Monday, December 14, 2009




Tempos de boêmia


Pedro J. Bondaczuk


O termo boêmia traz consigo, de imediato, a idéia de dissolução, de irresponsabilidade, de vícios, de noites de embriaguez e, por conseqüência, de dias de ócio, para curar a ressaca. Durante muito tempo, essa expressão foi utilizada para rotular indivíduos que não eram, digamos, "muito responsáveis". Pessoas sem regras ou disciplina, incapazes de parar em qualquer emprego ou de constituir e sustentar uma família.
Ainda hoje a palavra tem esse sentido pejorativo. Mas nem todos os boêmios dedicam-se o tempo todo a noitadas alegres, regadas a álcool. Pelo menos no meu caso e do nosso grupo de rapazes, em São Caetano do Sul, em princípios dos anos 60, não acontecia dessa forma. Todos trabalhávamos, estudávamos e nos preparávamos com afinco para a vida.
Reuníamo-nos nas noites de sexta-feira, após o trabalho, em um bar da Rua Santa Catarina, que pertencia a um amigo nosso, em um cômodo reservado, para colocar a conversa em dia. Era a nossa forma de lazer. Ali, entre um uísque e outro, acompanhado de petiscos, (ou entre um chope e outro, no verão), varávamos a madrugada conversando (e algumas vezes "urrando"), já que no sábado, ninguém da nossa turma teria que trabalhar.
Os temas eram extremamente ecléticos. Versavam sobre todos os assuntos em voga, já que tínhamos de tudo entre nós: estudantes de medicina, filósofos recém formados, professores, jornalistas, advogados, futuros cientistas políticos, ex-jogadores profissionais de futebol, detetives de polícia, etc.
Não me recordo de ninguém que se excedesse na bebida e de nenhuma desavença séria, apesar do "calor" com que alguns assuntos eram debatidos aos gritos e até palavrões. Principalmente os que se referiam à política brasileira.
A despeito da crise – o Brasil sempre conviveu com alguma – o País vivia um período de euforia, após a gestão de Juscelino Kubitschek, com a sua arrancada para o desenvolvimento. Estava na moda a pregação das chamadas "reformas de base" – as mesmíssimas que o ex-presidente Fernando Henrique se propôs e que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se propõe a implantar nos seus governos – que na ocasião eram vistas como "idéias subversivas, comunistas" por parte de determinados setores de direita.
Tolice, claro, mas esses retrógrados não se davam conta do seu atraso e ignorância. Ou cinismo, oportunismo, ou sabe-se lá o que mais. Uma vez por mês, nosso grupo fazia serenata, autorizado pela polícia, em algum bairro da cidade. Eu apenas acompanhava, já que cantar nunca foi meu talento. Violência era coisa rara. Hoje, seria impossível isso. Quem se atrever, corre o risco de voltar nu para casa, se voltar. Será, fatalmente, assaltado.
Essa era a nossa boêmia. Ingênua, barulhenta, inocente. Além de aproximar amigos, servia como um aprendizado da realidade brasileira, embora na ocasião não nos déssemos conta. O objetivo era somente o de lazer. Havia noites que sequer bebíamos algo mais forte do que um guaraná.
Muitos dos meus poemas mais caros foram debatidos e emendados nesse bar da Rua Santa Catarina, hoje demolido para dar lugar a um espigão. Nem gosto de passar por ali, pois quando o faço, me dá um aperto no coração.
Um pedaço de mim ficou perdido nesse tempo específico e nesse local exato. Aprendi muitíssimo com os jovens brilhantes que participavam dessas noitadas, hoje profissionais e políticos vencedores, de renome nacional. O grupo também teve seus "desaparecidos" durante a ditadura que viria alguns anos depois.
Estas reminiscências associo-as ao poema "Minha Boêmia", de Arthur Rimbaud, que diz: "Eu caminhava, as mãos nos bolsos desgastados;/também meu paletó fazia-se ideal;/ía sob o céu, Musa! e era o amante leal!/Ah que esplêndido amor que então foi sonhado!//Meus únicos calções tinham um grande furo./ - Pequeno Polegar que entre rimas discursa,/via minha taverna às margens da Grande Ursa,/no escuro!//Sentado eu escutava, à beira dos caminhos,/as meigas noites de setembro; e tinha o vinho/do orvalho sobre a fronte – ó tônico perfeito!//E ali rimas tecia entre vultos fantásticos,/com a minha lira – meu sapato e seus elásticos/que eu fazia vibrar, tendo um pé contra o peito".
Nossa boêmia era mais inocente do que a do poeta. E provavelmente mais produtiva, profícua e inteligente. Não tinha esse ranço decadentista de cabarés, de dissolução e de pecado. Não se associava à embriaguez, a não ser aquela que atinge jovens idealistas dispostos a lutar por aquilo em que acreditam: a das idéias. Parecia mais um cenáculo, onde irmãos de fé arquitetavam um futuro, sem que sequer desconfiassem que estavam fazendo isso.

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