Wednesday, November 26, 2008

Do sociológico ao psicológico


Pedro J. Bondaczuk

O escritor e dramaturgo austríaco, Hugo Laurenz August Hofmann, que assinava suas obras com o pseudônimo de Hugo von Hofmannsthal, um dos expoentes da brilhante geração de artistas do seu país em fins do século XIX e que, entre outras coisas, foi amigo pessoal, parceiro e colaborador do compositor alemão Richard Strauss, escreveu, em um de seus ensaios: “Os males que afligiam a humanidade tenderam a se deslocar do domínio público e sociológico para o privado e psicológico”.
Concordo, mas apenas em parte, com essa observação. Não houve nenhum deslocamento na natureza dos problemas que afetam o homem neste raiar de novo milênio. Isso poderia, até, ter acontecido, e por curtíssimo período, na época em que o escritor fez essa afirmação. Hoje, o que ocorre é um acúmulo de males. Ou seja, os de domínio público não foram sanados e, por isso, se agravaram e, a eles, vieram se juntar os desajustes individuais, privados e psicológicos.
Creio que sequer preciso fundamentar em provas essa constatação, tão óbvia ela é para pessoas minimamente informadas e com capacidade mediana de observação. Quando Hofmannsthal escreveu seu ensaio, a humanidade não havia, ainda, conhecido os horrores das duas guerras mundiais, que deixaram, somadas, um número estimado de mais de 50 milhões de mortos, pelo menos o triplo dessa cifra de feridos e prejuízos materiais tão grandes, que nunca puderam ser quantificados (sequer aproximadamente).
Não havia ocorrido o maior massacre da história, com o lançamento das bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, que, literalmente, incineraram, em questão de minutos, edifícios, monumentos, praças, casas etc. e cerca de 200 mil pessoas. Foi, até hoje, o ataque mais pavoroso, o ato de maior insânia e insensibilidade praticado pelo homem contra seus semelhantes.
As duas guerras mundiais deixaram a Europa, berço da civilização, em frangalhos, em escombros, em dantescas ruínas, tanto política, quanto econômica, social e até moralmente. A economia do continente se recuperou em pouco tempo, é verdade, graças ao famoso Plano Marshal. Mas o que se perdeu, material e espiritualmente... Foi irreversível e irrecuperável. Hoje, esses recursos, desperdiçados nesses dois surtos de horror e insânia, fazem muita falta à humanidade.
Concordem ou não comigo, o fato é que a recuperação européia se deu quase que exclusivamente às custas dos países miseráveis – da África, da Ásia e, sobretudo, da América Latina – de onde foram drenadas riquezas, sobretudo as naturais, para que os europeus pudessem se ressarcir dos danos causados por sua própria falta de juízo, de duas guerras selvagens, estúpidas e sem senso. Os problemas econômicos que afligiam a humanidade naquele tempo, que agravaram os de caráter sociológico a ponto de os tornar virtualmente insolúveis, não foram, portanto, resolvidos. Estão aí, para quem quiser ver, e cada vez mais graves.
É verdade que o século XIX esteve longe de ser pacífico. Muito sangue foi derramado, principalmente em solo europeu, com as guerras napoleônicas, os vários conflitos na Rússia, as múltiplas insurreições populares como a Comuna de Paris, o confronto franco-prussiano, e vai por aí afora. A China viveu um período de instabilidade e caos, oportunidade em que Estados Unidos, França, Grã-Bretanha e Rússia procederam a uma sistemática e continuada pilhagem nesta que é, sem dúvida, uma das mais antigas civilizações remanescentes, com cerca de cinco milênios de existência. As potências da Europa apoderaram-se das comunidades africanas como se tivessem direito a elas, drenando para seus países os por si sós escassíssimos recursos desse sofrido continente.
Como se vê, no tempo de Hofmannsthal o que não faltavam eram problemas: políticos, econômicos, militares e sociológicos. Além do que, começaram a emergir os de ordem privada, de caráter psicológico, que hoje competem palmo a palmo com os primeiros.
A Revolução Bolchevique de 1917, já em pleno século XX, foi uma esperança, uma alternativa para, senão a eliminação, pelo menos a redução das desigualdades sociais, principalmente na Rússia. Se funcionasse ali, certamente seria abraçada por outros povos. Não funcionou.
Não tardou para que essa utopia de uma sociedade sem classes, com a abolição total da propriedade privada, frustrasse os idealistas. O que na sua concepção original era para ser uma coisa, se transformou em outra, muito diferente, que nada tinha a ver com os ideais de igualdade e fraternidade dos seus mentores. Tornou-se uma férrea ditadura do Estado sobre o indivíduo, e muito mais intolerável do que o liberalismo cínico do “laissez faire” e seu selvagem sistema capitalista. Não durou (como não poderia durar) sequer um século.
Quanto aos problemas psicológicos (que um amigo muito chegado classifica, de forma irreverente e até um tanto escatológica de “frescuras de riquinhos desocupados”), vêm crescendo, de forma exponencial. Milhões de pessoas mundo afora, no afã de fugir de seus fantasmas e demônios interiores, recorrem ao álcool, às drogas e a tantos outros expedientes de fuga, inutilmente. Multidões superlotam os consultórios dos especialistas (quando não gabinetes de gurus e de charlatães), em busca de auxílio.
É certo que quem é afetado por esses males quase nunca é o desvalido, o pobre, o miserável ou o indigente. Estes já têm aflições de sobra para garantir pelo menos a refeição do dia. As estatísticas comprovam, por exemplo, que os mais altos índices de suicídio são registrados em países ricos – notadamente Suécia, Estados Unidos e Japão – cujo estilo e, principalmente, qualidade de vida são invejados por todos os povos. O problema do pobre é, aparentemente, mais simples: comida num primeiro instante. E, claro, moradia decente, educação, saúde, segurança etc.etc.etc.
Uma coisa é certa: as sociedades que aí estão são um fracasso, a despeito da sofisticada tecnologia de que dispõem. Injustas, excludentes e preconceituosas, não asseguram relacionamentos sequer minimamente civilizados entre as nações e, muito menos mesmo que um arremedo de felicidade para a imensa maioria da população mundial. Urge, pois, que se encontre (e se concretize) uma nova utopia, de igualdade, fraternidade e, sobretudo, de solidariedade neste violento, poluído, judiado e sumamente depredado Planeta. Seremos competentes para isso?

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