Pedro J. Bondaczuk
“Os maiores romancistas da humanidade foram grandes adoradores da vida. É um erro pensar que o romancista inventa histórias para fugir da vida. Pelo contrário. O que o leva a escrever romances é o desejo tumultuoso de multiplicá-la!”. Quem fez essa lúcida e pertinente afirmação foi um dos meus escritores preferidos, Érico Veríssimo, no ensaio "Os problemas do romance" (publicado no jornal Folha da Manhã, em 13 de agosto de 1939 e reproduzido no livro "Figuras do Brasil - 80 autores em 80 anos de Folha"). Essa observação cabe como uma luva em uma das figuras mais controvertidas da literatura mundial da atualidade que tive a oportunidade e a honra de conhecer pessoalmente: o norte-americano Eugene Luther Gore Vidal.
Herói para alguns, vilão para muitos, trata-se de um sujeito que, acima de tudo, não tem papas na língua. Diz e escreve o que pensa, doa a quem doer. Mas não sai por aí a falar bobagens a torto e a direito. Não busca popularidade fácil, embora a tenha para dar e vender. Polêmico por excelência, aborda todo o tipo de tema, do mais sublime ao mais escabroso, com a mesma naturalidade e criatividade. Não foge de nenhum assunto e, para ele, não existe nenhum que seja tabu.
Conheci Gore Vidal – essa figura pitoresca e controvertida, este eminente “adorador da vida” – em meados dos anos 80. Mais do que isso, cumprimentei-o, toquei-o, cheguei mesmo a dar-lhe um cordial tapinha nas costas e troquei dois dedos de prosa com ele. Isso aconteceu na noite de 25 de março de 1987, uma quarta-feira (lembro bem), em que consegui licença para me ausentar do trabalho (era, na ocasião, editor de política internacional do Correio Popular de Campinas e comentarista político desse jornal, líder, até hoje, do interior brasileiro), pois não queria perder a oportunidade que sabia que seria única. E não me decepcionei. Valeu a pena.
A apresentação de Gore Vidal foi num dos auditórios da Unicamp, superlotado, com gente saindo pelo ladrão. Além de estudantes universitários, estavam presentes professores, escritores de várias partes do Brasil e a imprensa, não somente local, mas a nacional. Havia câmeras, microfones e fotógrafos de todos os tipos e para todos os gostos espalhados por todos os cantos. Afinal, convenhamos, não é todo dia que um mito internacional nos visita.
Escrevo esse testemunho com base nas minhas anotações. Muitas delas, porém, sequer consigo decifrar (e muito menos interpretar). A iluminação do auditório não era nenhuma maravilha. A pressa de transcrever tudo o que era dito fez com que minha letra, que já não é nenhum primor, ficasse pior ainda. E a emoção de estar frente a frente com um escritor de tamanha projeção mundial contribuiu decisivamente para que muito do que anotei naquela ocasião me soe, hoje, senão incompreensível, pelo menos incoerente. Sorte que tenho boa memória.
Gore Vidal, para minha frustração, falou mais de política do que de literatura. Afinal, era o que a maioria esperava dele. Foi sarcástico em alguns momentos, irônico, em outros, mas o tempo todo bem-humorado. E arrancou, várias vezes, espontâneas gargalhadas da platéia, com suas tiradas.
Disse, por exemplo, que estava próxima a decadência das duas superpotências mundiais de então, Estados Unidos e União Soviética. Isso, quando o gigante comunista ainda existia e disputava, palmo a palmo com Tio Sam, como que num diabólico jogo de xadrez, a hegemonia político-militar no mundo. “Os jovens verão a ascensão da China e do Japão, pois o dinheiro de Nova York já está se transferindo para Tóquio”, afirmou, em tom profético.
Disse, ainda: “No ano passado (1986), falei para os russos que eles se aproximarão dos Estados Unidos. Eles gostaram. Estão apaixonados por nós e nós os odiamos tanto!” Gore lamentou o tratamento que se dá aos pobres, “profundamente odiados, porque enfeiam as pracinhas”. Em determinado momento, em clara alusão à URSS, declarou, com certo sarcasmo: “Nos Estados Unidos também não temos classes sociais, a não ser as existentes. Temos muitas eleições e não temos partidos. O país tem uma dívida externa duas vezes maior do que o Brasil. A arte de governar envolve uma boa quantidade de ilusão. A moeda é como uma questão de fé, como a Santíssima Trindade: ou você acredita, ou não”.
Questionado por alguém da platéia sobre sua carreira literária, Gore respondeu: “Eu estava na guerra e comecei a escrever. Para vocês verem como eu estava ocupado e como fui herói”, acentuou, arrancando novas gargalhadas. “Mas, na época, o romance era o centro da cultura, círculo permitido, apenas, a quem tivesse iniciação em James Joyce, Marcel Proust e Thomas Mann. Aí... veio o cinema”, completou, reticente.
Indagado sobre a influência da televisão na decadência cultural daquele tempo, Gore Vidal observou: “A TV é como a chupeta para o bebê: o mantém calmo. Se uma pessoa não se interessa, aos 12, 13 anos pelos livros, nunca vai gostar de ler. Nos Estados Unidos, 60% das pessoas são analfabetas. O que podemos fazer? Quebrar todos os aparelhos de TV?!”.
Sobre a importância dos escritores em seu país, Gore Vidal comentou: “Nos Estados Unidos os escritores são menos importantes que os jogadores de futebol americano e mais importantes do que os jogadores de beisebol. Mas somos o 24º item de leitura per capita. Eu mesmo não tive efeito nenhum, a não ser chatear. E faço isso através da TV”.
Se fosse verdade (o que duvido), o norte-americano seria muito burro! Como ignorar o autor de best-sellers como “Em um bosque amarelo”, “A cidade e o pilar”, “À procura de um rei”, “O julgamento de Paris”, “Washington”, “Juliano”, “Era Dourada” e “Lincoln”, entre tantos outros?! Seria uma heresia ignorá-lo!
Tive a oportunidade de conseguir seu autógrafo, mas, por timidez, acabei sequer pedindo. Tolice, a minha. Mas nem foi necessário. Afinal de contas, mais importante do que sua assinatura em um papel qualquer foram os ensinamentos que Gore me transmitiu naquela noite memorável e nos tantos livros de sua autoria que tive a oportunidade de ler desde então.
Certamente, voltarei a escrever sobre este ácido, mas sábio “adorador da vida”. Tenho muita, muitíssima coisa a dizer sobre esta polêmica, fascinante e até um pouco assustadora figura. Afinal, Gore Vidal (primo distante do ex-vice-presidente dos Estados Unidos e atualmente um dos maiores ambientalistas do mundo, Al Gore) é tema não somente para uma crônica ou de um ensaio, mas para todo um livro. Quem sabe?!
“Os maiores romancistas da humanidade foram grandes adoradores da vida. É um erro pensar que o romancista inventa histórias para fugir da vida. Pelo contrário. O que o leva a escrever romances é o desejo tumultuoso de multiplicá-la!”. Quem fez essa lúcida e pertinente afirmação foi um dos meus escritores preferidos, Érico Veríssimo, no ensaio "Os problemas do romance" (publicado no jornal Folha da Manhã, em 13 de agosto de 1939 e reproduzido no livro "Figuras do Brasil - 80 autores em 80 anos de Folha"). Essa observação cabe como uma luva em uma das figuras mais controvertidas da literatura mundial da atualidade que tive a oportunidade e a honra de conhecer pessoalmente: o norte-americano Eugene Luther Gore Vidal.
Herói para alguns, vilão para muitos, trata-se de um sujeito que, acima de tudo, não tem papas na língua. Diz e escreve o que pensa, doa a quem doer. Mas não sai por aí a falar bobagens a torto e a direito. Não busca popularidade fácil, embora a tenha para dar e vender. Polêmico por excelência, aborda todo o tipo de tema, do mais sublime ao mais escabroso, com a mesma naturalidade e criatividade. Não foge de nenhum assunto e, para ele, não existe nenhum que seja tabu.
Conheci Gore Vidal – essa figura pitoresca e controvertida, este eminente “adorador da vida” – em meados dos anos 80. Mais do que isso, cumprimentei-o, toquei-o, cheguei mesmo a dar-lhe um cordial tapinha nas costas e troquei dois dedos de prosa com ele. Isso aconteceu na noite de 25 de março de 1987, uma quarta-feira (lembro bem), em que consegui licença para me ausentar do trabalho (era, na ocasião, editor de política internacional do Correio Popular de Campinas e comentarista político desse jornal, líder, até hoje, do interior brasileiro), pois não queria perder a oportunidade que sabia que seria única. E não me decepcionei. Valeu a pena.
A apresentação de Gore Vidal foi num dos auditórios da Unicamp, superlotado, com gente saindo pelo ladrão. Além de estudantes universitários, estavam presentes professores, escritores de várias partes do Brasil e a imprensa, não somente local, mas a nacional. Havia câmeras, microfones e fotógrafos de todos os tipos e para todos os gostos espalhados por todos os cantos. Afinal, convenhamos, não é todo dia que um mito internacional nos visita.
Escrevo esse testemunho com base nas minhas anotações. Muitas delas, porém, sequer consigo decifrar (e muito menos interpretar). A iluminação do auditório não era nenhuma maravilha. A pressa de transcrever tudo o que era dito fez com que minha letra, que já não é nenhum primor, ficasse pior ainda. E a emoção de estar frente a frente com um escritor de tamanha projeção mundial contribuiu decisivamente para que muito do que anotei naquela ocasião me soe, hoje, senão incompreensível, pelo menos incoerente. Sorte que tenho boa memória.
Gore Vidal, para minha frustração, falou mais de política do que de literatura. Afinal, era o que a maioria esperava dele. Foi sarcástico em alguns momentos, irônico, em outros, mas o tempo todo bem-humorado. E arrancou, várias vezes, espontâneas gargalhadas da platéia, com suas tiradas.
Disse, por exemplo, que estava próxima a decadência das duas superpotências mundiais de então, Estados Unidos e União Soviética. Isso, quando o gigante comunista ainda existia e disputava, palmo a palmo com Tio Sam, como que num diabólico jogo de xadrez, a hegemonia político-militar no mundo. “Os jovens verão a ascensão da China e do Japão, pois o dinheiro de Nova York já está se transferindo para Tóquio”, afirmou, em tom profético.
Disse, ainda: “No ano passado (1986), falei para os russos que eles se aproximarão dos Estados Unidos. Eles gostaram. Estão apaixonados por nós e nós os odiamos tanto!” Gore lamentou o tratamento que se dá aos pobres, “profundamente odiados, porque enfeiam as pracinhas”. Em determinado momento, em clara alusão à URSS, declarou, com certo sarcasmo: “Nos Estados Unidos também não temos classes sociais, a não ser as existentes. Temos muitas eleições e não temos partidos. O país tem uma dívida externa duas vezes maior do que o Brasil. A arte de governar envolve uma boa quantidade de ilusão. A moeda é como uma questão de fé, como a Santíssima Trindade: ou você acredita, ou não”.
Questionado por alguém da platéia sobre sua carreira literária, Gore respondeu: “Eu estava na guerra e comecei a escrever. Para vocês verem como eu estava ocupado e como fui herói”, acentuou, arrancando novas gargalhadas. “Mas, na época, o romance era o centro da cultura, círculo permitido, apenas, a quem tivesse iniciação em James Joyce, Marcel Proust e Thomas Mann. Aí... veio o cinema”, completou, reticente.
Indagado sobre a influência da televisão na decadência cultural daquele tempo, Gore Vidal observou: “A TV é como a chupeta para o bebê: o mantém calmo. Se uma pessoa não se interessa, aos 12, 13 anos pelos livros, nunca vai gostar de ler. Nos Estados Unidos, 60% das pessoas são analfabetas. O que podemos fazer? Quebrar todos os aparelhos de TV?!”.
Sobre a importância dos escritores em seu país, Gore Vidal comentou: “Nos Estados Unidos os escritores são menos importantes que os jogadores de futebol americano e mais importantes do que os jogadores de beisebol. Mas somos o 24º item de leitura per capita. Eu mesmo não tive efeito nenhum, a não ser chatear. E faço isso através da TV”.
Se fosse verdade (o que duvido), o norte-americano seria muito burro! Como ignorar o autor de best-sellers como “Em um bosque amarelo”, “A cidade e o pilar”, “À procura de um rei”, “O julgamento de Paris”, “Washington”, “Juliano”, “Era Dourada” e “Lincoln”, entre tantos outros?! Seria uma heresia ignorá-lo!
Tive a oportunidade de conseguir seu autógrafo, mas, por timidez, acabei sequer pedindo. Tolice, a minha. Mas nem foi necessário. Afinal de contas, mais importante do que sua assinatura em um papel qualquer foram os ensinamentos que Gore me transmitiu naquela noite memorável e nos tantos livros de sua autoria que tive a oportunidade de ler desde então.
Certamente, voltarei a escrever sobre este ácido, mas sábio “adorador da vida”. Tenho muita, muitíssima coisa a dizer sobre esta polêmica, fascinante e até um pouco assustadora figura. Afinal, Gore Vidal (primo distante do ex-vice-presidente dos Estados Unidos e atualmente um dos maiores ambientalistas do mundo, Al Gore) é tema não somente para uma crônica ou de um ensaio, mas para todo um livro. Quem sabe?!
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