O sino de ouro
Pedro J. Bondaczuk
A atividade do jornalista e, em especial, do homem de letras, às voltas com seus demônios interiores, é dolorosa e frustrante. Muitos escritores comparam a composição dos seus textos às dores de parto. É uma angústia contínua em busca da melhor forma de exprimir idéias, conceitos, descrições e enredos, da maneira mais fiel possível ao que foi imaginado. Luta-se com o estilo, com a linguagem, com o tempo, com as necessidades materiais inerentes à condição humana e sobretudo com o medo do ridículo a que se está sempre exposto.
Muitas vezes matamos uma excelente idéia no nascedouro por não encontrarmos a palavra correta ou a forma adequada de expressão. Em outras ocasiões, elaboramos uma reportagem, ou um artigo, ou uma crônica formalmente perfeitos, claros, ágeis, nervosos, dinâmicos, mas despidos de conteúdo.
Agradam ao leitor desatento, mas são imediatamente esquecidos, por não excitarem sua mente e não tocarem sua emoção. São vazios, ocos, não acrescentam coisa alguma ao jornalismo, à cultura e às letras. Um escritor zeloso (e também um jornalista, claro) "luta", com aquilo que escreve, por horas, dias, meses ou mesmo anos (em casos extremos), até que se dê por satisfeito com o resultado. E quase nunca se dá.
Mário de Andrade chegou a levar mais de vinte anos para dar alguns de seus contos por concluídos. Chegou a refazê-los inteiros um sem número de vezes. Preciosismo? Talvez. A maioria dos escritores não chega a esse requinte. Mas revisa, corta, acrescenta, torna a revisar, modifica, reescreve, desbasta, apara arestas, faz nova revisão, e assim sucessivamente, com duas, três, cinco, dez, cem ou quiçá mil versões. E quando dá o texto por concluído, em geral vencido pelo cansaço, o faz com uma sensação de fracasso e de frustração.
Todos sonhamos com uma obra-prima que nos consagre e nos garanta a ilusória "imortalidade" literária, que raríssimos conseguem. Alguns têm sucesso, embora, enquanto vivos, sequer se dêem conta do êxito, que apenas se consolida post-mortem. Outros julgam ter conseguido, na maioria das vezes iludidos por elogios de néscios ou de hipócritas, que lhes ofuscam a capacidade de autocrítica, e se acomodam.
Há uma citação de Rubem Braga, em seu livro "A Borboleta Amarela", na crônica "O sino de ouro", que costumo repetir e que diz: "Cada um de nós, quando criança tem dentro da alma seu sino de ouro que depois, por nossa culpa e miséria e pecado e corrupção, vai virando ferro e chumbo, vai virando pedra e terra e lama e podridão".
O escritor passa por idêntica situação. Tão logo descobre estar tomado por esta "febre" de criação (se bênção ou maldição, não se sabe), um sino de ouro, de vinte e quatro quilates, vibra em seu interior, aguçando sua sensibilidade. No entanto, esse precioso metal, por culpa da indolência, da vaidade e do orgulho (principalmente), começa a se corromper. "Vai virando ferro e chumbo e pedra e terra e lama e podridão".
Claro que o cronista utiliza essa magnífica metáfora para retratar a degradação moral do homem, que abre mão dos sonhos e ideais da juventude, para correr atrás de fumaça, de ilusão e de banalidades, como riqueza, fama e poder. Mas como o escritor pode se manter íntegro e jamais desistir de perseguir a perfeição? Ela existe? No que consiste? É possível de ser alcançada?
Essas questões foram objetos de preocupação de Mário de Andrade, que as deixou registradas no capítulo "O artista moderno", do livro "A Escrava que não é Isaura". Indaga: "Será possível forçar a perfeição a surgir para as artes? Saltar a evolução para que as obras atuais ganhem em serenidade, clareza, humanidade? Escrevemos para os outros ou para nós mesmos? Para todos os outros ou para uns poucos outros? Deve-se escrever para o futuro ou para o presente? Qual a obrigação do artista?"
Esse questionamento atormenta o escritor (e também o jornalista) que ainda sente o "sino de ouro" vibrar na alma e quer impedir que ele se corrompa em "ferro e chumbo e pedra e terra e lama e podridão". A única forma de tentar impedir essa corrupção, sem garantia de sucesso, é a persistência. É o trabalho incansável e concentrado. É a observação do mundo que o rodeia. É a introspecção. É a "luta" com o anjo da perfeição, até o raiar da alba, para que este o abençoe, como fez o patriarca Jacó, no Vale de Jaboc.
Outra indagação do escritor refere-se á sua formação. Qual deve ser a prioridade? A cultural, obtida pela leitura de milhares e milhares de livros? Ou a capacidade de observação do que o cerca? Provavelmente, as duas. O crítico João Antonio, no ensaio "O escritor assume a sua cor. É Lima Barreto" ( Suplemento Literário do Diário Oficial do Estado de São Paulo, edição de abril de 1983), coloca a questão desta maneira: "Há escritores em que o leitor vê atrás deles uma biblioteca, uma 'sapientia' , uma sofisticação intelectual, uma aflição estética, antes de ver os seus personagens. E há escritores atrás dos quais, ou mesmo ao lado deles, logo se vê, de pronto, um povo – com suas caras, roupas, cheiros, as maneiras todas de ser".
O ideal é contar com as duas características, simultaneamente: ter vasta cultura para poder valer-se de idéias alheias como pontos de partida para as próprias, aperfeiçoando-as, atualizando-as, dando-lhes novos e originais contornos, nunca se esquecendo de mencionar a origem, os seus verdadeiros autores que, por uma razão ou outra, não puderam dar o toque final de excelência que pretendiam ao que escreveram. Ao mesmo tempo, nunca se afastar "do jeito, da forma, da cor e do cheiro do povo". E, acima de tudo, jamais deixar se apagar a chama do ideal, mesmo que não factível. Que impeça o sino de ouro que traz na alma de se corromper e se transformar em "ferro e chumbo e pedra e terra e lama e podridão..."
Pedro J. Bondaczuk
A atividade do jornalista e, em especial, do homem de letras, às voltas com seus demônios interiores, é dolorosa e frustrante. Muitos escritores comparam a composição dos seus textos às dores de parto. É uma angústia contínua em busca da melhor forma de exprimir idéias, conceitos, descrições e enredos, da maneira mais fiel possível ao que foi imaginado. Luta-se com o estilo, com a linguagem, com o tempo, com as necessidades materiais inerentes à condição humana e sobretudo com o medo do ridículo a que se está sempre exposto.
Muitas vezes matamos uma excelente idéia no nascedouro por não encontrarmos a palavra correta ou a forma adequada de expressão. Em outras ocasiões, elaboramos uma reportagem, ou um artigo, ou uma crônica formalmente perfeitos, claros, ágeis, nervosos, dinâmicos, mas despidos de conteúdo.
Agradam ao leitor desatento, mas são imediatamente esquecidos, por não excitarem sua mente e não tocarem sua emoção. São vazios, ocos, não acrescentam coisa alguma ao jornalismo, à cultura e às letras. Um escritor zeloso (e também um jornalista, claro) "luta", com aquilo que escreve, por horas, dias, meses ou mesmo anos (em casos extremos), até que se dê por satisfeito com o resultado. E quase nunca se dá.
Mário de Andrade chegou a levar mais de vinte anos para dar alguns de seus contos por concluídos. Chegou a refazê-los inteiros um sem número de vezes. Preciosismo? Talvez. A maioria dos escritores não chega a esse requinte. Mas revisa, corta, acrescenta, torna a revisar, modifica, reescreve, desbasta, apara arestas, faz nova revisão, e assim sucessivamente, com duas, três, cinco, dez, cem ou quiçá mil versões. E quando dá o texto por concluído, em geral vencido pelo cansaço, o faz com uma sensação de fracasso e de frustração.
Todos sonhamos com uma obra-prima que nos consagre e nos garanta a ilusória "imortalidade" literária, que raríssimos conseguem. Alguns têm sucesso, embora, enquanto vivos, sequer se dêem conta do êxito, que apenas se consolida post-mortem. Outros julgam ter conseguido, na maioria das vezes iludidos por elogios de néscios ou de hipócritas, que lhes ofuscam a capacidade de autocrítica, e se acomodam.
Há uma citação de Rubem Braga, em seu livro "A Borboleta Amarela", na crônica "O sino de ouro", que costumo repetir e que diz: "Cada um de nós, quando criança tem dentro da alma seu sino de ouro que depois, por nossa culpa e miséria e pecado e corrupção, vai virando ferro e chumbo, vai virando pedra e terra e lama e podridão".
O escritor passa por idêntica situação. Tão logo descobre estar tomado por esta "febre" de criação (se bênção ou maldição, não se sabe), um sino de ouro, de vinte e quatro quilates, vibra em seu interior, aguçando sua sensibilidade. No entanto, esse precioso metal, por culpa da indolência, da vaidade e do orgulho (principalmente), começa a se corromper. "Vai virando ferro e chumbo e pedra e terra e lama e podridão".
Claro que o cronista utiliza essa magnífica metáfora para retratar a degradação moral do homem, que abre mão dos sonhos e ideais da juventude, para correr atrás de fumaça, de ilusão e de banalidades, como riqueza, fama e poder. Mas como o escritor pode se manter íntegro e jamais desistir de perseguir a perfeição? Ela existe? No que consiste? É possível de ser alcançada?
Essas questões foram objetos de preocupação de Mário de Andrade, que as deixou registradas no capítulo "O artista moderno", do livro "A Escrava que não é Isaura". Indaga: "Será possível forçar a perfeição a surgir para as artes? Saltar a evolução para que as obras atuais ganhem em serenidade, clareza, humanidade? Escrevemos para os outros ou para nós mesmos? Para todos os outros ou para uns poucos outros? Deve-se escrever para o futuro ou para o presente? Qual a obrigação do artista?"
Esse questionamento atormenta o escritor (e também o jornalista) que ainda sente o "sino de ouro" vibrar na alma e quer impedir que ele se corrompa em "ferro e chumbo e pedra e terra e lama e podridão". A única forma de tentar impedir essa corrupção, sem garantia de sucesso, é a persistência. É o trabalho incansável e concentrado. É a observação do mundo que o rodeia. É a introspecção. É a "luta" com o anjo da perfeição, até o raiar da alba, para que este o abençoe, como fez o patriarca Jacó, no Vale de Jaboc.
Outra indagação do escritor refere-se á sua formação. Qual deve ser a prioridade? A cultural, obtida pela leitura de milhares e milhares de livros? Ou a capacidade de observação do que o cerca? Provavelmente, as duas. O crítico João Antonio, no ensaio "O escritor assume a sua cor. É Lima Barreto" ( Suplemento Literário do Diário Oficial do Estado de São Paulo, edição de abril de 1983), coloca a questão desta maneira: "Há escritores em que o leitor vê atrás deles uma biblioteca, uma 'sapientia' , uma sofisticação intelectual, uma aflição estética, antes de ver os seus personagens. E há escritores atrás dos quais, ou mesmo ao lado deles, logo se vê, de pronto, um povo – com suas caras, roupas, cheiros, as maneiras todas de ser".
O ideal é contar com as duas características, simultaneamente: ter vasta cultura para poder valer-se de idéias alheias como pontos de partida para as próprias, aperfeiçoando-as, atualizando-as, dando-lhes novos e originais contornos, nunca se esquecendo de mencionar a origem, os seus verdadeiros autores que, por uma razão ou outra, não puderam dar o toque final de excelência que pretendiam ao que escreveram. Ao mesmo tempo, nunca se afastar "do jeito, da forma, da cor e do cheiro do povo". E, acima de tudo, jamais deixar se apagar a chama do ideal, mesmo que não factível. Que impeça o sino de ouro que traz na alma de se corromper e se transformar em "ferro e chumbo e pedra e terra e lama e podridão..."
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