus sonhos. E como são caprichosas! Como são mutantes, volúveis, instáveis, sensíveis! Pablo Neruda lembrou, em um magistral poema: "Uma idéia inteira muda porque uma palavra mudou de lugar ou porque outra se sentou como uma rainha dentro de uma frase que não a esperava e que lhe obedeceu./Têm sombra, transparência, peso, plumas, pêlos, têm tudo o que se lhes foi agregando de tanto vagar pelo rio, de tanto transmigrar de pátria, de tanto ser raízes./São antiqüíssimas e recentíssimas./Vivem no féretro escondido e na flor apenas desabrochada..."
Diz-se que o homem foi feito "à imagem e semelhança de Deus". Esta parecença, porém, estes sutis traços semelhantes, essa identidade que nos torna "filhos" do Criador do Universo, não estão no físico, no tamanho, no peso, na altura, na beleza, na glória ou na resistência. O homem é pequeno, é frágil, é feio, é miserável e é fraco. A "semelhança" reside na possibilidade mágica, fantástica, miraculosa de se comunicar através de signos coerentes e inteligíveis para todos. Nessa magia, nesse encantamento, nesse milagre que é a palavra. Porquanto, "no princípio era o verbo...", que sempre pré-existiu e continuará existindo quando (ou se) já não mais houver matéria, energia, cosmo, espaço, vazio...
O professor norte-americano Stephen Greenblatt lembra que "nossas palavras estão cheias de vestígios que sequer compreendemos completamente quando falamos, de vozes que existiram no passado e silenciaram, estão mortas. Nossas vidas estão cheias das presenças fantasmagóricas de nossos ancestrais, de nossos pais, de nossos avós, das figuras que nos tocam e em relação às quais tentamos nos situar". Sinto que a única chance que tenho para que, com a minha morte (fatalidade impossível de evitar) não desapareçam todos os vestígios de que existi, amei, odiei, trabalhei, sofri, fui feliz, acertei, errei e aspirei à imortalidade, é a palavra.
Mas essa essência da sabedoria universal requer talento no trato. Exige que quem dela se utilize – quer no relacionamento corriqueiro do cotidiano, quer na nobreza do raciocínio – o faça com competência, com atenção, com carinho. Mark Twain alertou que "palavras são como granadas. Quando usadas inadequadamente, explodem". Seu uso desastrado propicia desentendimentos, conflitos, separações, ódios, incompreensões, guerras e mortes. Frustram, humilham, aborrecem, desanimam, matam.
O poeta Fagundes Varela considera-a a "mais forte das armas, a mais firme, a mais certeira", que provoca os maiores estragos na alma humana. Daí as noites insones e a faina incansável dos dias para entendê-las, dominá-las, absorvê-las, aprender a manejá-las com cuidado, com amor, com competência, para construir, para consolar, para engrandecer, para solidarizar, para defender os indefesos, para condenar as injustiças, para reivindicar direitos.
A tarefa é superior às minhas forças e os resultados são incertos. Faço parte dessa confraria dos sonhadores, desses criadores de castelos imaginários e de mundos inexistentes, conhecidos como "escritores". Por isso, como Guilhaume Apollinaire, rogo às gerações futuras, aos que daqui a dez, quinze, vinte, cem anos ou mais eventualmente lerem estas linhas: "Piedade para nós, que exploramos as fronteiras do irreal!!!"

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