Pedro J. Bondaczuk
Os amigos ligaram, aflitos, para a minha casa, na tarde do sábado, 16 de agosto, para me dar, segundo eles, uma notícia muito ruim, que eu não gostaria de receber. O primeiro telefonema veio do Rio de Janeiro, com o Marcão garantindo que Dorival Caymmi havia acabado de falecer. Fiz que acreditava nele, na certeza de se tratar de um trote. Esse cara é muito brincalhão. Aliás, essa é uma das razões da nossa amizade, pois aprecio pessoas bem-humoradas e de bem com a vida.
.
Na seqüência do dia, porém, outros amigos, aqui mesmo de Campinas, onde resido, e de Salvador, telefonaram-me, dando-me a mesma notícia. Mostrei-me, também, teimosamente incrédulo. Só poderia ser engano. Esse pessoal todo, se não estava brincando, só poderia estar equivocado ou delirando. Acessei a internet e vários sites, como o Uol, o Terra e o Yahoo, davam a mesma notícia, inclusive com vários detalhes.
Essa turma toda só poderia estar louca! Afinal, como disse Cazuza, na sua composição “Ideologia”, retratando o que também ocorreu comigo, “meus heróis morreram de overdose” (nem todos, evidentemente, pois Gandhi, John Lennon e Luther King foram assassinados) e Caymmi nunca foi viciado em nada, a não ser em encantar seus fiéis admiradores. Se tivesse morrido (e continuava e continuo duvidando), só poderia ser de “overdose de ternura, de poesia e de talento”! O que mais?
Quem me conhece, e priva da minha amizade, sabe que o bom baiano sempre foi meu ídolo. Nunca me importei em ser chamado de “velho” por causa dessa fidelidade. E isso sem que eu tenha nascido na Bahia e muito menos em Salvador. Mas amo de paixão esse Estado e tudo o que lhe diz respeito e, não somente ele, mas todo o Nordeste, onde vivi experiências inesquecíveis, que me tornaram ainda “mais brasileiro” do que sempre fui e me senti.
Caymmi, não é segredo para ninguém – ao lado de Jorge Amado; de Hector Julio Paride Barnabó, o pintor, gravador, desenhista, ilustrador, ceramista, escultor, muralista, pesquisador, historiador e jornalista (ufa!), mais conhecido como Carybe, o mais baiano de todos os argentinos; e de Mãe Menininha do Gantois – é um ícone, um símbolo, marca registrada sobretudo de Salvador.
Ademais, gênios não morrem. São imortais. Vivem na terra, no ar e nas águas deste planeta tão judiado, mas que é o nosso único lar universal. Acomodam-se em nossos corações e mentes e sobrevivem até a nossa própria morte.
Não, o bom baiano não morreu. Nem poderia. Contudo, os telefonemas dos amigos e o noticiário da imprensa serviram de pretexto para recordar os bons (e maus) momentos que seu talento me proporcionou: os passeios, os namoros, as alegrias, as tristezas, as dores-de-cotovelo etc. No embalo, coloquei um CD com seus maiores sucessos para rodar e pude me deliciar com sua voz, seu ritmo, seu encanto e sua magia. E deis asas à imaginação, trauteando, baixinho, suas composições que são as minhas preferidas..
Como lembrar de Caymmi sem cantarolar, por exemplo, músicas como “A jangada voltou só”?
“A jangada saiu
Com Chico Ferreira e Bento
A jangada voltou só.
Com certeza foi lá fora algum pé de vento
A jangada voltou só...”
Ou como “A lenda do Abaeté”?
“No Abaeté tem uma lagoa escura
Arrodeada de areia branca
Ô de areia branca
Ô de areia branca
De manhã cedo
Se uma lavadeira
Vai lavar roupa no Abaeté
Vai se benzendo
Por que diz que ouve
Ouve a zoada
Do batucajé...”
Ou como “A vizinha do lado”?
“A vizinha quando passa
Com seu vestido grená
Todo mundo diz que é boa
Mas como a vizinha não há
Ela mexe co’as cadeiras pra cá
Ela mexe co’as cadeiras pra lá
Ela mexe com o juízo
Do homem que vai trabalhar...”
Ou como este “Acalanto”, que eu cantava para a minha filha mais velha, a Tatiana, quando ela era bebê e cismava de trocar o dia pela noite, que, certamente, minha garotinha (hoje mãe do meu neto e xará) traz gravada para sempre na memória, no fundo do subconsciente?
“É tarde
A noite já vem
Todos dormem
A noite também
Só eu velo
Por você, meu bem
Dorme anjo
O boi pega neném
Lá no céu
Deixam de cantar
Os anjinhos
Foram se deitar
Mamãezinha
Precisa descansar
Dorme, anjo
Papai vai lhe ninar
Boi, boi, boi
Boi da cara preta
Pega essa menina
Que tem medo de careta”
Ou como “Dora”, que um dia cantei, com minha voz desafinada e grossa, para o meu eterno amor, hoje minha esposa, mãe e avó?
“Dora, rainha do frevo e do maracatu
Dora, rainha cafuza do maracatu
Te conheci no Recife
Dos rios cortados de pontes
Dos bairros, das fontes coloniais
Dora, chamei
Ó Dora... Ó Dora!
Eu vim à cidade
Pra ver você passar
Ó Dora
Agora no meu pensamento eu te vejo requebrando
Pra cá, ora pra lá
Meu bem!
Os clarins da banda militar tocam para anunciar
Sua Dora agora vai passar
Venham ver o que é bom
Ó Dora, rainha do frevo e do maracatu
Ninguém requebra, nem dança melhor que tu!”
Digam se é imortal ou não quem tem um repertório como este: “Trezentas e sessenta e cinco igrejas, A jangada voltou só, A lenda do Abaeté, A preta do Acarajé, A vizinha do lado, Acalanto, Acontece que sou baiano, Adalgisa, Adeus, Adeus da esposa, Afoxé, Alegre menina, Aruanda, Balada do rei das sereias, Caminhos do mar, Canção da partida, Coqueiro de Itapoá, Das rosas, De onde vens, Desafio, Desde ontem, Desenredo, Dois de fevereiro, Dora, É doce morrer no mar, Eu cheguei lá, Eu não tenho onde morar, Festa de rua, Fiz uma viagem, História pro Sinhozinho, Horas, João Valentão, Lá vem a baiana, Maracangalha, Maricotinha, Marina, Milagre, Modinha para Gabriela, Modinha para Tereza Batista, Morrer no mar, Na Baixa do Sapateiro, Na cancela, Na ribeira desse rio, Não tem solução, Navio negreiro, Nem eu, No tabuleiro da baiana, Noite de temporal, Nunca mais, O bem do mar, O cantador, O dengo que a nega tem, O mar, O que é que a baiana tem?, O vento, Oração de Mãe Menininha, Peguei um Ita no Norte, Pescaria, Promessa de pescador, Quem vem pra beira do mar, Raindrops keep falling on my head, Rainha do mar, Requebre que eu dou um doce, Retirantes, Roda pião, Sábado em Copacabana, Samba da minha terra, Santa Clara clareou, São Salvador, Saudade da Bahia, Saudade de Itapoá, Severo do pão, Só louco, Sodade matadeira, Suíte do pescador, Tão só, Temporal, Tia Nastácia, Tu, Um vestido de bolero, Vamos falar de Tereza, Vatapá, Versos escritos na água, Vida de negro, Você já foi à Bahia? e Você não sabe amar”.
Caymmi morreu? Pára com isso! Só diz essas coisas quem não conhece esse bom baiano! Ele foi pra Maracangalha – se a Nália foi ou não com ele é algo que não posso assegurar, mas que a convidou, não tenho dúvidas – e deve, a esta altura, estar gargalhando de mais um trote que deu nos amigos. Gente como ele não morre: “Fica encantada”, como diria João Guimarães Rosa. Ou se apossa, sem a menor cerimônia, dos nossos corações, onde vive para sempre, cantando as mulheres, belezas e delícias da sua, da nossa, da brasileiríssima Bahia!
Os amigos ligaram, aflitos, para a minha casa, na tarde do sábado, 16 de agosto, para me dar, segundo eles, uma notícia muito ruim, que eu não gostaria de receber. O primeiro telefonema veio do Rio de Janeiro, com o Marcão garantindo que Dorival Caymmi havia acabado de falecer. Fiz que acreditava nele, na certeza de se tratar de um trote. Esse cara é muito brincalhão. Aliás, essa é uma das razões da nossa amizade, pois aprecio pessoas bem-humoradas e de bem com a vida.
.
Na seqüência do dia, porém, outros amigos, aqui mesmo de Campinas, onde resido, e de Salvador, telefonaram-me, dando-me a mesma notícia. Mostrei-me, também, teimosamente incrédulo. Só poderia ser engano. Esse pessoal todo, se não estava brincando, só poderia estar equivocado ou delirando. Acessei a internet e vários sites, como o Uol, o Terra e o Yahoo, davam a mesma notícia, inclusive com vários detalhes.
Essa turma toda só poderia estar louca! Afinal, como disse Cazuza, na sua composição “Ideologia”, retratando o que também ocorreu comigo, “meus heróis morreram de overdose” (nem todos, evidentemente, pois Gandhi, John Lennon e Luther King foram assassinados) e Caymmi nunca foi viciado em nada, a não ser em encantar seus fiéis admiradores. Se tivesse morrido (e continuava e continuo duvidando), só poderia ser de “overdose de ternura, de poesia e de talento”! O que mais?
Quem me conhece, e priva da minha amizade, sabe que o bom baiano sempre foi meu ídolo. Nunca me importei em ser chamado de “velho” por causa dessa fidelidade. E isso sem que eu tenha nascido na Bahia e muito menos em Salvador. Mas amo de paixão esse Estado e tudo o que lhe diz respeito e, não somente ele, mas todo o Nordeste, onde vivi experiências inesquecíveis, que me tornaram ainda “mais brasileiro” do que sempre fui e me senti.
Caymmi, não é segredo para ninguém – ao lado de Jorge Amado; de Hector Julio Paride Barnabó, o pintor, gravador, desenhista, ilustrador, ceramista, escultor, muralista, pesquisador, historiador e jornalista (ufa!), mais conhecido como Carybe, o mais baiano de todos os argentinos; e de Mãe Menininha do Gantois – é um ícone, um símbolo, marca registrada sobretudo de Salvador.
Ademais, gênios não morrem. São imortais. Vivem na terra, no ar e nas águas deste planeta tão judiado, mas que é o nosso único lar universal. Acomodam-se em nossos corações e mentes e sobrevivem até a nossa própria morte.
Não, o bom baiano não morreu. Nem poderia. Contudo, os telefonemas dos amigos e o noticiário da imprensa serviram de pretexto para recordar os bons (e maus) momentos que seu talento me proporcionou: os passeios, os namoros, as alegrias, as tristezas, as dores-de-cotovelo etc. No embalo, coloquei um CD com seus maiores sucessos para rodar e pude me deliciar com sua voz, seu ritmo, seu encanto e sua magia. E deis asas à imaginação, trauteando, baixinho, suas composições que são as minhas preferidas..
Como lembrar de Caymmi sem cantarolar, por exemplo, músicas como “A jangada voltou só”?
“A jangada saiu
Com Chico Ferreira e Bento
A jangada voltou só.
Com certeza foi lá fora algum pé de vento
A jangada voltou só...”
Ou como “A lenda do Abaeté”?
“No Abaeté tem uma lagoa escura
Arrodeada de areia branca
Ô de areia branca
Ô de areia branca
De manhã cedo
Se uma lavadeira
Vai lavar roupa no Abaeté
Vai se benzendo
Por que diz que ouve
Ouve a zoada
Do batucajé...”
Ou como “A vizinha do lado”?
“A vizinha quando passa
Com seu vestido grená
Todo mundo diz que é boa
Mas como a vizinha não há
Ela mexe co’as cadeiras pra cá
Ela mexe co’as cadeiras pra lá
Ela mexe com o juízo
Do homem que vai trabalhar...”
Ou como este “Acalanto”, que eu cantava para a minha filha mais velha, a Tatiana, quando ela era bebê e cismava de trocar o dia pela noite, que, certamente, minha garotinha (hoje mãe do meu neto e xará) traz gravada para sempre na memória, no fundo do subconsciente?
“É tarde
A noite já vem
Todos dormem
A noite também
Só eu velo
Por você, meu bem
Dorme anjo
O boi pega neném
Lá no céu
Deixam de cantar
Os anjinhos
Foram se deitar
Mamãezinha
Precisa descansar
Dorme, anjo
Papai vai lhe ninar
Boi, boi, boi
Boi da cara preta
Pega essa menina
Que tem medo de careta”
Ou como “Dora”, que um dia cantei, com minha voz desafinada e grossa, para o meu eterno amor, hoje minha esposa, mãe e avó?
“Dora, rainha do frevo e do maracatu
Dora, rainha cafuza do maracatu
Te conheci no Recife
Dos rios cortados de pontes
Dos bairros, das fontes coloniais
Dora, chamei
Ó Dora... Ó Dora!
Eu vim à cidade
Pra ver você passar
Ó Dora
Agora no meu pensamento eu te vejo requebrando
Pra cá, ora pra lá
Meu bem!
Os clarins da banda militar tocam para anunciar
Sua Dora agora vai passar
Venham ver o que é bom
Ó Dora, rainha do frevo e do maracatu
Ninguém requebra, nem dança melhor que tu!”
Digam se é imortal ou não quem tem um repertório como este: “Trezentas e sessenta e cinco igrejas, A jangada voltou só, A lenda do Abaeté, A preta do Acarajé, A vizinha do lado, Acalanto, Acontece que sou baiano, Adalgisa, Adeus, Adeus da esposa, Afoxé, Alegre menina, Aruanda, Balada do rei das sereias, Caminhos do mar, Canção da partida, Coqueiro de Itapoá, Das rosas, De onde vens, Desafio, Desde ontem, Desenredo, Dois de fevereiro, Dora, É doce morrer no mar, Eu cheguei lá, Eu não tenho onde morar, Festa de rua, Fiz uma viagem, História pro Sinhozinho, Horas, João Valentão, Lá vem a baiana, Maracangalha, Maricotinha, Marina, Milagre, Modinha para Gabriela, Modinha para Tereza Batista, Morrer no mar, Na Baixa do Sapateiro, Na cancela, Na ribeira desse rio, Não tem solução, Navio negreiro, Nem eu, No tabuleiro da baiana, Noite de temporal, Nunca mais, O bem do mar, O cantador, O dengo que a nega tem, O mar, O que é que a baiana tem?, O vento, Oração de Mãe Menininha, Peguei um Ita no Norte, Pescaria, Promessa de pescador, Quem vem pra beira do mar, Raindrops keep falling on my head, Rainha do mar, Requebre que eu dou um doce, Retirantes, Roda pião, Sábado em Copacabana, Samba da minha terra, Santa Clara clareou, São Salvador, Saudade da Bahia, Saudade de Itapoá, Severo do pão, Só louco, Sodade matadeira, Suíte do pescador, Tão só, Temporal, Tia Nastácia, Tu, Um vestido de bolero, Vamos falar de Tereza, Vatapá, Versos escritos na água, Vida de negro, Você já foi à Bahia? e Você não sabe amar”.
Caymmi morreu? Pára com isso! Só diz essas coisas quem não conhece esse bom baiano! Ele foi pra Maracangalha – se a Nália foi ou não com ele é algo que não posso assegurar, mas que a convidou, não tenho dúvidas – e deve, a esta altura, estar gargalhando de mais um trote que deu nos amigos. Gente como ele não morre: “Fica encantada”, como diria João Guimarães Rosa. Ou se apossa, sem a menor cerimônia, dos nossos corações, onde vive para sempre, cantando as mulheres, belezas e delícias da sua, da nossa, da brasileiríssima Bahia!
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