Wednesday, November 07, 2007

Sons da infância


Pedro J. Bondaczuk


A vida pode ser definida, também, (pois há inúmeras definições possíveis e nenhuma delas definitiva) como conjunto de sons: ternos ou dramáticos, angustiantes ou eufóricos, harmoniosos ou dissonantes etc. Expressam, em sua variedade, todos os sentimentos e situações pelas quais passamos, positivas ou negativas, alegres ou tristes, cômicas ou dramáticas, de vida ou de morte. Eles são, em última análise, a forma como todos os animais (não apenas os ditos racionais) se comunicam.
Os sons que se calam com maior profundidade, e com mais intensidade, em nossa memória são os mais remotos possíveis, de muitos anos atrás, em alguns casos os de décadas: são os da infância. São os daquela fase encantada de formação, de descobertas, de pasmo e de espanto face ao mundo e tudo o que nele há. São os risos francos e cristalinos das crianças a brincarem no pátio de uma escola. São seus gritos de alegria, de protesto, de dor ou de raiva. São seu choro convulsivo ou somente de birra.
Sons...A vida é repleta de sons...E não somente os espontâneos, os que destoam, os que agridem os tímpanos e machucam a alma. Tempos atrás, escrevi uma crônica, fartamente divulgada por jornais e páginas da internet, em que abordei um dos aspectos dessa parafernália sonora (o tema é tão vasto que creio que jamais se esgotaria).
Em determinado trecho constatei: “Todos temos, em maior ou menor grau, determinadas canções que nos evocam, sempre que executadas, momentos marcantes, bons ou maus, da vida. Elas formam, em conjunto, uma espécie de “trilha sonora” desses acontecimentos, como nos filmes, com a diferença de que não se trata de ficção, mas da realidade nua e crua, mesmo que a fantasiemos, na medida do nosso temperamento e da nossa personalidade”.
E citei várias dessas canções, populares ou não, gravadas fundamente na memória e que, sempre que tocadas, me evocam emoções, alegres ou tristes, positivas ou negativas que, embora adormecidas, não morreram como podem parecer. Permanecem ali, mais vivas do que nunca, e que afloram quando menos espero, pois só vão morrer no dia em que eu deixar de vez este mundo para me reincorporar à natureza. “És pó e ao pó retornarás”, nos alertam, com realismo, os pregadores de várias religiões. São “gatilhos” que, sempre que acionados, trazem de volta, com variáveis intensidades, esses sentimentos que ajudam a compor nossa personalidade.
Entre as composições citadas, mencionei peças de Chopin, de Wagner, de Bach, de Liszt, de Rachmaninoff, de Brahms, de Mozart, de Tchaikowski, de Jacques Offenbach (principalmente a “Barcarola”, da série “Les contes d”Hoffmann”) e, em especial de Beethoven. Citei, também, canções que me embalaram a adolescência, principalmente aquelas dos chamados “anos dourados”, como “Jambalaya”, com Brenda Lee; “Love letters in the sand” e “Only you”, com os The Platers; “Minha namorada”, com Carlos Lyra, “Noite do meu bem”, de Dolores Duran, com Maysa Matarazzo e “Hino ao amor”, tanto com a Edith Piaff, no original em francês, como na versão que vendeu toneladas de discos, na voz de Wilma Bentivegna, entre outras, marcaram instantes memoráveis.
Estranhamente, porém, omiti aquela que mais me toca, sempre que ouço, que revela, sobretudo, minha principal característica: o apego às pessoas e o desapego às coisas. Trata-se de “Peixe Vivo”, cantiga folclórica, cujo autor e época em que foi composta são desconhecidos que, certamente, brotou espontânea da alma popular, dadas as suas características.
O ex-presidente Juscelino Kubitschek fez dela sua trilha sonora. Provavelmente, essa cantiga de roda originou-se em Portugal, em alguma remota região de pastoreio (conclusão óbvia, levando em conta o que diz a segunda parte da letra), trazida para o País, notadamente para Minas Gerais, pelos colonizadores portugueses.
“Como pode o peixe vivo/viver fora da água fria?/Como pode o peixe vivo/viver fora da água fria?//Como poderei viver,/como poderei viver/sem a tua, sem a tua,/sem a tua companhia?”. Quanta evocação essa cantiga me traz! De maneira simples e ingênua, diz o que há anos venho tentando dizer, em milhares e milhares de crônicas e em outros tantos de versos, e jamais consegui. Ou seja, expressa o meu apego atávico aos meus pais, aos meus filhos e à minha amada. Declara a necessidade física, psicológica e, sobretudo afetiva, dos amigos, sem que importe o tempo, a característica (se virtual ou presencial) e a intensidade dessas amizades. Exprime a importância dos leitores, contumazes ou ocasionais, deste constante desnudamento emocional em público que pratico há tantos anos através dos textos que produzo.
“Os pastores desta aldeia/já me fazem zombaria,/os pastores desta aldeia/já me fazem zombaria//por me ver andar sozinho,/por me ver andar sozinho,/sem a tua, sem a tua,/sem a tua companhia”. São sons da infância que me lembram, a todo o momento, que o menino que um dia fui não morreu. Continua mais vivo do que nunca. Que apesar dessa máscara de adulto sério, compenetrado, aparentemente cético, com profundas cicatrizes no corpo e na alma, ainda é o mesmo: ingênuo, carente de atenção e de afeto, inocente e deslumbrado.
Só posso concluir estas confidências com as palavras do mestre de todos nós, Rubem Braga, que na crônica “A Navegação da Casa” (inserida em seu livro “A Borboleta Amarela”), desabafou: “Oh! Deuses miseráveis da vida, por que nos obrigais ao incessante assassínio de nós mesmos e a esse interminável desperdício de ternuras?”...”Como poderei viver, como poderei viver, sem a tua, sem a tua, sem a tua companhia” anônimo leitor que me prestigia com a tua atenção?!!

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