Tuesday, November 03, 2009




Relógio e espelho

Pedro J. Bondaczuk

O escritor Jorge Luís Borges tinha uma fixação --- e explorou-a com muita destreza em seus contos e poemas --- por labirintos, máscaras e tigres. Da minha parte, os objetos pelos quais sempre tive obsessão e que são temas constantes em meus textos são: o relógio e o espelho. O primeiro marca o tempo que se esvai, reduzindo, a cada movimentação dos ponteiros, meu prazo de vida. Como amo esta aventura fascinante e misteriosa, que é o fato de viver, consulto-o somente quando é estritamente necessário. Tanto que nunca carrego esse objeto comigo. E quando consulto as horas, sempre em relógios alheios, faço-o com crescente preocupação. Considero cada segundo precioso. Procuro vivê-lo intensamente, não importa qual seja o meu ânimo, ou como me sinta fisicamente: se com dor ou não. Quero prolongar minha vida ao máximo!

Por isso, não uso relógio de pulso. É uma atitude até supersticiosa. Tomo-a, porém, em defesa da minha sanidade psicológica. Não quero a todo o instante lembrar que o prazo da minha vida (que felizmente desconheço qual é), está se estreitando. O espelho, por sua vez, mostra-me, dia-a-dia, a cada manhã, os estragos que o tempo faz sobre o meu físico. Revela-me, por exemplo, que meus dentes se estragaram, após ficarem manchados de nicotina e começarem a cair, por falta de tratamento, necessidade difícil de ser atendida, dado o alto preço cobrado pelos dentistas. Faço parte, portanto, da imensa legião de banguelas existentes no País. Afinal, o Brasil é o recordista mundial dos desdentados!

Al‚m disso, o espelho denuncia as permanentes e crescentes olheiras que ostento, resultado de intensíssima leitura e de noites e mais noites de estudos e de elaboração de textos. Exibe, com a maior desfaçatez, as entradas que ameaçam se transformar em calvície, que começaram com um círculo no centro da cabeça, semelhante às tonsuras dos monges, e evoluíram pelas laterais, mostrando uma pele branca e lustrosa.

Se, pessoalmente, estes dois objetos me causam aflição e até um certo temor, pelas incômodas revelações que fazem acerca da minha aparência, machucando a minha vaidade, me vingo deles e os transformo em temas de centenas de versos pejados de emoção. Dou sempre um jeito para que estejam presentes no cenário dos meus contos. Transformo-os em símbolos de decadência e de efemeridade, que realmente são.

Infeliz descoberta humana! O espelho, por exemplo, teria surgido da imitação de um lago, que reflete a imagem daquilo que o cerca. Foi a causa do desvario do personagem mitológico Narciso, que se apaixonou perdidamente pela própria figura refletida na água, posto que distorcida, em uma manifestação da sua tendência homossexual. Hoje, inúmeros intelectuais agem da mesma forma. São impermeáveis a críticas e por isso ficam expostos ao ridículo. Namoram os seus umbigos, para os quais não param de olhar. Apaixonam-se por suas imagens e julgam-se sábios. São uns Narcisos...

Cecília Meirelles, em seu poema "Canções", utilizou esse objeto como tema literário, nestes magistrais versos: "Quando meu rosto contemplo,/o espelho se despedaça:/ por ver como passa o tempo/ e o meu desgosto não passa./ Amargo campo da vida,/ quem te semeou com dureza,/ que os que não se matam de ira/ morrem de pura tristeza?". No meu caso, porém, há muitas diferenças entre o que a poetisa (ou poeta?) descreve e a minha visão de mundo. E nem poderia deixar de ser assim, já que nossas realidades de vida são heterogêneas. Em princípio, embora o acaso tenha sido perverso comigo em muitas circunstâncias --- por exemplo, o fato de eu haver contraído a poliomielite --- não tenho um desgosto tão renitente, a ponto de nunca passar.

Ponderando bem, meus momentos felizes são em muito maior número do que os que me desgostam. Por conseqüência, não considero o campo da vida amargo. Acho-o dulcíssimo. Tanto que gostaria de viver --- na impossibilidade de ser eterno --- os 983 anos de Matusalém ou chegar às marcas multicentenárias de outros patriarcas bíblicos. Não estou morrendo de tristeza. Vivo a plenitude da alegria de exercer o que mais gosto de fazer: escrever.

Talvez ajude a postura que assumo no meu cotidiano. Tenho escassos desejos. Não me alimento de esperanças e ainda assim não sou amargo. Até porque, as coisas boas que me ocorreram, em linhas gerais, foram as absolutamente inesperadas. Quando esperei ansioso que algum evento ocorresse, invariavelmente me frustrei. Daí concordar com os versos do poema "O fumo", escrito no século XVII por Marc Antoine de Saint-Amant, que dizem: "Nenhuma diferença a minha mente alcança/ em fumaça o tabaco ou viver de esperança:/ um é simples fumaça, a outra é apenas vento". Creio haver justificado, pois, a razão do temor e do respeito que tanto o relógio, quanto o espelho, me despertam. Não quero testemunhar a passagem do tempo. Recuso-me a conferir os estragos que ele me faz. Desejo usufruir cada segundo, como se fosse o derradeiro da vida que, no dizer de Manuel Bandeira, "é um milagre".

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