Pedro J. Bondaczuk
As cigarras iniciaram, este ano, mais cedo a sua monótona cantilena. Em geral, elas emitem esse seu canto de acasalamento, estridente e incômodo para alguns, às vésperas do verão, ou durante essa estação. Como estamos no início da primavera, até o instinto de preservação dos seres irracionais parece afetado pelas mudanças climáticas, possivelmente ainda influenciadas pelo fenômeno El Niño, terminado em abril, ou pelo La Niña, contrafação do primeiro, que ameaça manter o desequilíbrio no ciclo das chuvas em várias partes do Planeta.
Para mim, no entanto, esses sons, acompanhados dos gorjeios dos bem-te-vis, que existem em grande quantidade no bairro em que moro, no Jardim Chapadão, a poucos metros do prédio da Telesp, em Campinas, soam a sonatas de Chopin ou a sinfonias de Beethoven ou como "As Quatro Estações", de Vivaldi. Têm um caráter especial, evocatório. Remetem-me à infância (já tão distante, meu Deus!), provocando incontrolável turbilhão de recordações. E olhem que sou tido como homem frio, avesso a sentimentalismos. Imaginem se eu fosse sentimental!
Engraçado como o tempo modifica a percepção das coisas. Recordo-me que, quando menino, não via a hora de crescer. Não gostava de ser pequeno, de cumprir as obrigações que os mais velhos me impunham, de me submeter às suas ordens (e àquilo que na ocasião interpretava como desmandos) e de ser castigado, quando não fazia o que me mandavam ou, o que era freqüente, quando fazia o que me era proibido.
Meus companheiros de infância (e de adolescência), em São Caetano do Sul, cidade-dormitório da Grande São Paulo, onde morava, todos sessentões hoje, a maioria avós, pensavam como eu. Visualizo-os todos agora. O Eduardo "Patinhas", pelo qual tenho uma fraternal ternura (a do irmão homem que nunca tive)... O Neuclair...O Paulo "Búlgaro"... O Zé Gordo... O Sacha, que chamávamos de "Churra" (deve ser alguma abreviação do nome ou apelido muito comum na Rússia, de onde seus pais procediam)... O Celso...O Mário, fiel Marinho (por onde andará?)...
Em grupo, agíamos (ou imitávamos de forma caricatural) os adultos. Uma das maiores ofensas entre nós era quando alguém nos chamava de "crianças" ou quando nos diziam que tínhamos atitudes "infantis". Pobres tolos! Mal sabíamos que estávamos vivendo os melhores dias de nossas vidas, encarados, que éramos, pelos nossos pais (que investiam, em recursos e sonhos, na nossa formação), e avós como risonhas "esperanças", enormes "promessas". Alguns, ultrapassamos as mais delirantes expectativas. Fomos bem-sucedidos nas carreiras que escolhemos (embora não fossem exatamente as que sonháramos). Outros... Bem, a vida não lhes foi tão camarada.
Nossas brincadeiras eram determinadas por épocas, mas ninguém sabe "por quem", embora todas as turmas da cidade, até nos bairros mais distantes, ou nas localidades vizinhas, as seguissem, como se fossem regras fixas, obrigatórias, leis não escritas e no entanto cumpridas com zelo e entusiasmo. Ora era a fase da bolinha de gude, que se transformava em verdadeira febre. Ora era o período dos peões, com vários tipos de disputas. Algumas épocas eram reservadas aos jogos de "betes". Outras, eram propícias para soltar papagaios (que em algumas partes do Brasil são chamados de maranhões, em outras de pipas e em outras ainda de pandorgas). Na ocasião, inexistiam as perigosas linhas de náilon, revestidas de cerol e de cacos de vidro, que já ocasionaram várias mortes pelo País afora.
O tempo dos balões, todos sabem, era o início de junho, estendendo-se até meados de julho. Não havia, na ocasião, tantas indústrias e os riscos representados por esta milenar invenção dos chineses eram muito menores (pelo menos não havia campanhas contra), embora existentes. Hoje, soltá-los, é um ato no mínimo criminoso, pois uma tocha acesa pode provocar tragédias, incendiando fábricas, casas ou florestas, ameaçando vidas e propriedades.
O verão era destinado a brincar com bichos, como cigarras, gafanhotos, besouros, vaga-lumes e pererecas, para desespero dos mais velhos, em especial das tias, que viviam nos coibindo e ralhando conosco. Tão logo nos pilhavam com algum espécime desses, ordenavam, imediatamente, que lavássemos as mãos. Diziam que se coçássemos os olhos com os dedos sem lavar ficaríamos cegos. E nós, bobinhos, acreditávamos. Hoje, quando recordamos daqueles dias despreocupados, de sonhos e fantasias, não podemos deixar de dar razão ao poeta gaúcho Guilhermino César, quando escreve: "A vida não deve ser isso que se vê". Não deve mesmo. Ou, pelo menos, não precisaria ser.
O dramaturgo Luigi Pirandello afirmou que tinha a servir sua arte "uma empregadinha muito ágil chamada fantasia". Também tenho uma. É possível que estas evocações da infância sejam frutos da diligência dessa "serva", fiel e constante. Mas, na minha memória, aqueles dias eram mais luminosos do que hoje e a esperança guiava cada um dos nossos passos. De fato, "a vida não deve ser isso que se vê". Não pode ser! Não deve ser!
Quero que no meu epitáfio fiquem registrados estes versos do poema "Testamento", de Manuel Bandeira:
"Vi terras da minha
terra.
Por muitas terras andei.
Mas o que ficou marcado
no meu olhar fatigado,
foram terras que
inventei".
E tudo isso só porque as cigarras começaram a cantar mais cedo este ano... Vá ser sentimental para lá!
As cigarras iniciaram, este ano, mais cedo a sua monótona cantilena. Em geral, elas emitem esse seu canto de acasalamento, estridente e incômodo para alguns, às vésperas do verão, ou durante essa estação. Como estamos no início da primavera, até o instinto de preservação dos seres irracionais parece afetado pelas mudanças climáticas, possivelmente ainda influenciadas pelo fenômeno El Niño, terminado em abril, ou pelo La Niña, contrafação do primeiro, que ameaça manter o desequilíbrio no ciclo das chuvas em várias partes do Planeta.
Para mim, no entanto, esses sons, acompanhados dos gorjeios dos bem-te-vis, que existem em grande quantidade no bairro em que moro, no Jardim Chapadão, a poucos metros do prédio da Telesp, em Campinas, soam a sonatas de Chopin ou a sinfonias de Beethoven ou como "As Quatro Estações", de Vivaldi. Têm um caráter especial, evocatório. Remetem-me à infância (já tão distante, meu Deus!), provocando incontrolável turbilhão de recordações. E olhem que sou tido como homem frio, avesso a sentimentalismos. Imaginem se eu fosse sentimental!
Engraçado como o tempo modifica a percepção das coisas. Recordo-me que, quando menino, não via a hora de crescer. Não gostava de ser pequeno, de cumprir as obrigações que os mais velhos me impunham, de me submeter às suas ordens (e àquilo que na ocasião interpretava como desmandos) e de ser castigado, quando não fazia o que me mandavam ou, o que era freqüente, quando fazia o que me era proibido.
Meus companheiros de infância (e de adolescência), em São Caetano do Sul, cidade-dormitório da Grande São Paulo, onde morava, todos sessentões hoje, a maioria avós, pensavam como eu. Visualizo-os todos agora. O Eduardo "Patinhas", pelo qual tenho uma fraternal ternura (a do irmão homem que nunca tive)... O Neuclair...O Paulo "Búlgaro"... O Zé Gordo... O Sacha, que chamávamos de "Churra" (deve ser alguma abreviação do nome ou apelido muito comum na Rússia, de onde seus pais procediam)... O Celso...O Mário, fiel Marinho (por onde andará?)...
Em grupo, agíamos (ou imitávamos de forma caricatural) os adultos. Uma das maiores ofensas entre nós era quando alguém nos chamava de "crianças" ou quando nos diziam que tínhamos atitudes "infantis". Pobres tolos! Mal sabíamos que estávamos vivendo os melhores dias de nossas vidas, encarados, que éramos, pelos nossos pais (que investiam, em recursos e sonhos, na nossa formação), e avós como risonhas "esperanças", enormes "promessas". Alguns, ultrapassamos as mais delirantes expectativas. Fomos bem-sucedidos nas carreiras que escolhemos (embora não fossem exatamente as que sonháramos). Outros... Bem, a vida não lhes foi tão camarada.
Nossas brincadeiras eram determinadas por épocas, mas ninguém sabe "por quem", embora todas as turmas da cidade, até nos bairros mais distantes, ou nas localidades vizinhas, as seguissem, como se fossem regras fixas, obrigatórias, leis não escritas e no entanto cumpridas com zelo e entusiasmo. Ora era a fase da bolinha de gude, que se transformava em verdadeira febre. Ora era o período dos peões, com vários tipos de disputas. Algumas épocas eram reservadas aos jogos de "betes". Outras, eram propícias para soltar papagaios (que em algumas partes do Brasil são chamados de maranhões, em outras de pipas e em outras ainda de pandorgas). Na ocasião, inexistiam as perigosas linhas de náilon, revestidas de cerol e de cacos de vidro, que já ocasionaram várias mortes pelo País afora.
O tempo dos balões, todos sabem, era o início de junho, estendendo-se até meados de julho. Não havia, na ocasião, tantas indústrias e os riscos representados por esta milenar invenção dos chineses eram muito menores (pelo menos não havia campanhas contra), embora existentes. Hoje, soltá-los, é um ato no mínimo criminoso, pois uma tocha acesa pode provocar tragédias, incendiando fábricas, casas ou florestas, ameaçando vidas e propriedades.
O verão era destinado a brincar com bichos, como cigarras, gafanhotos, besouros, vaga-lumes e pererecas, para desespero dos mais velhos, em especial das tias, que viviam nos coibindo e ralhando conosco. Tão logo nos pilhavam com algum espécime desses, ordenavam, imediatamente, que lavássemos as mãos. Diziam que se coçássemos os olhos com os dedos sem lavar ficaríamos cegos. E nós, bobinhos, acreditávamos. Hoje, quando recordamos daqueles dias despreocupados, de sonhos e fantasias, não podemos deixar de dar razão ao poeta gaúcho Guilhermino César, quando escreve: "A vida não deve ser isso que se vê". Não deve mesmo. Ou, pelo menos, não precisaria ser.
O dramaturgo Luigi Pirandello afirmou que tinha a servir sua arte "uma empregadinha muito ágil chamada fantasia". Também tenho uma. É possível que estas evocações da infância sejam frutos da diligência dessa "serva", fiel e constante. Mas, na minha memória, aqueles dias eram mais luminosos do que hoje e a esperança guiava cada um dos nossos passos. De fato, "a vida não deve ser isso que se vê". Não pode ser! Não deve ser!
Quero que no meu epitáfio fiquem registrados estes versos do poema "Testamento", de Manuel Bandeira:
"Vi terras da minha
terra.
Por muitas terras andei.
Mas o que ficou marcado
no meu olhar fatigado,
foram terras que
inventei".
E tudo isso só porque as cigarras começaram a cantar mais cedo este ano... Vá ser sentimental para lá!
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