Friday, February 15, 2008

Como ver o presente


Pedro J. Bondaczuk


A memória é nosso real patrimônio, a única coisa que nos resta até nosso derradeiro sopro de vida. Tudo o mais se perde, se esfacela, murcha, fenece e desaparece. Generosa, tem uma característica peculiar: é seletiva. Apaga (ou atenua) lembranças dos momentos ruins pelos quais passamos, de perdas, aflições e grandes sofrimentos. Em contrapartida, perpetua episódios felizes, aos quais, além disso, dá um toque todo especial, fazendo com que as alegrias, sucessos e instantes de felicidade nos pareçam maiores e melhores do que de fato foram.
Por isso, a memória constitui-se no cerne da nossa personalidade. Devemos cultivá-la com carinho, constância, mas com muito cuidado, pois será ela que irá nos encantar e consolar em nossos derradeiros dias. Marcamos a passagem do tempo por relógios e calendários, mas o que retemos na mente é ínfima fração do que vivemos. Nossas ações e sentimentos, na maior parte, perdem nas brumas do esquecimento, como se não houvessem existido.
Lembramo-nos de pouquíssimos momentos e circunstâncias, embora estes nos pareçam muitos e infinitos. A memória das pessoas sadias é generosa. Melhora, reitero, na lembrança, circunstâncias que de fato não foram tão boas e atenua as de aflição ou de dor, quando não as apaga.
Muitas vezes, temos esquecimentos que são, de todo, inexplicáveis. Tenho um exemplo pessoal que me deixa muito encucado sempre que penso nele. Até os seis anos de idade, meu único idioma, aquele que aprendi a falar tão logo balbuciei as primeiras palavras, era o russo. Jamais havia ouvido, até então, qualquer coisa em qualquer outra língua, que sequer cogitava que existisse.
Hoje, no entanto, penso e me expresso (oral e graficamente) somente em português. Parece que aquele outro Pedro, que só falava russo, apenas existiu na minha cabeça. Não teve vida real. Mas teve, evidentemente. Lembro-me, nitidamente, de inúmeros episódios, em detalhes ínfimos até, desse período. Mas esqueci, no entanto, por completo, do idioma da minha infância.
Esse conhecimento ficou em algum substrato do meu subconsciente ou, talvez, em um nível até mais profundo, no inconsciente, de onde nunca mais consegui trazer à tona, para o plano da consciência. Vez por outra, lembro-me de uma ou outra palavra isolada nessa língua, para mim hoje tão estranha e bárbara, mas não consigo falar (e muito menos entender) uma única frase completa.
Como se vê, a memória é muitíssimo mais frágil do que podemos supor. Mesmo que pretendamos viver no passado (impossibilidade física), o presente nos convoca e desafia a conquistar o que não conseguimos ainda. A medida de tempo, por relógios e calendários, portanto, nada significa no conjunto das nossas vidas. O referencial deveria ser outro.
A esse propósito, o Padre Antônio Vieira – cujo quarto centenário de nascimento comemoramos neste ano de 2008 – tem uma passagem pitoresca, mas inteligente. Disse, em seu célebre “Sermão da Quarta-Feira de Cinzas”: “Olhai para o passado e para o futuro e vereis o presente. A razão ou conseqüência é manifesta. Se no passado se vê o futuro, e no futuro se vê o passado, segue-se que no passado e no futuro se vê o presente, porque o presente é o futuro do passado, e o mesmo presente é o passado do futuro”.
As pessoas conscientes e equilibradas, que têm certeza de sempre terem vivido da melhor forma possível, com intensidade, mas com afeto, não precisam temer suas lembranças. Tanto as boas, quanto as más, não lhes causam sofrimento, mágoa ou frustração.
As coisas positivas serão sempre lembradas com alegria, com uma saudade gostosa, mas não opressiva. E mesmo as negativas não incomodam, diante da certeza de que os obstáculos, posto que aflitivos na ocasião, foram superados com fé e determinação; os montes foram galgados e descidos. E, após vencidos, descortinou-se, diante de nós, suave e florida campina. Vivamos de forma tal que as lembranças jamais nos causem sofrimentos, mas nos cientifiquem que cumprimos nosso dever e estamos vivos para realizar muito mais.
Não devemos, contudo, confiar cegamente na memória, que amiúde nos atraiçoa, e nem viver no passado, abrindo mão das perspectivas abertas pelo presente. Vivamos plenamente cada dia, com bom-humor e alegria, buscando sempre fazê-lo melhor e mais feliz do que o anterior.
Claro que não seria tolo de recomendar que se descartem as boas lembranças. Mas não podemos fazer delas uma espécie de panacéia para a felicidade. São passado! Não voltam mais e jamais podem ser reprisadas. Se tentarmos, o resultado, fatalmente, será o da frustração.
A vida não comporta reprises. Acho sábia (por ser verdadeira), esta metáfora criada pelo escritor Austin O’Malley: “A memória é uma velha louca que joga comida fora e guarda trapos coloridos”. O alimento (espiritual, no caso) desperdiçado, são os bons livros, os exemplos edificantes e os relacionamentos elevados que tivemos a oportunidade de vivenciar e que findamos por esquecer. Quanto aos trapos coloridos...

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