Thursday, August 14, 2008

Purificação do mundo


Pedro J. Bondaczuk

O homem – por mais que nos doa e nos constranja admitir – é, sobretudo, animal. É dotado dos mesmíssimos instintos e necessidades dos demais seres viventes. Não houvesse desenvolvido talentos, através das artes – manuais e espirituais – seu destino, portanto, seria igual ao dos demais companheiros de criação. Ou seja, viveria por viver, brigaria por alimentos e por parceiras para se acasalar, se reproduziria e depois desapareceria, sem deixar vestígios, sem personalidade e nem identidade.
Construir uma casa para morar é uma arte. Produzir fogo e artefatos que permitam facilidades como comer, cortar, se defender; cultivar a terra etc. também é. Desvendar os segredos da natureza e usar, com perícia, seus múltiplos recursos (como a agricultura e a pecuária) igualmente se encaixa nessa categoria.
Mas a maior obra de arte do homem (a que mudou toda sua trajetória e destino) foi a invenção da escrita. Esta possibilitou-lhe preservar um bem intangível, o que até então era de quase impossível preservação: idéias, sentimentos e experiências, que puderam ser passados de uma geração a outra, sempre com novos acréscimos. Isso, e apenas isso, permitiu a esse animal tão frágil superar os demais, muito mais fortes do que ele e dominar o planeta. Através da arte, racionalizou sentimentos. Fez um amálgama entre razão e emoção. Descobriu, desenvolveu e aplicou talentos inatos e aprendeu, sobretudo, a criar e não somente a elucubrar.
André Malraux considera cada obra-prima uma vitória do artista sobre a servidão humana aos seus instintos. A arte mudou (e muda), não somente o destino individual do artista, mas o da humanidade que se beneficia com ela. Daí o escritor francês classificá-la, no livro “Vozes do Silêncio” de “anti-destino”. O artista (e em certa medida, todos nós somos) contraria, com sua força e vigor, as expectativas originais em relação ao homem enquanto animal. Por ela, ele conquistou identidade. Tem, portanto, o direito de sonhar com a imortalidade (não a física, óbvio, que lhe é interdita, mas a da sua “criação”).
A arte tornou o homo-sapiens auto-suficiente, ao contrário dos outros animais, que dependem, exclusivamente, da natureza para sobreviver. Os herbívoros, por exemplo, não plantam as ervas de que se valem para se alimentar. Não podem viver onde estas não existam em profusão.
Já os carnívoros não criam – como os homens fazem – suas “presas”, seus “pratos favoritos”, que lhes saciem a fome e garantam a vida. Têm de caçá-las onde elas estejam. Foi a arte, pois, que fez desse animal – que tinha tudo para desaparecer como espécie, face à sua fragilidade – o verdadeiro “rei da natureza”.
Ela, contudo, nem sempre tem esse sentido prático que tão sucintamente descrevi. Hoje em dia, é entendida, apenas, em sua função estética, da criação e preservação do belo, embora não seja, como vimos, sua única manifestação. Sequer é a mais importante. Através da arte, o homem tenta (e às vezes consegue) a purificação do mundo. Vai além da realidade rude e selvagem e transcende tudo o que se espera de um animal. Aproxima-se da divindade. Torna-se, literalmente, “sua imagem e semelhança”.
O fundamento da arte (e aqui refiro-me à voltada exclusivamente para a estética), seu alicerce e principal fulcro, está no que Fernando Pessoa denomina de “sinceridade traduzida”. Ou seja, na “interpretação” que o artista faz de tudo o que vê, ouve ou sente, e que transforma, a seu gosto, com a força do seu talento, em imagens, textos e sons.
Por isso, os melhores poemas de amor (e de outro tema qualquer, ressalte-se) são os que abordam situações imaginárias, que nunca ocorreram e podem jamais ocorrer. A realidade é feia, bárbara e dramática. Não a suportaríamos em sua nudez e crueza. Mas o artista a recria e lhe dá toques de magia, de beleza, de mistério e de encantamento. Estaria mentindo? De jeito nenhum. Está sendo absolutamente sincero.
É a essa situação ideal que Pessoa classifica de “sinceridade traduzida”. Uma descrição rigorosa e fria de uma pessoa, sentimento ou cenário, não raro não se constitui, sequer, em arte. Pode ser tudo, reportagem, documento, registro, menos manifestação artística. Fernando Pessoa justifica a afirmação da seguinte forma: “Três espécies de emoção produzem grande poesia: emoções fortes, porém rápidas, captadas para a arte tão logo passaram; emoções fortes e profundas ao serem lembradas muito tempo depois; e emoções falsas, isto é, emoções sentidas no intelecto. Não a insinceridade, mas sim, uma sinceridade traduzida, é a base de toda a arte”.
Quanto mais intensa for alguma emoção, maiores serão as impossibilidades delas serem expressadas por imagens, sons e, sobretudo, palavras. Tudo o que dissermos ou escrevermos a respeito, não passará de ridícula e distorcida caricatura desse sentimento. Não se pode racionalizar o irracional.
Emoção e razão são dois compartimentos distintos e estanques. Para se expressar um grande amor, por exemplo, de forma que se torne minimamente inteligível, só há uma única maneira: é amando. E, assim mesmo, é indispensável que haja completa reciprocidade por parte da pessoa que seja alvo desse amor. Caso contrário... As descrições que se fizerem não passarão de palavras ao vento que até podem encantar os basbaques, mas que serão despidas de conteúdo.
Mais uma vez, portanto, sou levado a concordar com Fernando Pessoa, quando escreve: “Quando puderes dizer o teu grande amor, deixa o teu grande amor de ser grande”. E deixa mesmo. Qualquer um pode comprovar a veracidade dessa óbvia constatação. Basta estar atento e ter olhar de artistas (que, reitero, todos somos, em certa medida).

No comments: