Pedro J. Bondaczuk
I
Soares acordou na praia, com um sol ardido queimando-lhe a pele e a luz, que nesse momento incidia diretamente em seu rosto, ofuscando-lhe os olhos. Demorou para entender onde estava. A cabeça doía-lhe terrivelmente. O estômago estava embrulhado, como se houvesse engolido alguns quilos de estopa e estava com muita azia.
Quis saber as horas, mas... cadê o rolex folheado a ouro, que Marisa havia lhe dado no aniversário? Sumira. Percebeu que estava sem a camisa de malha, de grife, com que saíra do hotel e sem os seus tênis importados. Enquanto dormia, amigos do alheio fizeram-lhe uma limpeza em regra, sem que sequer ele despertasse do seu sono etílico. Da carteira, nem pensar. Ainda bem que não andava com os documentos originais, mas sempre portava cópias xerográficas autenticadas.
Tivera sorte dos ladrões não terem levado sua bermuda. Caso o fizessem, estaria numa enrascada tremenda. Poderia, a esta altura, estar bastante ferido ou, quem sabe, morto. Olhando para o mar, viu vários surfistas pegando onda e ficou algum tempo observando as manobras, enquanto recobrava, de vez, a consciência.
Subitamente, lembrou-se que o Carnaval acabou. Era quarta-feira e teria que retornar a São Paulo, ao corre-corre do dia a dia, às tensões e turbulências de uma das cidades mais dinâmicas e agitadas do mundo. “Tristeza não tem fim/felicidade sim”, veio-lhe à mente o estribilho da composição de Luís Bonfá, que serviu de trilha-sonora para o filme “Orfeu no Carnaval”, em suas duas versões.
Ficou de pé, mas ainda estava um pouco zonzo e trôpego. Depois de alguns minutos, porém, a tonteira passou e Soares dirigiu-se ao hotel em que estava hospedado, na Avenida Ataulfo Paiva, no Leblon.
Tomou uma água tônica, no frigobar, antes de uma boa ducha fria. Ao sair do chuveiro, já retemperado, tomou outra tônica e o estômago parou de incomodar. A dorzinha de cabeça enjoada aos poucos, também, foi cedendo, mas não cessou por completo. Mas Soares estava muito cansado. Os músculos dos braços e das pernas estavam doloridos, em decorrência do esforço intenso dos últimos quatro dias. Tinha vontade de cair na cama e dormir, dormir, dormir o dia todo, mas não podia. Marisa, certamente, estaria à sua espera no Aeroporto de Congonhas.
II
Maurício Soares era um sujeito de muita sorte, bem-sucedido, profissional e afetivamente, na vida. Tirara a sorte grande ao conhecer Marisa, mulher de beleza estonteante e, sobretudo, rica. Riquíssima. De abastada e tradicional família “quatrocentona” paulistana. Herdara, do sogro, além da mulher, uma bela mansão nos Jardins e o comando da sua construtora.
Oriundo de uma família de classe média, Soares era um tipo fascinante, com pinta de galã e todo jeitão de modelo. Alto, com mais de 1,80m, sarado, era moreno, de olhos verdes e cabelos sempre cuidadosamente aparados e bem-penteados. Não era por acaso que na faculdade era conhecido como Mauricinho. Era uma dupla referência: ao nome e à condição de vida. É dessa forma que os sujeitos certinhos e bem-comportados são, via de regra, chamados pelos que não são assim.
Fora um aluno brilhante no curso de engenharia do Mackenzie. Conhecera Marisa num congresso de estudantes. Ela cursava Psicologia na PUC e a paixão fora súbita e fulminante. Seis meses depois de haverem se conhecido, casaram-se e ganharam, de presente do sogro, uma lua-de-mel nas ilhas gregas. Estavam casados há cinco anos, mas não tinham filhos. Planejavam ter o primeiro ainda neste ano.
Soares tinha, pelo menos da boca pra fora, uma característica que o distinguia dos outros rapazes da sua geração: era moralista ao extremo. Vivia fazendo sermões contra a degradação dos costumes. Carnaval?! Nem pensar! Pelo menos da boca pra fora. Criticava essa festa popular a não mais poder. Condenava as pessoas desnudas, a perda de tempo “com uma bobagem tão grande”, os excessos de bebida que se cometiam nessa época e tudo o mais. Principalmente a permissividade sexual. “É uma vergonha”, arrematava, invariavelmente, sempre que o assunto vinha à baila.
Na verdade, porém, Soares era um dissimulado. Todos os anos, na época do Carnaval, dizia para a esposa que ia participar de retiros espirituais. Ora era em Itaici, na cidade de Indaiatuba, ora em Caxambu, ora em outra pequena localidade qualquer. Mas nunca levava Marisa com ele. “Você vai achar muito chato”, dizia, carinhosamente, à esposa. Na verdade, Soares ia, mesmo, era para o Rio de Janeiro, onde, invariavelmente, se esbaldava nas quatro noites de folia. Freqüentava todos os bailes do Scala, famosa casa de espetáculos situada na Rua Afrânio de Melo Franco, no Leblon. Vez por outra, dava uma passadinha no Copacabana Palace.
Neste ano, a desculpa que deu para Marisa, para viajar, foi até mais esfarrapada do que em anos anteriores. Disse que iria ao Rio de Janeiro fechar um novo contrato da construtora, muito vantajoso e que vinha sendo negociado há meses. A história, diga-se a seu favor, era verdadeira, mas apenas em parte. Encontrar, no Rio, quem estivesse trabalhando em pleno Carnaval soaria inverossímil a qualquer pessoa, menos para Marisa. Ela achava que conhecia o marido e confiava cegamente nele. Na verdade, o tal contrato existia, mas fora fechado uma semana antes pelo diretor-financeiro da empresa.
III
Soares aproveitou, como nunca, as quatro noites de folia no Rio. No sábado, no tradicional Baile do Vermelho e Preto, do Flamengo, enrabichou-se por uma morena espetacular, dessas de fechar o comércio, e decidiu que não voltaria para casa sem a comer. Tentou a noite toda se aproximar dela, mas nada. Quase teve que sair no tapa com o acompanhante da beldade, o que só não aconteceu por causa da turma do “deixa disso”.
No domingo, tentou de novo, em vão. A morena até que chegou a lhe sorrir, mas não quis conversa. No Baile do Gala Gay, que é tradicional e se realiza no Scala desde 1980, voltou a assediar a arredia Colombina. Chegaram a dançar juntos, mas nada de aproximação mais íntima. Finalmente, na terça-feira, ela compareceu sem acompanhante. Dançaram a noite toda e por volta das duas horas da madrugada, convidou-a para sair. A morena topou.
Nem passou pela cabeça de Soares levar sua “presa” para algum motel. Dirigiram-se, isto sim, para o Arpoador, que separa a praia de Copacabana das de Ipanema e Leblon e ali, atrás das pedras, fizeram sexo apressado, urgente, mas delirante. O rapaz nem se lembrou da camisinha. Foi a seco mesmo. A bebida, o cansaço e a saciedade sexual, levaram Soares a aterrar. Virtualmente, saiu do ar. E foi assim, e ali, que o encontramos no amanhecer da Quarta-Feira de Cinzas, e despojado dos seus bens.
IV
Soares cochilou no curto trajeto da ponte-aérea, entre o Aeroporto Santos Dumont e Congonhas. Seu aspecto era de exaustão. Os olhos estavam vermelhos e, ao redor deles, estava arroxeado e intumescido, indicando falta de sono. Mas estava impecavelmente trajado em seu terno azul-marinho, com a barba bem-feita e os cabelos rigorosamente no lugar.
Ao desembarcar, Marisa estava à sua espera.
--- Tudo bem, querido?
--- Tudo bem, mas foram quatro dias terríveis, desgastantes.
--- É, estou vendo. Você trabalha muito, Maurício! Precisa tirar um tempo para se divertir e para descansar!
Logo, Marisa notou a falta do rolex. Soares nunca andava sem ele.
--- Cadê o seu relógio, meu bem?
--- Ah, que cabeça a minha! Devo ter esquecido no criado-mudo do hotel!
E os dois não tocaram mais no assunto. Ao chegarem em casa, Marisa ligou a TV e serviu um cafezinho ao marido, para ver se esse recuperava o ânimo. Seu aspecto era de absoluta exaustão. Estava passando, nesse momento, uma reportagem sobre os bailes de Carnaval pelo Brasil afora, inclusive, claro, do Rio. Subitamente, como se fosse acidental, Maurício deixou cair a xícara, esparramando o líquido quente por suas calças.
--- Que desastrado que eu sou!
--- Espere que vou buscar um pano úmido para enxugar.
Nesse momento, a imagem exibia o baile do Scala e, em close, lá estava a figura de Soares, abraçado à tal morena. Marisa não viu a cena. Fora à copa buscar o pano para enxugar o café derramado.
Ao voltar, comentou:
--- Você chegou a ver pela TV o desfile das escolas-de-samba do Rio? Foi muito bonito!
--- Carnaval, ora Carnaval! É por isso que esse País não vai pra frente. O povo só pensa no que não presta, em folia, em futebol e em mulher! Com essa matéria-prima não se faz, mesmo, um país decente!
Marisa não disse nada. Limitou-se a abraçar, carinhosamente, o marido, orgulhosa pelo privilégio de ter como companheiro uma jóia tão rara como aquela...
--- Vai deitar, meu bem, vai deitar. Você já trabalhou demais e merece um bom descanso como prêmio!
I
Soares acordou na praia, com um sol ardido queimando-lhe a pele e a luz, que nesse momento incidia diretamente em seu rosto, ofuscando-lhe os olhos. Demorou para entender onde estava. A cabeça doía-lhe terrivelmente. O estômago estava embrulhado, como se houvesse engolido alguns quilos de estopa e estava com muita azia.
Quis saber as horas, mas... cadê o rolex folheado a ouro, que Marisa havia lhe dado no aniversário? Sumira. Percebeu que estava sem a camisa de malha, de grife, com que saíra do hotel e sem os seus tênis importados. Enquanto dormia, amigos do alheio fizeram-lhe uma limpeza em regra, sem que sequer ele despertasse do seu sono etílico. Da carteira, nem pensar. Ainda bem que não andava com os documentos originais, mas sempre portava cópias xerográficas autenticadas.
Tivera sorte dos ladrões não terem levado sua bermuda. Caso o fizessem, estaria numa enrascada tremenda. Poderia, a esta altura, estar bastante ferido ou, quem sabe, morto. Olhando para o mar, viu vários surfistas pegando onda e ficou algum tempo observando as manobras, enquanto recobrava, de vez, a consciência.
Subitamente, lembrou-se que o Carnaval acabou. Era quarta-feira e teria que retornar a São Paulo, ao corre-corre do dia a dia, às tensões e turbulências de uma das cidades mais dinâmicas e agitadas do mundo. “Tristeza não tem fim/felicidade sim”, veio-lhe à mente o estribilho da composição de Luís Bonfá, que serviu de trilha-sonora para o filme “Orfeu no Carnaval”, em suas duas versões.
Ficou de pé, mas ainda estava um pouco zonzo e trôpego. Depois de alguns minutos, porém, a tonteira passou e Soares dirigiu-se ao hotel em que estava hospedado, na Avenida Ataulfo Paiva, no Leblon.
Tomou uma água tônica, no frigobar, antes de uma boa ducha fria. Ao sair do chuveiro, já retemperado, tomou outra tônica e o estômago parou de incomodar. A dorzinha de cabeça enjoada aos poucos, também, foi cedendo, mas não cessou por completo. Mas Soares estava muito cansado. Os músculos dos braços e das pernas estavam doloridos, em decorrência do esforço intenso dos últimos quatro dias. Tinha vontade de cair na cama e dormir, dormir, dormir o dia todo, mas não podia. Marisa, certamente, estaria à sua espera no Aeroporto de Congonhas.
II
Maurício Soares era um sujeito de muita sorte, bem-sucedido, profissional e afetivamente, na vida. Tirara a sorte grande ao conhecer Marisa, mulher de beleza estonteante e, sobretudo, rica. Riquíssima. De abastada e tradicional família “quatrocentona” paulistana. Herdara, do sogro, além da mulher, uma bela mansão nos Jardins e o comando da sua construtora.
Oriundo de uma família de classe média, Soares era um tipo fascinante, com pinta de galã e todo jeitão de modelo. Alto, com mais de 1,80m, sarado, era moreno, de olhos verdes e cabelos sempre cuidadosamente aparados e bem-penteados. Não era por acaso que na faculdade era conhecido como Mauricinho. Era uma dupla referência: ao nome e à condição de vida. É dessa forma que os sujeitos certinhos e bem-comportados são, via de regra, chamados pelos que não são assim.
Fora um aluno brilhante no curso de engenharia do Mackenzie. Conhecera Marisa num congresso de estudantes. Ela cursava Psicologia na PUC e a paixão fora súbita e fulminante. Seis meses depois de haverem se conhecido, casaram-se e ganharam, de presente do sogro, uma lua-de-mel nas ilhas gregas. Estavam casados há cinco anos, mas não tinham filhos. Planejavam ter o primeiro ainda neste ano.
Soares tinha, pelo menos da boca pra fora, uma característica que o distinguia dos outros rapazes da sua geração: era moralista ao extremo. Vivia fazendo sermões contra a degradação dos costumes. Carnaval?! Nem pensar! Pelo menos da boca pra fora. Criticava essa festa popular a não mais poder. Condenava as pessoas desnudas, a perda de tempo “com uma bobagem tão grande”, os excessos de bebida que se cometiam nessa época e tudo o mais. Principalmente a permissividade sexual. “É uma vergonha”, arrematava, invariavelmente, sempre que o assunto vinha à baila.
Na verdade, porém, Soares era um dissimulado. Todos os anos, na época do Carnaval, dizia para a esposa que ia participar de retiros espirituais. Ora era em Itaici, na cidade de Indaiatuba, ora em Caxambu, ora em outra pequena localidade qualquer. Mas nunca levava Marisa com ele. “Você vai achar muito chato”, dizia, carinhosamente, à esposa. Na verdade, Soares ia, mesmo, era para o Rio de Janeiro, onde, invariavelmente, se esbaldava nas quatro noites de folia. Freqüentava todos os bailes do Scala, famosa casa de espetáculos situada na Rua Afrânio de Melo Franco, no Leblon. Vez por outra, dava uma passadinha no Copacabana Palace.
Neste ano, a desculpa que deu para Marisa, para viajar, foi até mais esfarrapada do que em anos anteriores. Disse que iria ao Rio de Janeiro fechar um novo contrato da construtora, muito vantajoso e que vinha sendo negociado há meses. A história, diga-se a seu favor, era verdadeira, mas apenas em parte. Encontrar, no Rio, quem estivesse trabalhando em pleno Carnaval soaria inverossímil a qualquer pessoa, menos para Marisa. Ela achava que conhecia o marido e confiava cegamente nele. Na verdade, o tal contrato existia, mas fora fechado uma semana antes pelo diretor-financeiro da empresa.
III
Soares aproveitou, como nunca, as quatro noites de folia no Rio. No sábado, no tradicional Baile do Vermelho e Preto, do Flamengo, enrabichou-se por uma morena espetacular, dessas de fechar o comércio, e decidiu que não voltaria para casa sem a comer. Tentou a noite toda se aproximar dela, mas nada. Quase teve que sair no tapa com o acompanhante da beldade, o que só não aconteceu por causa da turma do “deixa disso”.
No domingo, tentou de novo, em vão. A morena até que chegou a lhe sorrir, mas não quis conversa. No Baile do Gala Gay, que é tradicional e se realiza no Scala desde 1980, voltou a assediar a arredia Colombina. Chegaram a dançar juntos, mas nada de aproximação mais íntima. Finalmente, na terça-feira, ela compareceu sem acompanhante. Dançaram a noite toda e por volta das duas horas da madrugada, convidou-a para sair. A morena topou.
Nem passou pela cabeça de Soares levar sua “presa” para algum motel. Dirigiram-se, isto sim, para o Arpoador, que separa a praia de Copacabana das de Ipanema e Leblon e ali, atrás das pedras, fizeram sexo apressado, urgente, mas delirante. O rapaz nem se lembrou da camisinha. Foi a seco mesmo. A bebida, o cansaço e a saciedade sexual, levaram Soares a aterrar. Virtualmente, saiu do ar. E foi assim, e ali, que o encontramos no amanhecer da Quarta-Feira de Cinzas, e despojado dos seus bens.
IV
Soares cochilou no curto trajeto da ponte-aérea, entre o Aeroporto Santos Dumont e Congonhas. Seu aspecto era de exaustão. Os olhos estavam vermelhos e, ao redor deles, estava arroxeado e intumescido, indicando falta de sono. Mas estava impecavelmente trajado em seu terno azul-marinho, com a barba bem-feita e os cabelos rigorosamente no lugar.
Ao desembarcar, Marisa estava à sua espera.
--- Tudo bem, querido?
--- Tudo bem, mas foram quatro dias terríveis, desgastantes.
--- É, estou vendo. Você trabalha muito, Maurício! Precisa tirar um tempo para se divertir e para descansar!
Logo, Marisa notou a falta do rolex. Soares nunca andava sem ele.
--- Cadê o seu relógio, meu bem?
--- Ah, que cabeça a minha! Devo ter esquecido no criado-mudo do hotel!
E os dois não tocaram mais no assunto. Ao chegarem em casa, Marisa ligou a TV e serviu um cafezinho ao marido, para ver se esse recuperava o ânimo. Seu aspecto era de absoluta exaustão. Estava passando, nesse momento, uma reportagem sobre os bailes de Carnaval pelo Brasil afora, inclusive, claro, do Rio. Subitamente, como se fosse acidental, Maurício deixou cair a xícara, esparramando o líquido quente por suas calças.
--- Que desastrado que eu sou!
--- Espere que vou buscar um pano úmido para enxugar.
Nesse momento, a imagem exibia o baile do Scala e, em close, lá estava a figura de Soares, abraçado à tal morena. Marisa não viu a cena. Fora à copa buscar o pano para enxugar o café derramado.
Ao voltar, comentou:
--- Você chegou a ver pela TV o desfile das escolas-de-samba do Rio? Foi muito bonito!
--- Carnaval, ora Carnaval! É por isso que esse País não vai pra frente. O povo só pensa no que não presta, em folia, em futebol e em mulher! Com essa matéria-prima não se faz, mesmo, um país decente!
Marisa não disse nada. Limitou-se a abraçar, carinhosamente, o marido, orgulhosa pelo privilégio de ter como companheiro uma jóia tão rara como aquela...
--- Vai deitar, meu bem, vai deitar. Você já trabalhou demais e merece um bom descanso como prêmio!
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