Monday, May 04, 2009

Estrelinha


Pedro J. Bondaczuk

(CONTO)

Estou num comício de Walter Braido, candidato à Prefeitura de São Caetano do Sul, município do ABC paulista em que resido, com vistas às eleições de 4 de outubro próximo. Quem não me conhece, vai achar que sou fanático por política, ou partidário desse político, ou as duas coisas juntas. Nada disso! Não se trata nem de uma coisa e nem de outra.
Sequer sou eleitor de Braido. Não votei nele para vereador e não pretendo votar para prefeito. Nas últimas eleições municipais, aliás, votei em Anacleto Campanella. Por que? Por recomendação da família. E por se tratar de nome querido na cidade, já que foi quem liderou o movimento autonomista, que resultou na independência de São Caetano. Apenas por isso.
Braido é seu adversário ferrenho. E aqui, quem vota em um, é opositor, automático, do outro e vice-versa. É mais ou menos como nos Estados Unidos, onde quem é democrata opõe-se aos republicanos, sejam quais forem seus candidatos, e vice-versa. Entre nós, por sinal, os partidos sequer importam. Não passam de uma infinidade de siglas, sem programas, ideologias ou seja lá o que for.
Aliás, comenta-se, à boca pequena, que todos eles serão extintos para a criação de dois novos. Diz-se que não será permitida a formação de mais nenhum outro. Um será favorável ao atual governo e, com certeza, contará com a adesão da quase totalidade dos políticos, segundo a nossa tradição nada democrática. O outro, por seu turno, se destinará, segundo dizem, a fazer oposição, mas apenas de fachada, para dar toques de democracia a um regime que todos sabem que é ditatorial.
Aliás, se tivesse juízo, eu sequer estaria me expondo dessa forma. O País vive sob uma feroz ditadura militar desde 1° de abril (a imprensa, que deu pleno apoio ao golpe, insiste em afirmar que este ocorreu em 31 de março, para desvinculá-lo, claro, do dia universal da mentira, mas essa é, digamos, para ser elegante, a maior das inverdades). Milhares de pessoas, Brasil afora, foram presas, sob o pretexto de apoiarem os comunistas que, supostamente, teriam tentado implantar esse regime entre nós. Pura bobagem. O País jamais correu esse risco.
Aqui em São Caetano, todos os líderes estudantis foram parar nas prisões do DOPS. Ou, para ser mais preciso, quase todos. Eu escapei. Por que? Creio que seja público e notório que, apesar de me opor ao golpe (sou democrata fervoroso e convicto), nunca fui comunista. Não, pelo menos, desse comunismo que há por aí, na União Soviética e seus satélites, ou em Cuba, China, Coréia do Norte, Vietnã de Ho-Chi-Minh e vai por aí afora. Isso não passa de mera ditadura de esquerda. Ou, para ser mais preciso, de “Capitalismo de Estado”. Nunca que eu iria querer um regime desse tipo aqui no Brasil!
Os amigos recomendam-me, amiúde, que deixe a cidade o mais rápido que puder. Dizem-me que minha ideologia (ou falta dela, na verdade) pouco importa e que não é nenhuma garantia de imunidade. Lembram-me que muitos dos líderes estudantis presos são até mesmo direitistas. Alguns, até, integram o CCC (Comando de Caça aos Comunistas). Mesmo assim, não escaparam de fazer uma “visitinha”, nada agradável por sinal, ao DOPS. Isso é verdade.
Meus pais, nem seria preciso dizer, estão aflitíssimos com a minha situação. Até já me arranjaram lugar para morar, em uma pacata cidade do interior, longe das vistas dos informantes dos militares e dos delatores, que são capazes de entregar a própria mãe, só para puxarem o saco dos poderosos de plantão. Há, tenho certeza, muitos deles infiltrados em todos os tipos de reunião. Inclusive aqui, neste comício de hoje. O clima é de paranóia total e não é para menos. Ninguém confia em ninguém, nem na própria sombra.
Ora, se não sou político, não gosto do tipo de política que se faz no Brasil, não sou eleitor do Braido, a quem me oponho, o que estou fazendo aqui, nesse comício? Estou procurando uma pessoa. Para ser mais específico, uma mulher (ou quase mulher). Ela é muito especial para mim. Especialíssima. Sei que dificilmente a encontrarei. É como (para usar surrado clichê), encontrar uma agulha em um palheiro ou achar uma estrelinha específica, bem pequena quase invisível, num imenso e infinito céu estrelado. Mas não estou disposto a desistir por nada deste mundo. Mesmo que corra o risco de ser preso (e meus pais e amigos asseguram que corro), vasculharei São Caetano de alto abaixo, até encontrá-la. Ou até que os militares me encontrem antes, quem sabe.

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Encontrei Idalina (foi assim que ela disse que se chamava) num comício de Walter Braido, um dos primeiros da atual campanha eleitoral, realizado na Vila Gerte. Havia uma multidão presente, a grande maioria constituída de jovens, que estavam ali não especificamente para ouvir os discursos de sempre dos candidatos, todos cheios de elogios à tal “Revolução Redentora” (afinal, não é prudente criticar, nem por metáforas, os poderosos de plantão), mas para assistir o show programado para depois da falação toda, com artistas da “Caravana do Peru que Fala”, do apresentador da Rádio Nacional de São Paulo, Sílvio Santos.
É verdade que não havia nenhum cantor e nenhuma cantora famosos, de alguma expressão, desses com discos gravados e aparições na TV e que estivessem nas paradas de sucesso. Aos presentes, porém, isso pouco importava. Afinal, teriam um show, como outro qualquer, com a vantagem de ser totalmente de graça. O único preço que se tinha a pagar era o de ouvir a lenga-lenga de sempre dos políticos e meia dúzia de puxa-sacos, pagos para isso, gritando “já ganhou!”. Mas eram, até, artistas razoáveis, com repertório bem ao gosto do povão.
Uma das cantoras era apresentada como a “Estrelinha de São Paulo”. Era uma meninota, de uns 18 a 20 anos no máximo, do tipo mignom, morena, cabelos batendo na altura dos ombros, até que bonitinha. Não sei explicar por que cargas d’água, transferi seu apelido para Idalina depois que nos apresentamos um ao outro. As duas não eram sequer parecidas, a não ser na conformação física. Ambas eram baixinhas, pequenininhas, como se fossem “chaveirinhos”, dessas que cabem inteirinhas em nossos braços. Mas seus traços, seus olhos, seus lábios e até a tonalidade de sua pele eram completamente diferentes. Desde esse momento, todavia, passei a chamar Idalina por “Estrelinha”. O apelido soava-me simpático e carinhoso.
Mas ainda não expliquei o que estava fazendo naquele comício. Ou melhor, expliquei. Estava lá pela mesmíssima razão da maioria: o show. Não que eu apreciasse o tipo de música que se apresenta nessa espécie de espetáculo. Longe disso. Meu gosto musical é muito mais sofisticado, tipo Frank Sinatra, Nat King Cole e, principalmente, jazz. E, convenhamos, eu não poderia esperar ouvir isso ali, naquele comício.
E por que eu fui? Por insistência dos amigos. Estes garantiram que ali haveria muitas mulheres a conquistar. De fato, havia. A predominância, aliás, era mesmo do público feminino. A maioria estava acompanhada, ou dos pais, ou de irmãos, ou de namorados, ou sabe-se lá de quem. As que não tinham companhia masculina, estavam em turminhas de meninas, atentas nos rapagões presentes, trocando confidências entre risinhos e olhares reveladores. O chato era que as bonitinhas (salvo uma ou outra exceção) tinham ao seu lado algum homem, indicativo de “sinal vermelho” aos ávidos moços do nosso grupo.
Tínhamos, na ocasião (e o resto da minha turma ainda tem), uma competição (que hoje acho besta, mas na época achava legal) entre nós sobre quem conquistaria mais mulheres. A rapaziada era um tanto garganta e bastava sair com uma moça para, no dia seguinte, apregoar aos quatro ventos que havia dormido com ela. Todos sabíamos que, salvo raríssimas exceções, não era verdade. Fingíamos, no entanto, que acreditávamos. Até porque, também exagerávamos nossos encontros.
Esse comportamento é fruto não apenas da nossa idade (o mais velho da turma recém completou vinte e um anos), mas da rápida mudança de costumes que se verifica nestes primeiros anos da década de 60, com o advento da pílula anticoncepcional, que se não evita, pelo menos limita casos de gravidez indesejável. Isso liberou as mulheres e tornou-as mais ousadas. Havia algumas, até, que não esperavam mais ser conquistadas, mas conquistavam. Não sei se as gerações que nos antecederam pensavam como nós, na idade que temos.
Para a turma, há dois tipos de mulheres: as que são para namoro firme, para casar, e as que gostam de fazer sexo por puro prazer, sem compromisso, mas que ninguém sequer cogita numa ligação, digamos, mais firme com elas. As que têm essa fama, raramente conseguem casamento. Não, pelo menos, aqui na cidade. Se não se mudarem para outro lugar, permanecerão solteironas renitentes. Há muitas nessa condição.
A iniciação sexual da maioria da nossa turma ocorreu nas chamadas zonas do meretrício. A minha se deu com uma dessas moças que não “são para casar”. Alguns colegas mantiveram, ou mantêm relacionamentos sexuais com mulheres casadas, insatisfeitas com os maridos na cama. Isso, porém, jamais passou pela minha cabeça. Entendo que se trate de encrenca pura. Ademais, por que correr esse risco se há outras opções? Costumo dizer a todo o momento que “mulher casada tem cheiro de defunto”.
Estávamos, portanto, ali, naquele comício, para disputar quem “ganharia” mais meninas. Desde a chegada, cada um escolheu seu alvo e adotou sua estratégia. O primeiro a sair abraçado com uma morena feiosa foi Carlinhos, que piscou para nós e saiu empertigado com a sua presa para algum lugar deserto, como se houvesse conquistado a Miss Brasil. O Seixas saiu logo a seguir, com uma garota até que bonitinha, mas que não parava de rir e de dar bola para todo o mundo, especialmente para os artistas. Dava gritinhos histéricos a cada cantor anunciado. Esse, pelo visto, tinha maiores chances de uma noite de sexo, conforme avaliou a turma. Ou não, porquanto as aparências enganam.
Desde o momento que cheguei, percebi que uma baixinha, com aspecto de menina de uns 14 a 15 anos no máximo, não tirava os olhos de mim. Baixei a cabeça várias vezes, disfarcei e tentei concentrar a atenção em outras moças. Mas a pequenininha parecia que queria me hipnotizar. E estava hipnotizando mesmo. Os colegas notaram a insistência do olhar da garotinha e brincaram comigo:
- Vai lá, Zezinho, a mina está comendo você com os olhos. Qual é, ficou broxa?!
- Aprontar com criança dá cadeia! Vocês não vêem que se trata apenas de uma menininha? Pô, turma, não sou tarado! – respondi, já um tanto irritado com as gozações e com vontade de abordar a garota.
- Menininha coisa nenhuma! Ela é só baixinha! Vai ver que é mais velha do que você – retrucou o Toninho, que adorava me pôr em fria.
Entre risos e apupos, finalmente decidi abordar a garota. E isso mudou toda a minha vida até aqui.

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- Oi, broto, tudo bem? Está gostando do show?
- Mais ou menos.
- Por que mais ou menos?
- A maioria dos cantores é desconhecida.
- Como é o seu nome?
- Idalina.
- Idalina do quê?
- Só Idalina. Isso basta. E o seu?
- José Ferreira Guimarães.
- Uh! Que nome pomposo!
- Que nada, broto, sou apenas um dos tantos Zés da vida.
- O que você faz?
- Sou estudante do 2° científico. Pretendo fazer Medicina. Se o dinheiro der, é claro. E você?
- Também estudo.
- Que curso?
- Normal.
- Ah, quer ser professora! Vai ser uma professorinha muito bonita.

Com esta abordagem inocente, iniciei meu contato com Idalina. De cara, notei sua beleza (não havia como deixar de notar), a despeito de sua estatura ser, digamos, abaixo da média das moças da sua idade. Calculei que tivesse uns quinze anos, se tanto. No transcorrer da conversa, porém, fiquei sabendo que havia completado, recentemente, dezoito anos. Juro que não parecia!
A menininha era inteirinha proporcional, sem nada de mais e nem de menos. Pensei na hora que era miniatura da Vênus de Milo, mas com braços. E que braços! Bem-torneados, perfeitos, com mãos pequenas e dedos finos, de artista eu diria.
Era morena clara, com pele sem qualquer sinal de espinhas ou manchas, tão comuns na adolescência. Tinha cabelos negros, que iam até seus ombros, brilhantes e sedosos, presos com uma presilha, que me parecia de metal, no alto da testa.
Seu rosto era redondo, mais para ovalado, numa simetria para artista algum botar defeito. O queixo era pontudo, denotando personalidade forte, mas de traços suaves e delicados. O narizinho, pequeno, era um tanto arrebitado, com orelhas pequeninas e rosadas, ornadas com um par de brincos de ouro, que completavam, com delicadeza e harmonia, o conjunto. Era dessas belezas impossíveis de não se notar e que prendem de imediato nossos olhares. Sua boca – ah! sua boca! – era delicada e sensual, com lábios carnudos, vermelhos, que dispensavam o uso de batom, que ela usava, mas na medida certa e de tom rosado.
Contudo o detalhe que mais chamava a atenção eram seus olhos, verdes, verdes, com sobrancelhas finas e cílios bem destacados, como se fossem artificiais, mas absolutamente naturais. Brilhavam como lanternas chinesas, dando-lhe um ar simultaneamente de inteligência e de mistério. Cativaram-me de cara. Confesso que, ao observá-la de perto, balancei.
Minha intenção inicial ao fazer a abordagem, confesso, não era nada nobre. Queria sair com ela, de braços, para causar sensação entre os colegas e assim conservar minha fama de “garanhão”. E se possível, levá-la para um lugar tranqüilo e dar-lhe alguns “amassos” ou, se ela deixasse, ir bem mais além Isso, num primeiro momento.
Aos poucos, fui cedendo aos encantos de Idalina, à sua inteligência ágil e aguda, refletida nas respostas que me dava, nas perguntas que me fazia e nas observações precisas que apresentava a cada assunto que eu tocava, à sua figura um tanto bizarra dada sua estatura e ao suave perfume que emanava dela. Ah! seu.perfume! Era um aroma natural, sutil e doce, posto que embriagador.
Devo dizer que, para os padrões da minha época, sou considerado uma espécie de galã. Muitos comparam-me ao ator Marlon Brando, uma espécie de padrão de beleza masculina da atualidade. Alguns dizem que sou a cara do Peter O’Toole. Verdade ou não, nunca tive dificuldades em impressionar qualquer mulher.
Não sou muito alto, é verdade. Tenho 1,74 m, mas destaco-me da maioria dos rapazes, por estar nos parâmetros de altura da juventude do meu tempo. Embora não seja pivô, jogo basquete, e muito bem, no time da minha escola, o Instituto de Ensino de São Caetano do Sul, um dos colégios particulares mais tradicionais (e mais caros) da cidade, com sede na Rua Baraldi. Atuo como ala e tenho invejável pontaria.
Nem preciso dizer que sou o ídolo das meninas do meu bairro. Muitas, porém, por despeito, por haverem sido preteridas quando me deram bola, consideram-me vaidoso e convencido. Não posso dizer se de fato sou ou não.
Sou loiro, tenho olhos azuis e um porte atlético, que se acentua, dia a dia, provavelmente em decorrência da prática de esportes. Embora não seja, nem de longe, do tamanho dos pivôs do nosso time, ambos com 2,03 m, perto de Idalina, sou um gigante. Tenho 20 centímetros de altura a mais do que ela.
Não sei explicar a razão, mas sempre fui vidrado por mulheres pequenas. Claro, desde que sejam bonitas e tenham corpo proporcional à estatura. Devo dizer que, em matéria de companhia feminina, sou sumamente exigente. Vivo repetindo, a quem quiser ouvir, a super batida anedota que diz: “Se me virem agarrado a uma mulher feia, podem separar, que é briga”.
Conversei com Idalina durante todo o show. Achou graça quando a chamei de Estrelinha. Garanti que dali por diante, sempre que olhasse para o céu e visse aquela estrela pequenina e brilhante (e apontei para uma, ao léu), me lembraria dela.
- Hum! Além de bonito, meu novo amigo é poeta! – respondeu-me.
- Só amigo? – perguntei-lhe.
- Por enquanto, só. Mas... quem sabe?!
Idalina, a seguir, contou-me uma porção de coisas a seu respeito, mas sem dar maiores detalhes de nenhuma. Disse, por exemplo, que os pais eram portugueses, muito severos, moralistas e sumamente religiosos. Falou que eram donos de uma padaria, mas não quis me revelar onde. Confidenciou-me que a mãe destinou-a a ser freira e, portanto, jamais permitiria que namorasse. Explicou que se tratava de promessa. Disse que desde a infância vinha sendo preparada para esse fim. Revelou que a mãe tivera sérias dificuldades no parto e que prometera à Nossa Senhora de Fátima que, se sobrevivesse, e a filha nascesse perfeita, lha “doaria” à igreja.
Mas Idalina não estava disposta a passar a vida em um convento. Tinha outros planos, e muito diferentes dos da mãe, para o futuro. Sonhava, por exemplo, em se formar e dar aulas em alguma escola de periferia, para crianças pobres. Adorava ensinar. Sentia-se vocacionada para isso. Além do mais, gostava demais de crianças. Tinha dois irmãos pequenos pelos quais sentia autêntica adoração. Disse que esperava casar com o homem que viesse a amar e ter filhos, muitos filhos com ele. Respondi-lhe, de chofre, que me candidatava a esse papel.
Idalina limitou-se a sorrir e respondeu, apenas, com um “quem sabe?!”.. Fiquei surpreso comigo mesmo ao falar de casamento a uma pessoa que mal acabara de conhecer. Justo eu que vivia apregoando que só me casaria (e isto se me casasse) com mais, muito mais de trinta anos, depois de haver comido pelo menos mil mulheres! Mal havia comido umas dez até então.
Quando o show terminou, ofereci-me para levá-la até sua casa. Ela ficou assustada com a oferta.
- Meu pai é muito bravo e meus irmãos não me deixam conversar com nenhum rapaz!
- Então nosso contato se encerra por aqui?
- Podemos nos encontrar, mas meus pais não podem saber.
- Onde e quando?
- Em frente ao portão do Cemitério da Vila Paula, no sábado.
Estávamos na quarta-feira. Passei dois dias de extrema ansiedade. As horas pareciam meses. Escoavam com enervante lentidão. Na escola, não consegui me concentrar em nenhuma aula. Ainda bem que não havia provas a fazer. Evitei os colegas e suas conversas vazias. Não conseguia tirar Estrelinha, a minha Estrelinha do pensamento. “Será que, finalmente, fui fisgado”, pensei. “Não. Só fiquei impressionado com a mina, mas isso passa!”, concluí.

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No sábado, acordei indeciso sobre se deveria ir ou não ao encontro. Ou melhor, sobre se ele aconteceria mesmo ou não. “Imagine! A mina, com certeza vai me dar o bolo. Só eu mesmo para achar que um encontro marcado num comício é para valer!”, pensei. Mas Estrelinha não me saía do pensamento. Parecia vê-la em todo o lado para onde olhasse.
Ainda pela manhã, fui ao barbeiro, cortar o cabelo. À tarde, tomei um banho demorado de chuveiro, perfumei-me, barbeei-me meticulosamente, escolhi minha melhor camisa, e a calça mais nova que tinha, com vinco impecável, lustrei os sapatos, deixando-os com brilho de espelho, mas ainda relutava. Por fim, decidi ir, temeroso de fazer papel ridículo.
Havíamos marcado encontro para as 20 horas. Cheguei ao portão do cemitério cerca de quinze minutos antes. Impaciente, acendi um cigarro. O coração estava disparado, a boca seca, as mãos geladas e eu suava frio, de tensão e impaciência. Caminhei, lentamente, até o fim do quarteirão, em direção à Avenida Goiás, de onde Estrelinha deveria vir. Parei na esquina, respirei fundo, e voltei ao ponto de partida, ou seja, o portão do cemitério. A rua, àquela altura, estava vazia. Vez por outra, passava algum carro, ou um ônibus da linha Vila Paula, àquela altura com vários bancos vazios. Transeunte, não havia nenhum.
Passaram-se quinze minutos, e nada. Acendi outro cigarro e fui, novamente, até a esquina, cada vez mais convencido que Idalina não viria. Retornei de novo ao portão. Minha cabeça fervia. “O que diria a turma se me visse assim?”, indaguei aos meus botões. Não queria nem pensar. Fui, mais uma vez, até a esquina, após acender o terceiro cigarro seguido. Quando retornava, já decidido a voltar para casa e esquecer toda aquela história maluca, vi-a, ao longe, caminhando a passos largos em minha direção. Foi uma visão da qual jamais irei esquecer.
Estrelinha estava deslumbrante, em um vestido todo branco, que lhe caía com perfeição. O traje dava-lhe um ar ainda mais angelical do que de costume, um aspecto de inocência e pureza. Sorriu, tão logo nos encontramos. Abraçamo-nos e nos beijamos levemente no rosto. Seu perfume embriagou-me. Convidei-a a ir a um lugar mais apropriado para nos conhecermos melhor, que não fosse aquele cemitério. Caminhamos, de mãos dadas, uns quatro quarteirões, à procura de uma rua tranqüila e escura, em que pudéssemos namorar.
Paramos junto ao muro de uma casa, cujas luzes estavam apagadas, mas cuja família certamente assistia televisão na sala, o que foi fácil de concluir pela luz azulada que filtrava através do vidro. Havia uma mureta, como se fosse um banquinho, separando o jardim da calçada. Neste, havia uma profusão de flores, notadamente de rosas e da chamada “dama da noite”. O perfume desta era intenso e tornava aquele cantinho especial perfeito para namorar. Claro que corríamos o risco de sermos interrompidos pelos donos da casa, por isso falávamos aos sussurros. Aliás, falar foi o que menos fizemos.
Assim que chegamos, ficamos um diante do outro, nos olhando fixamente por muito tempo. Havia tanta ternura em seu olhar que senti a cabeça girar. Nunca antes me sentira assim (e até hoje, nunca mais me senti dessa maneira). Tudo parecia irreal, uma doce fantasia, magnífico conto de fadas, um poema vivo de encantamento e magia. Ficamos pelo menos uns cinco minutos apenas nos olhando. Idalina sorria, ressaltando ainda mais a beleza dos seus lábios, que eu estava ansioso por beijar, e a brancura e perfeição dos seus dentes.
Embora vestida com elegância, minha Estrelinha não portava, praticamente, nenhum adorno. Nem precisava. Era linda até (ou principalmente, como pensei) despida. Trazia, apenas, uma correntinha de ouro, com uma cruz do mesmo metal, no pescoço, adornando-lhe o colo perfeito. Nas orelhas, dois pequeninos brincos dourados, que eram quase imperceptíveis, e mais nada.
- Suas mãos estão geladas, broto – falei, por fim.
- É que estou nervosa. Nunca antes estive com um homem.
- Fala a verdade! Você, tão linda, vai me enganar que nunca teve namorado?!
- Nunca! Juro!
- Nossa! Você está tremendo! Não tenha medo! Prometo que não vou desrespeitá-la – sussurrei, de mansinho, de modo tranqüilizador, em seu ouvido.
- Não é medo. É emoção – respondeu-me Idalinha, dando-me um beijinho na orelha e acariciando suavemente o meu rosto, o que fez com que eu me arrepiasse da cabeça aos pés.
Abracei-a, com delicadeza e ternura, recostando sua cabeça em meu peito. Seus olhos brilhavam mais do que a estrelinha que elegi para ser o seu símbolo. Emanava um perfume irresistível, tanto da dama da noite no jardim às nossas costas, quanto, e principalmente, dos cabelos, do rosto e do corpo de Idalina. De repente, aconteceu.
Não sei dizer de quem foi a iniciativa, se dela ou minha, mas quando meu dei conta, beijava-a com paixão. Sua boca era deliciosa e doce, mais doce do que mel. Sua língua “brigava” com a minha, ambas se enroscando, numa sensação indescritível, de êxtase e delírio.
Eu já havia beijado várias mulheres até então, mas não havia romance e nem ternura nesses beijos. Eram meras preliminares do coito. Com Idalina não era assim. Nem me passou pela cabeça avançar o sinal. Seria uma heresia da minha parte se o fizesse, pelo menos ali, naquela noite mágica de sábado, em que pela primeira vez na vida conheci, de fato, o que era amar.
Sem exagero nenhum, esse beijo inicial durou pelo menos quinze minutos. Gostaria que tivesse durado a eternidade. Quando nos separamos, ofegantes e pisando nas nuvens, minha Estrelinha tomou a iniciativa de me acariciar. Roçava seus aveludados lábios por todo o meu rosto, com uma delicadeza infinita.
Eu acariciava-lhe os cabelos e retribuía esses beijos com a mesma ternura com que era brindado. Tornamos a olhar um nos olhos do outro. Não falamos nada. Para quê? Que palavras poderiam expressar o que sentíamos mutuamente naquele momento embriagador? Nossas almas se comunicavam apenas pelos olhos, que diziam coisas que poeta algum, por mais inspirado que fosse, conseguiria ou saberia dizer.
E veio novo e demorado beijo. Nossas respirações se confundiam. Nesse momento, éramos uma só pessoa, posto que em dois corpos. E veio o terceiro beijo... e o quarto, o quinto, o sexto... até que perdêssemos a conta. Olhamos no relógio e o tempo havia se evaporado. Tinham transcorrido três horas desde que nos encontramos que a nós pareciam meros segundos.
Ensaiamos a despedida muitas vezes. Beijamo-nos, mais uma vez, determinados que fosse o último beijo daquela noite. Por três vezes nos despedimos de novo, mas voltamos a nos beijar. Havia uma força irresistível que atraía um para o outro e não permitia que nos separássemos.
Por mim, passaria não somente aquela noite, mas a minha vida toda trocando beijos e mais beijos, sentindo a fragrância do seu corpo jovem e sadio e vendo o firmamento estrelado em seu olhar. Seu pai, porém (como me dissera no comício) era muito brabo e seus irmãos, verdadeiros cães de caça, empenhados em impedir Idalina que namorasse quem quer que fosse.
Ofereci-me para acompanhá-la até a sua casa, mas ela, aterrorizada, suplicou-me que não o fizesse. Acompanhei-a, pois, apenas até a esquina da Avenida Goiás e lá nos despedimos pela última vez, agora com um beijinho rápido, mas enfática promessa de muitas e muitas noites como aquela, embora não passasse de mero roçar dos nossos lábios.

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Passei aquela noite em claro, como que em transe, em êxtase, em delírio, com a luz do meu quarto acesa, fumando e olhando para o teto, sem nada ver. Recordei, segundo a segundo, aquele encontro. Parecia sentir (e de fato sentia, e fisicamente) suas mãos pequeninas e cálidas alisando os meus cabelos. E seus lábios quentes, macios, carnudos e perfumados percorrendo cada milímetro do meu rosto, até chegarem aos meus, em beijos prolongados, sufocantes e embriagadores.
“Será que tudo não passou de um sonho, desses que gostaríamos que durassem para sempre e não queremos jamais despertar?”, me indaguei. Não! Não foi sonho! Minhas mãos estavam impregnadas do seu perfume para comprovar que tudo havia sido real. Minha boca ainda sentia o sabor da sua. Meu corpo estava tenso, elétrico, tomado por um desejo incontido. Só consegui conciliar o sono quando as luzes do novo dia começaram a se infiltrar por entre os interstícios da veneziana.
Apenas no dia seguinte, por volta do meio-dia, quando acordei, foi que me dei conta da trágica mancada que dera na noite anterior e que iria me causar profunda desolação e intenso sofrimento. Debaixo do chuveiro, enquanto tomava uma ducha morna, lembrei que na empolgação dos tantos beijos que trocamos, não marquei novo encontro com Idalina, nem consegui seu endereço e muito menos lhe dei o meu.
Telefone eu não tinha em casa e ela, se tinha (provavelmente sim, pois seu pai era dono de padaria), não havia me fornecido o número. Poderia procurar na lista telefônica e foi o que decidi fazer. Mas qual era o nome do estabelecimento? Não sabia! “Como, quando e onde iríamos nos encontrar de novo?”, me perguntei, no auge da aflição. Infelizmente, não iríamos! Bateu-me um desespero como nunca antes senti.
Vesti-me às pressas e fui à procura dos amigos. Indaguei a cada um deles se conhecia aquela menininha com a qual eu conversara no comício. Ninguém sabia nada, absolutamente nada dela. Pedi ao Marcelo que me deixasse telefonar da sua casa. Prometi pagar-lhe a conta, embora ele dissesse que não seria preciso. Telefonei para todas, absolutamente todas as padarias de São Caetano, que constavam na lista. Em vão! E agora, o que fazer?
Os dias seguintes foram de desespero, prostração e dor, agravados pelas lembranças daquela noite mágica. Faltei à escola e ao trabalho. Não comia, não dormia e nem banho tomava. Estava com um aspecto horrível, barbudo e com olheiras circundando os olhos. Não parava de pensar na minha Estrelinha. Cheguei a adoecer. Fiquei uma semana de cama, para profunda preocupação dos meus pais. O médico disse que nada poderia fazer, pois meu problema era de fundo emocional. Tive febre alta e delirei. Quando melhorei, minha mãe quis saber quem era essa “tal Idalina”, de quem tanto falei em meus delírios. Desconversei e não lhe disse nada a respeito.
Nos dias seguintes, tão logo me recuperei, fui a todas as padarias da cidade. Não a vi em nenhuma. Ela havia, simplesmente, desaparecido, sumido, se evaporado no ar. Num determinado dia, quando aguardava o ônibus da Vila Paula, no terminal urbano situado sob o Viaduto dos Autonomistas, pareceu-me vê-la num coletivo da linha Vila Barcelona. Corri na direção do veículo, que estava partindo, com o coração na boca e uma ansiedade sem fim, mas não o alcancei. Isso multiplicou, claro, meu desespero. “Seria ela?”, me indaguei. “E se era, por que não desceu do ônibus e não veio me encontrar?”, pensei com uma pontinha de mágoa.
Perambulei por semanas, rua por rua, da Vila Barcelona, na esperança de que, quando menos esperasse, a encontraria. Não encontrei. Nem é preciso dizer que fiz romaria a cada padaria que havia no bairro.”Onde está você, Estrelinha?”, gritei, para espanto dos transeuntes, que julgavam que eu estivesse embriagado.
Fui a todos os comícios, inclusive nos de outros candidatos, na esperança de encontrá-la. Em vão! Este de hoje, de encerramento de campanha do Walter Braido, é o último a que compareço. Não pretendo, sequer, esperar as eleições. E nem posso! Amanhã, parto para o interior, a pedido do meu pai que, como disse, alugou uma casa para eu morar, numa medida preventiva para escapar do risco de prisão. Soube que vários membros da diretoria da União Municipal de Estudantes, que presido, com cargos, portanto, bem abaixo do meu, haviam sido presos nos últimos dias e levados para o DOPS. Nosso advogado não soube sequer dizer se ainda estavam lá ou que fim lhes fora dado. Caso eu desse bobeira, minha prisão era simples questão de tempo, de horas talvez.
Ao sair do comício, olhei, desolado, para o céu estrelado e lá estava a minha “Estrelinha”, pequenina, escondida entre milhares de outras tantas, mas radiosa, brilhante e piscando, travessa, para mim. “Onde quer que estiver, quando a saudade me bater, vou, sempre ter você diante dos meus olhos, misteriosa, angelical e inesquecível menininha travessa”, disse baixinho a mim mesmo, enquanto caminhava, cabisbaixo, na noite amena, rumo à minha casa.
Nunca mais vi Idalina. Sequer soube qualquer notícia sua.

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