Friday, December 18, 2009




Armadilha das cidades

Pedro J. Bondaczuk

O consumidor brasileiro, a despeito da existência de códigos, leis, órgãos e associações que pretensamente atuam em sua defesa, é um dos mais desprotegidos e desrespeitados do mundo. Em geral, tem de arcar com prejuízos na aquisição de produtos e serviços de má qualidade, pagos a peso de ouro e quando tenta reclamar, acaba transformado no vilão, no chato, no encrenqueiro.
Nem é preciso citar exemplos para fundamentar essa afirmação. Raros são os cidadãos que nunca passaram por essa situação desconfortável e sobretudo prejudicial. Os órgãos de defesa do consumidor fazem o que podem, mas poucos cidadãos são informados o suficiente para buscarem sua ajuda quando são, ou quando se sentem lesados.
Outro aspecto interessante a ser notado é que, nesta era do consumo em massa, o indivíduo acaba, de fato, massificado, despersonalizado, rotulado. Ele é o cliente, o espectador, o paciente, o leitor, o usuário, o passageiro, o fiel, o torcedor, o funcionário, o aluno e vai por aí afora, e nunca o Paulo, o Antonio, o José ou a Maria. As pessoas têm sido submetidas a instituições que elas próprias criaram para as servir e que findam por fazer delas suas escravas.
É o caso dos Estados, por exemplo, que não passam de uma abstração, de um rótulo, de um conceito. A grande concentração da população mundial contribui, de forma decisiva, para a crescente despersonalização do indivíduo. As primeiras cidades surgiram, conforme alguns historiadores, há cerca de 9 mil anos e foram erguidas para proteger as pessoas de saques de bandoleiros nômades, de tribos bárbaras que recorriam à força para garantir seu sustento e sobrevivência.
Devem ter sido lugares agradáveis, onde todos se conheciam e em geral eram ligados por algum laço de parentesco. A quantidade de moradores era pequena e havia um verdadeiro espírito comunitário. Hoje... Bem, na atualidade, as cidades não passam de enormes depósitos de pessoas, amontoadas umas sobre as outras em enormes caixotes de concreto, vidro e aço. Barulhentas, poluídas e agitadas, são o protótipo de como não se viver. Transformaram-se numa selva, sem os atrativos desta.
O fator segurança, que determinou sua própria concepção, hoje virtualmente não existe. A solidariedade, que ligava os moradores das cidades antigas na defesa do patrimônio individual e coletivo, foi substituída pelo antagonismo, pela desconfiança, pela indiferença e pela ostensiva hostilidade. Não se trata mais de comunidade, pois pouquíssima coisa, quase nada, é atualmente comum.
A mania pelo estereótipo estende-se por todos os setores da existência e nós, jornalistas, de maneira até inconsciente, não raro compactuamos com ela e a disseminamos em nossos textos. Seres humanos são classificados por etnias, por religiões, por cor ou por convicção política e não são levados em conta na sua essência, naquilo que realmente têm de importante, na sua individualidade. Esse procedimento, fruto de uma cultura profundamente arraigada nas diversas sociedades, gera preconceitos, rancores gratuitos, ódios insensatos e está na raiz de todas as guerras, revoluções e explosões de violência que marcaram a história.
Eça de Queiroz, em seu livro "A Cidade e as Serras", observou: "Na natureza nunca eu descobriria um contorno feio ou repetitivo! Nunca duas folhas de hera, que, na verdura ou recorte se assemelhassem! Na cidade pelo contrário, cada casa repete servilmente a outra casa, todas as faces reproduzem a mesma indiferença ou a mesma inquietação, as idéias têm todas o mesmo valor, o mesmo cunho, a mesma forma, como as libras; e até o que há de mais pessoal e íntimo, a ilusão, é em todos idêntica, e todos a respiram, e todos se perdem nela como no mesmo nevoeiro...A mesmice: eis o horror da cidade!"
Por que não encarar o homem pelo que ele é? Por que não conceder aos outros o respeito que exigimos deles? Por que nos colocarmos numa posição de todo poderosos quando somos transitórios, passageiros, impotentes para vencer nossa insignificância e efemeridade? Empresas, instituições, Estados, sistemas e até religiões passam e às vezes sequer deixam vestígios de sua existência ao longo da história.
Ficam princípios, atos, idéias, sentimentos, desde que realmente valham a pena. Hoje a figura da "pessoa jurídica" prepondera sobre a física. Mas afinal, o que ela significa? A gentileza vem deixando de ser uma espontânea manifestação de respeito pelo próximo para se transformar em mera "tática de venda". Por não se rebelar contra isso, o consumidor, que acima de tudo é um ser humano, compactua com a despersonalização e se automatiza, robotiza, age como uma máquina programada e não como "homo sapiens". É preciso uma nova confusão de línguas, como a registrada no relato bíblico, para que os construtores dessas babéis contemporâneas, dessas selvas de concreto e asfalto, cada vez mais loucas, violentas, enfumaçadas e barulhentas, se dispersem pelo mundo.

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