Wednesday, February 13, 2008

Artístico ou tétrico?


Pedro J. Bondaczuk

As artes (qualquer delas) estão entre as atividades mais nobres do único ser racional da natureza. Mostram a vida não somente como ela é, mas, principalmente, como poderia e deveria ser (e que, de fato, poderá se concretizar, caso atuemos positivamente para torná-la ideal). Essa afirmação, convenhamos, é consensual (ou quase). Ao fazê-la, estou longe de ser original ou criativo, eu sei. E sequer tenho a intenção de o ser.
Nem todos, é verdade, têm habilidades artísticas. Mas ninguém é despido de sensibilidade a ponto de não apreciar um belo poema, um quadro pintado com maestria, uma sinfonia harmoniosa e marcante ou uma escultura executada com perícia. O artista valoriza, sobretudo, a beleza que nos rodeia e que dá encanto à vida.
O homem pode criar arte com seu próprio corpo, com sua vida, com sua experiência pessoal, embora esta pareça fútil, trivial e sem importância. Nunca é. Pode evitar que os que a conheçam incorram nos mesmos erros que incorremos. Nossas experiências pessoais, por corriqueiras que pareçam, portanto, podem ter grande importância para nossos companheiros "de aventura", para as pessoas do nosso tempo e, principalmente, para as gerações futuras.
As mesmas fraquezas que detectamos em nós, e que buscamos esconder dos outros, para não deslustrar a nossa "imagem", são as dos que nos rodeiam, que igualmente as escondem. A arte é uma forma, portanto, de catarse, quer do artista, quer dos apreciadores.
Estas considerações vêm a propósito de recente documentário, exibido pelo canal de televisão a cabo “History Chanel”, sobre a “obra” de Gunther von Hagens, mais conhecido, mundialmente, como “Escultor de Cadáveres”, “Salvador Dali do Corpo Humano”, mas, principalmente, como “Doutor Frankenstein”.
E qual a razão dessas designações? O polêmico “artista” alemão (entre aspas mesmo) é chamado dessa forma por causa da matéria-prima que usa para elaborar suas tétricas “esculturas” (também entre aspas). Hagens, que começou suas atividades em 1977 e já esteve várias vezes no Brasil, para dar cursos de anatomia em faculdades de medicina de São Paulo e do Rio de Janeiro, desenvolveu novo método de mumificação de corpos.
Até aí, tudo bem. Sua atividade até que teria lá sua utilidade caso se restringisse, apenas, a estudantes da área médica. Todavia, ele cismou de achar que seu método de conservação de cadáveres era uma forma de fazer “arte”. Como não faltam imbecis, malucos, necrófilos e pessoas mentalmente perturbadas no mundo (aliás, abundam) ganhou adeptos, fez fama e principalmente amealhou fortuna, desrespeitando o ser humano no seu momento mais crítico, quando não tem a mínima possibilidade de defesa: na morte.
Desde 1995, Hagens vem expondo “esculturas”, feitas com pedaços de cadáveres, em mostras denominadas “Body Worlds”, pelo mundo afora. Ganhou rios de dinheiro e, desde então, vem gerando polêmicas de toda a sorte (mas ficando cada vez mais rico, ressalte-se) nos campos não somente das artes, mas do Direito, da religião, da filosofia etc. etc. etc. Sua primeira exposição (a de 1995) foi em Tóquio e atraiu milhares de curiosos. O esperto alemão já expôs suas aberrações em pelo menos dez países. Chamou a atenção de mais de vinte milhões de pessoas que acorreram para ver as suas “peças” e arrecadou, em ingressos, a “bagatela” de R$ 600 milhões.
Nas “Body Worlds” é exposto, por exemplo, um cadáver humano montado em um corpo preservado de cavalo, segurando um cérebro com a mão esticada. E há idiotas que vêem criatividade e “beleza” nessa aberração, que não é, claro, a única. Quem visita esses circos dos horrores tem a oportunidade de ver, também, restos mortais de uma mulher, como que nadando no ar, cortada ao meio, com vísceras à mostra. Mas a peça mais polêmica, entre centenas e centenas exibidas, é uma grávida de oito meses, dissecada, com o feto aparecendo no útero.
A técnica de conservação desenvolvida por Hagens é a “plastinação”. Consiste na substituição de substâncias orgânicas de corpos mortos por materiais plásticos (silicone, resina de epóxi e poliéster), o que permite que os materiais molhados do cadáver adquiram plasticidade e permaneçam secos, maleáveis, inodoros e duráveis indefinidamente. As “peças” retêm seu relevo original e a identidade celular.
Tomei conhecimento da existência desse tétrico “Doutor Frankenstein” contemporâneo – e de sua incrível “façanha” – na revista “Superinteressante” de janeiro de 2004. Desde então, venho ensaiando escrever a respeito, sem encontrar palavras adequadas para expressar todo o meu horror e repulsa por esse tipo de exploração, que contraria todos os meus princípios éticos, jurídicos e estéticos.
Hagens e sua esposa Angelina Whelley, comandam três “fábricas de mortos”, conforme informações da revista alemã “Der Spiegel”. A matriz situa-se em Heidelberg, na Alemanha e as filiais localizam-se em Bishek, na Quirquizia (ex-República da extinta URSS) e em Dalian, na China (esta, a maior de todas, construída em terreno de 30.000 metros quadrados, a um custo de R$ 37 milhões e que conta com 170 empregados). E tudo com autorização das autoridades e sob o olhar complacente e bestificado das populações locais. Ninguém proíbe, ninguém protesta, ninguém se opõe. E múltiplos imbecis consideram isso como sendo “arte”. Valha-me Deus!
De acordo com a “Der Spiegel”, apenas em novembro de 2003, os empregados chineses de Hagens trabalhavam na preparação de mais de 600 defuntos, 3.900 pedaços humanos (como peles, braços, cérebros e órgãos sexuais), além de 180 fetos, embriões e recém-nascidos. Os fornecedores de cadáveres para as “fábricas” da Quirquizia e China são delegacias de policia, asilos de velhos, presídios, hospitais e universidades. Imaginem quantos corpos esses pilantras já profanaram, nos últimos cinco anos, a pretexto de fazerem “arte”?!
Cadáveres humanos são necessários para o ensino de medicina. Até o século XIX, todavia, sua utilização era rigorosamente proibida por praticamente todos os governos. Dizem que Leonardo da Vinci produziu seus magníficos e perfeitos esboços de anatomia dissecando, clandestinamente, defuntos em vários cemitérios. Nunca os utilizou, no entanto, como “obras de arte”. Diz-se o mesmo de Ambroise Paré, que no século XVI revolucionou a ciência médica, com seus tratados sobre cirurgia.
Fui estudante de medicina e participei de várias aulas de anatomia. Estas, invariavelmente, eram precedidas de reverentes orações em memória das pessoas cujos corpos nos serviriam para estudo, embora a faculdade em que estudei fosse secular. Em 2004, entrevistado pela Superinteressante a propósito da matéria sobre Hagens, o Dr. Serafim Cricenti, então vice-presidente da Sociedade Brasileira de Anatomia, assegurou: “Os alunos aprendem a ter um comportamento respeitoso em relação aos cadáveres”. E aprendem mesmo. Pude testemunhar isso.
Para mim, arte não é essa aberração vista nas “Body Worlds” e nas fábricas de mortos. É, sim, manifestação instintiva, natural e selvagem. Mas de respeito, bom-senso e, sobretudo, bom-gosto (sei que muitos vão me contestar, mas não me importo). Trata-se da única forma de sermos autênticos. É a nossa oportunidade de interpretar o mundo, a carta de alforria, a absoluta e irrestrita liberdade.
Ninguém é forçado a ser artista: músico, escritor, pintor, escultor, poeta... É uma escolha pessoal e intransferível, questão de vocação ou de talento. Ou se é ou não se é artista, não existe meio-termo. Fazer arte é o modo de que cada pessoa dispõe para ser livre, para impor a personalidade, para deixar a marca no mundo. A aceitação ou não do que o artista produzir vai depender de critérios subjetivos de apreciação e avaliação dos destinatários.
Mas a arte não comporta ataques e nem desrespeito a quem quer que seja, embora não admita censura. Esta tem que ser a do próprio artista. Sua liberdade de escolha tem que ser sempre respeitada (e, em geral, é). Só a ele cabe decidir sobre o que, quando, como e onde criar.
Mas Hagens não cria. Limita-se a transformar o que a natureza criou. Não é, pois, artista. Considerá-lo como tal é corromper a mais nobre e admirável de todas as atividades humanas. Não passa de mero charlatão, com habilidades é certo, mas tétrico e trágico. A arte, do jeito que a entendo, não é essa aberração. É a nossa carta de alforria. É o nosso "DNA". É o nosso ser. É a nossa vez. É a nossa voz...e única...

1 comment:

Anonymous said...

o grotesco faz parte da arte.