Sunday, February 17, 2008

DIRETO DO ARQUIVO


O estigma do caudilhismo


Pedro J. Bondaczuk


A democracia, reimplantada na América Latina a partir de 1983, volta a ficar sob ameaça, com a segunda rebelião militar seguida que ocorre na Argentina nas últimas 48 horas e outros acontecimentos do gênero em toda a região. Desta feita, o motim se verifica na Escola de Infantaria do Campo de Maio. E acontece horas depois da rendição, ocorrida anteontem, dos oficiais que haviam se rebelado na quinta-feira, na cidade de Córdoba.

O estigma dessa maldição, que é o caudilhismo, que pesa sobre os povos latino-americanos, volta, portanto, a se manifestar, e desta vez num dos países em que o processo de redemocratização foi dos mais bonitos, posto que mais dramáticos. E naquele, também, (é mister frisar) que mais sofreu com a ditadura, por causa da chamada “guerra suja” ocorrida na década passada, que resultou em dezenas de milhares de pessoas assassinadas, ou dadas, simplesmente (para efeito oficial), como “desaparecidas”.

A população argentina, tomada de surpresa com o motim, cerrou fileiras em torno da liderança do presidente Raul Alfonsin. Governos democráticos, de todo o continente, hipotecaram solidariedade a esse governante. E todos os amantes da liberdade e da democracia vêm mantendo vigília, desde quando a crise começou, no afã de evitar a ocorrência de um novo e possível golpe militar de Estado.

Mas a Argentina não é o único país ameaçado de fechamento político. Parece que a maior parte do continente (senão a sua totalidade), mergulhada nas dificuldades criadas pelos credores internacionais com suas arbitrárias exigências de pagamento da extorsiva dívida externa, além de juros leoninos e descabidos, drenando, para os todopoderosos bancos de países ricos, seus já de per si parcos recursos, está prestes a entrar noutro de seus periódicos ciclos golpistas.

O Equador, por exemplo, viveu, há dois meses, o sobressalto da ameaça às suas instituições, com a rebelião de pára-quedistas de elite, ocorrida numa base aérea, próxima a Guayaquil, e com o seqüestro, por parte dos amotinados, do próprio presidente da República, Leon Febres Cordero, que além de ser desrespeitado como autoridade e como homem, de ser humilhado e agredido, chegou a sofrer sérias ameaças de morte por parte dos seguidores do líder do motim, o general Frank Vargas Pazzos.

Somente o espírito de patriotismo da atual cúpula militar equatoriana impediu que ocorresse o pior naquele país. O Peru, por outro lado, mal saiu de uma perigosa crise, gerada pelo descontentamento com a criação de um Ministério da Defesa, englobando as pastas do Exército, Marinha e Aeronáutica, e já há rumores de fermentação de uma nova crise. E a situação nesse país ainda pode, de fato, ter desdobramentos perigosos para as instituições, apesar da aparência (enganadora) de calma que se procura passar para a população.

Na Bolívia, o presidente Victor Paz Estenssoro, às voltas com outra rodada de confrontos com sindicalistas, está fechando, cada dia mais, o regime, com a suspensão de vários direitos constitucionais. Já se comenta em surdina, inclusive, que o Estado recordista de golpes no mundo está na iminência de sofrer mais um, faltando, tão somente, o estopim para que se concretize. Tomara que não seja verdade.

Até a violenta Colômbia, que apesar da atuação ininterrupta das guerrilhas esquerdistas, conseguiu sair incólume do ciclo de caudilhismo que varreu a América Latina a partir dos anos 60, e do qual a maioria dos países da região mal conseguiu se livrar, está bastante ameaçada, agora, de deixar de ser a louvável exceção que foi até aqui.

Não foi por acaso, e nem por maldade, que o escritor peruano, Mário Vargas Llosa, observou, recentemente, num dos seus artigos, que “o mundo ocidental não acredita na democracia latino-americana”. E nem poderia acreditar!

Na Argentina, por exemplo, nenhum presidente da República eleito pelo voto popular conseguiu cumprir um mandato completo desde 1930. Pretextos, por outro lado, nunca faltaram para a ocorrência de golpes de Estado no continente.

Ora foi o “perigo comunista” apontado como desculpa para a ruptura do estado de Direito, ora foram acusações (quase nunca fundamentadas em provas) de corrupção de governos civis e ora surgiram questões novas para servirem de pretexto, como a atual, na Argentina, que envolve o julgamento dos militares que se excederam em práticas de repressão aos opositores, prendendo arbitrariamente, torturando barbaramente, assassinando covardemente e “sumindo” com pessoas, tachadas como “subversivas”.

Não é por acaso, também, que intelectuais latino-americanos e europeus demonstram imenso desencanto quando analisam as nossas instituições e se reportam à sua fragilidade. É o caso, por exemplo, do intelectual mexicano Octávio Paz, que no seu livro “Labirinto da Solidão”, observa, desgostoso: “A mentira instalou-se em nossos povos quase constitucionalmente. O dano foi incalculável e alcança zonas muito profundas do nosso ser...Daí que a luta contra a mentira oficial e constitucional seja o primeiro passo de toda tentativa séria de reforma”.

Nossos governos não têm respaldo popular (e as forças de segurança emergem também do povo) principalmente por falta de sinceridade. E por causa de uma certa desonestidade, senão de propósitos, pelo menos de métodos para colocar em prática suas propaladas “boas intenções”.

Democracia, na América Latina, passou a soar como uma palavra vazia de conteúdo, desgastada pelo uso inadequado. Nossos regimes civis, por exemplo, via de regra, são comprometidos com grupos minoritários, locais ou externos, as chamadas “elites”, em geral cínicas e retrógradas, e por isso não sensibilizam o povo, não conquistam o seu respeito e muito menos a sua simpatia. E as massas optam, como forma de defesa, por se alienar da política, numa atitude suicida e inconseqüente, mas fartamente justificável.

Contudo este é o momento propício (pelo menos para os argentinos), de civis e militares se irmanarem e decidirem dar um basta aos aventureirismos salvacionistas, aos atos caudilhescos tresloucados e às atitudes que, sob o pretexto de defesa da pátria, só servem para enxovalhar o país no concerto internacional, perante os olhos de sociedades nacionais em estados mais avançados de liberdade, de compreensão e, conseqüentemente, de civilização. Basta de golpes! Basta de guerrilhas! Basta de “revoluções salvadoras”, que nada salvam, na América Latina! Já é hora de se parar de mentir para o povo!

(Artigo publicado na página 16, Internacional, do Correio Popular, em 19 de abril de 1987).

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