Wednesday, January 09, 2008

Amizade espiritual


Pedro J. Bondaczuk

A amizade é, antes de um sentimento, uma virtude, um comportamento e um exercício constante. Prova-se na prática: nos atos, nos gestos e nos procedimentos. Nem todos que a apregoam de fato a têm. Ao contrário do amor, a amizade dispensa juramentos. Sabemos, até por instinto, quem é nosso amigo e quem não é.
Não são necessários atos grandiosos, dramáticos ou espalhafatosos para a sua manifestação. Manifesta-se, não raro, por pequenos, mas significativos gestos de solidariedade, por palavras certas nos momentos adequados e até por críticas e admoestações, quando estas se fazem necessárias.
As amizades consolidadas extrapolam, até, o campo do mero sentimento. Apresentam inúmeras vantagens práticas, embora não seja esse o aspecto que temos em mente quando buscamos um amigo. Este nos dá segurança, estímulo, apoio, além de nos inspirar, equilibrar, corrigir, aplaudir, criticar e extrair de nós o nosso verdadeiro potencial.
Ressalte-se que amizade, coleguismo e companheirismo, ao contrário do que pensam os desavisados, não são sinônimos e, portanto, são condições muito diferentes. Colegas nos são impostos pelas circunstâncias, pela convivência (às vezes forçada) no trabalho, escola, locais de lazer etc. Podem, claro, com o tempo, se tornar amigos. Mas podem, também, se transformar em nossos mais ferozes inimigos.
Já para sermos companheiros de alguém, não precisamos sequer conhecê-lo. Os que fazem uma viagem (de ônibus, avião ou navio), por exemplo, convivem, durante o trajeto, com a companhia de dezenas de pessoas, das quais não sabem absolutamente nada. Mas o amigo é fruto de escolha: consciente e racional. É precioso demais para ser confundido com um simples colega ou com fortuito companheiro.
Na escolha das amizades, a qualidade deve prevalecer sobre a quantidade. Se pudermos contar com muitos amigos, que de fato honrem essa condição, tanto melhor. Essa, aliás, é minha grande ambição. Ou seja, como diz a letra de consagrada composição interpretada por Roberto Carlos: “Eu quero ter um milhão de amigos!”.
Aliás, um só não, mas vários milhões, bilhões, tantos quantos conseguir. Mas se isso for impossível (e me parece que é), me contentarei com um punhado deles, desde que leais, fiéis e onipresentes. Não há critério infalível que nos permita essa escolha. A maioria das amizades é meramente casual. Mas algumas chegam a ser imortais.
Meus grandes amigos, já falecidos, não morreram, mas permanecem onipresentes nas minhas lembranças, conversas e leituras. Posso dizer isso, com absoluta convicção, em relação a Mauro Sampaio, por exemplo. Ouço-o quando leio os seus vários livros, e os de seu pai – o até lendário professor de Português dos colégios de Campinas, Benedito Sampaio – que ele, generosamente me doou.
O mesmo ocorre com o jornalista Maurício de Moraes, companheiro de tantas jornadas na redação do “Correio Popular” e na Academia Campinense de Letras, que ele tanto se empenhou que me acolhesse como um de seus membros. E com inúmeros outros intelectuais, que marcaram a minha vida de forma indelével e cuja presença espiritual segue guiando os meus passos, me inspirando, aplaudindo, censurando, elogiando, criticando e corrigindo, dependendo da circunstância em que me envolva.
Émile Zola afirmou, a esse propósito, em relação a Gustave Flaubert (citado no livro “Zola e seu Tempo”, de Mathew Josephson): “Há certos homens cuja amizade é tão íntima, tão dominadora, que só podemos imaginá-los vivos, sendo impossível imaginar-se que já estejam mortos”.
Aliás, para que esse sentimento exista, sequer é preciso que tenhamos conhecido pessoalmente essas pessoas. Vou mais longe: podem nem ser da nossa geração, nossas contemporâneas, mas estarem separadas de nós por séculos e séculos de distância. Minha “amizade” com os clássicos, por exemplo, (com Virgílio, Cícero, Catão, Píndaro, Horácio etc.etc.etc.) é “dominadora” a esse ponto.
O mesmo ocorre com o maior estilista de língua portuguesa de todos os tempos, o padre Antônio Vieira. Ou com Fernando Pessoa. Ou com Eça de Qujeiroz. Ou com Machado de Assis. Ou com Mário Quintana, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes e Manuel Bandeira. Ou com os russos Fedor Dostoievski, Máximo Gorki, Anton Tchekov, Nicolai Gogol e Vladimir Maiakowski. Ou com os franceses Victor Hugo, Émile Zola, Gustave Flaubert e Alphonse de Lamartine entre tantos outros. Ou do argentino Jorge Luís Borges. Ou do mexicano Octávio Paz. Ou do colombiano Gabriel Garcia Márquez. Ou dos chilenos Gabriela Mistral e Pablo Neruda. Ou do peruano Mário Vargas Llosa...
Como se vê, posso não ter “milhões de amigos”, conforme minha ambiciosa pretensão, mas estes já passam de alguns milhares, o que não é nada mau, convenhamos. E, parodiando Zola, sua “amizade é tão íntima, tão dominadora, tão onipresente” que me é impossível imaginar que estejam mortos. Não estão! Nunca estarão!

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