América do Sul assume seu destino
Pedro J. Bondaczuk
O acordo obtido nesta semana pelos políticos uruguaios com as Forças Armadas daquele país foi o acontecimento mais festejado dos últimos sete dias e reflete um fato muito positivo, que vem ocorrendo na América do Sul. Ou seja, uma lenta, penosa, porém segura, caminhada rumo à convivência democrática entre os povos do continente.
Embora o acordo ainda não seja o ideal, o Uruguai, pelo menos, após 13 anos de regime de exceção, poderá escolher o seu presidente da República nas urnas, fato que já aconteceu neste ano no Equador e que deverá se repetir, em 1985, no Peru. No Brasil, ainda teremos que esperar um pouco mais.
A sucessão brasileira, todavia, embora por método longe do ideal (através de um contestado e até repudiado Colégio Eleitoral), não deixa de ser um avanço significativo. Do exemplo que for dado aqui, isto é, da lisura com que o processo se desenvolver, vai depender o futuro da democracia no continente, pela importância política, estratégica e militar que o nosso país ostenta nas três Américas.
Seja como for, o Brasil deverá, a partir de janeiro, ter um presidente civil, após vinte anos que isso não acontecia. E a sucessão, finalmente, deixará de ser mera nomeação disfarçada. Caso não ocorra nada de diferente que comprometa as redemocratizações uruguaia e brasileira (Deus queira que não), a América do Sul vai entrar no ano de 1985 com apenas dois países (sem contar com as Guianas) sob regimes de exceção: Chile e Paraguai.
E isso tudo é notável se levarmos em consideração a gravíssima crise econômica que atormenta o continente, com seus diversos países estrangulados por imensas dívidas externas, originadas de empréstimos tomados, geralmente, sem critério e planejamento (na maior parte dos casos) e aplicados em obras muitas vezes dispensáveis e de praticamente nenhum retorno, quer econômico, quer social.
Essas dificuldades, é óbvio, refletem-se diretamente no ânimo do povo e esse descontentamento popular é seara fértil para aventureirismos institucionais. Entretanto, revelando uma maturidade política poucas vezes vista na história continental, o que estamos observando não é um retrocesso, mas um considerável avanço democrático.
O caso mais notável, registrado, que mostra uma nova tendência, uma conscientização sul-americana, é a recente tentativa golpista, ocorrida na Bolívia, com o estranho e pitoresco seqüestro do presidente Hernan Siles Zuazo. Aliás, esse combativo político, eleito três vezes presidente pelo voto popular e em todas impedido de assumir a presidência, é uma personalidade marcante, até única, em termos continentais.
Num país que detém o recorde mundial de golpes de Estado (ou está muito próximo disso) ele conseguiu, no período de 1956 a 1960, o raro feito de completar um mandato presidencial. Numa sociedade nacional onde o tráfico e produção de coca floresceu ao longo de décadas (possivelmente, segundo se denuncia, com a conivência, ou pelo menos a omissão, de diversos governos), ele teve a coragem de declarar guerra aberta aos poderosos traficantes, valendo-se, para isso, das Forças Armadas, numa atitude digna de todos os elogios e que vem repercutindo favoravelmente em todo o mundo. Zuazo é um exemplo a ser imitado.
Nesse processo todo, que sofreu avanços e recuos nas últimas três décadas, mas que aos poucos vai se consolidando, as ovelhas negras ficam sendo o Chile e o Paraguai. O primeiro começou a viver, recentemente, um débil processo de abertura, repentinamente frustrado diante da decisão do general Augusto Pinochet de não permitir, pelo menos até 1989, segundo suas promessas, a reorganização partidária, embrião indispensável para a normalização democrática.
No Paraguai, o general Alfredo Stroessner completou, nesta semana, 30 anos de poder, constituindo-se, na atualidade, no mais antigo governante em plena atividade no mundo. E, pelo jeito, ele marcha, celeremente, para alcançar as marcas de Salazar, em Portugal e de Francisco Franco, na Espanha. E sem muita contestação (pelo menos ostensiva).
No Chile, pelo menos, existe um movimento popular de pressão, com o apoio da Igreja Católica, que se mostra extremamente preocupada com a escalada da violência no país, acentuada e acelerada à medida que as dificuldades econômicas reduzem o poder aquisitivo da população e derrubam o padrão de vida das famílias.
Acreditamos, pessoalmente, que os chilenos não precisarão esperar até 1989 para que o regime se liberalize. A pressão popular, contínua, crescente e organizada, certamente acabará por ser bem-sucedida. Afinal, é impossível tutelar-se, indefinidamente, uma sociedade nacional. Os homens passam, mas os povos continuam. Os regimes são efêmeros, mas as aspirações nacionais não o são.
Com a redemocratização uruguaia, com o retorno à normalidade democrática que, se Deus quiser, será bem-sucedido no Brasil a partir do próximo ano, as ilhas de exceção e arbítrio no continente ficarão ainda mais isoladas. E mesmo com todos os percalços existentes, originados pela concentração de renda, pela falta de instrução e por interferências (ora veladas, ora ostensivas) das superpotências na vida continental, fato que atrapalha a normalidade do processo, a América do Sul deverá terminar a década com a democracia consolidada em todos os seus países. Finalmente, nós mesmos seremos os gestores do nosso próprio destino.
(Artigo publicado na página 2, Opinião, do Correio Popular, em 19 de agosto de 1984)
Pedro J. Bondaczuk
O acordo obtido nesta semana pelos políticos uruguaios com as Forças Armadas daquele país foi o acontecimento mais festejado dos últimos sete dias e reflete um fato muito positivo, que vem ocorrendo na América do Sul. Ou seja, uma lenta, penosa, porém segura, caminhada rumo à convivência democrática entre os povos do continente.
Embora o acordo ainda não seja o ideal, o Uruguai, pelo menos, após 13 anos de regime de exceção, poderá escolher o seu presidente da República nas urnas, fato que já aconteceu neste ano no Equador e que deverá se repetir, em 1985, no Peru. No Brasil, ainda teremos que esperar um pouco mais.
A sucessão brasileira, todavia, embora por método longe do ideal (através de um contestado e até repudiado Colégio Eleitoral), não deixa de ser um avanço significativo. Do exemplo que for dado aqui, isto é, da lisura com que o processo se desenvolver, vai depender o futuro da democracia no continente, pela importância política, estratégica e militar que o nosso país ostenta nas três Américas.
Seja como for, o Brasil deverá, a partir de janeiro, ter um presidente civil, após vinte anos que isso não acontecia. E a sucessão, finalmente, deixará de ser mera nomeação disfarçada. Caso não ocorra nada de diferente que comprometa as redemocratizações uruguaia e brasileira (Deus queira que não), a América do Sul vai entrar no ano de 1985 com apenas dois países (sem contar com as Guianas) sob regimes de exceção: Chile e Paraguai.
E isso tudo é notável se levarmos em consideração a gravíssima crise econômica que atormenta o continente, com seus diversos países estrangulados por imensas dívidas externas, originadas de empréstimos tomados, geralmente, sem critério e planejamento (na maior parte dos casos) e aplicados em obras muitas vezes dispensáveis e de praticamente nenhum retorno, quer econômico, quer social.
Essas dificuldades, é óbvio, refletem-se diretamente no ânimo do povo e esse descontentamento popular é seara fértil para aventureirismos institucionais. Entretanto, revelando uma maturidade política poucas vezes vista na história continental, o que estamos observando não é um retrocesso, mas um considerável avanço democrático.
O caso mais notável, registrado, que mostra uma nova tendência, uma conscientização sul-americana, é a recente tentativa golpista, ocorrida na Bolívia, com o estranho e pitoresco seqüestro do presidente Hernan Siles Zuazo. Aliás, esse combativo político, eleito três vezes presidente pelo voto popular e em todas impedido de assumir a presidência, é uma personalidade marcante, até única, em termos continentais.
Num país que detém o recorde mundial de golpes de Estado (ou está muito próximo disso) ele conseguiu, no período de 1956 a 1960, o raro feito de completar um mandato presidencial. Numa sociedade nacional onde o tráfico e produção de coca floresceu ao longo de décadas (possivelmente, segundo se denuncia, com a conivência, ou pelo menos a omissão, de diversos governos), ele teve a coragem de declarar guerra aberta aos poderosos traficantes, valendo-se, para isso, das Forças Armadas, numa atitude digna de todos os elogios e que vem repercutindo favoravelmente em todo o mundo. Zuazo é um exemplo a ser imitado.
Nesse processo todo, que sofreu avanços e recuos nas últimas três décadas, mas que aos poucos vai se consolidando, as ovelhas negras ficam sendo o Chile e o Paraguai. O primeiro começou a viver, recentemente, um débil processo de abertura, repentinamente frustrado diante da decisão do general Augusto Pinochet de não permitir, pelo menos até 1989, segundo suas promessas, a reorganização partidária, embrião indispensável para a normalização democrática.
No Paraguai, o general Alfredo Stroessner completou, nesta semana, 30 anos de poder, constituindo-se, na atualidade, no mais antigo governante em plena atividade no mundo. E, pelo jeito, ele marcha, celeremente, para alcançar as marcas de Salazar, em Portugal e de Francisco Franco, na Espanha. E sem muita contestação (pelo menos ostensiva).
No Chile, pelo menos, existe um movimento popular de pressão, com o apoio da Igreja Católica, que se mostra extremamente preocupada com a escalada da violência no país, acentuada e acelerada à medida que as dificuldades econômicas reduzem o poder aquisitivo da população e derrubam o padrão de vida das famílias.
Acreditamos, pessoalmente, que os chilenos não precisarão esperar até 1989 para que o regime se liberalize. A pressão popular, contínua, crescente e organizada, certamente acabará por ser bem-sucedida. Afinal, é impossível tutelar-se, indefinidamente, uma sociedade nacional. Os homens passam, mas os povos continuam. Os regimes são efêmeros, mas as aspirações nacionais não o são.
Com a redemocratização uruguaia, com o retorno à normalidade democrática que, se Deus quiser, será bem-sucedido no Brasil a partir do próximo ano, as ilhas de exceção e arbítrio no continente ficarão ainda mais isoladas. E mesmo com todos os percalços existentes, originados pela concentração de renda, pela falta de instrução e por interferências (ora veladas, ora ostensivas) das superpotências na vida continental, fato que atrapalha a normalidade do processo, a América do Sul deverá terminar a década com a democracia consolidada em todos os seus países. Finalmente, nós mesmos seremos os gestores do nosso próprio destino.
(Artigo publicado na página 2, Opinião, do Correio Popular, em 19 de agosto de 1984)
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