O estigma da suspeita
Pedro J. Bondaczuk
A questão do passado do ex-secretário-geral da Organização das Nações Unidas, Kurt Waldheim, que é candidato favorito nas eleições presidenciais austríacas, vem despertando uma enorme polêmica, não somente na Áustria, mas praticamente em todo o mundo. Isso vem ocorrendo desde quando o Congresso Mundial Judaico divulgou, em março passado, documentos altamente comprometedores contra esse líder.
Em alguns círculos, as afirmações mais comuns são as de que não se pode comprometer a reputação de uma pessoa, principalmente de projeção tão grande quanto esse homem público, com meras suspeitas. Em outros, se argumenta que mesmo que seja comprovada a sua participação em organizações nazistas, o que conta é o presente e esse passado infeliz precisa ser esquecido. Há, finalmente, um outro grupo, esse mais numeroso, que defende que se faça justiça em relação a Waldheim, se as acusações forem comprovadas. E se não, que lhe seja assegurado o direito de uma ampla defesa.
O que é mais comprometedor para o ex-secretário da ONU é o fato dele ter dito meias-verdades quando o assunto veio a público pela primeira vez. Em princípio ele chegou a negar que sequer tivesse servido no Exército alemão. Quando foi divulgada uma foto, mostrando-o todo orgulhoso, ostentando um uniforme de suboficial nazista, retratou-se. Desconversou e disse que a coisa não era bem assim. Afirmou que realmente serviu nas tropas germânicas durante a Segunda Guerra, mas que não cometeu nem participou de nenhuma das atrocidades que lhe são agora atribuídas e a todo o seu grupo.
Mas essa versão também não coincide com a dos iugoslavos e a dos judeus gregos, que tiveram perto de 50 mil vítimas naquele período de ódio e insânia que a humanidade deixou para trás há apenas 41 anos. A imprensa da Iugoslávia, inclusive, publicou uma série de documentos que, no mínimo, despertam dúvidas nas pessoas sobre a inocência de Waldheim. Essas acusações, por outro lado, são reforçadas por documentos existentes sobre o seu passado nos arquivos da ONU, a mesma entidade que esse político dirigiu por tanto tempo. Nesta altura, fica uma dúvida enorme na mente do observador.
E é impossível se furtar a uma pergunta imediata. Será que era do conhecimento dos países que integram a entidade mundial o passado do seu então secretário-geral? Presume-se que sim. Afinal, os iugoslavos, búlgaros, gregos e soviéticos contribuíram com provas para formar esse "dossiê".
Nesta altura, uma nova suspeita assalta a mente de todos. Não poderia ter havido alguma espécie de "chantagem" para inibir a sua atuação à frente dessa organização internacional, facilitando as coisas para governos e pessoas que ameaçassem divulgar tais dados? Ninguém, é óbvio, pode afirmar que sim. Todavia, ninguém também tem condições de dizer, sem despertar novas dúvidas e indagações, que isso não aconteceu.
A reputação, bem dizia outro dia um político, é como a virgindade de uma moça. Uma vez perdida, é impossível de ser restaurada. É verdade que no regime austríaco, o papel do presidente é meramente protocolar. Quem conduz os negócios de Estado, e principalmente a política externa, é o primeiro-ministro. Mesmo assim, sempre haverá um certo mal-estar se um homem, com um passado tão duramente questionado, vencer as eleições e assumir a presidência.
Várias pessoas, por suspeitas bem menores do que esta, foram levadas a diversos tribunais, para responder por seus atos durante a Segunda Guerra. Não se trata de uma questão de vingança como alguns poderiam pensar, mas de justiça. Cada homem público deve assumir a responsabilidade sobre os seus atos e sempre responder por eles, pois se não o fizer, não terá a mínima condição de dirigir nem o próprio destino, quanto mais o de uma nação. E muito menos de gerir um organismo internacional do porte da ONU, que congrega 159 países...
(Artigo publicado na página 20, Internacional, do Correio Popular, em 4 de maio de 1986)
Pedro J. Bondaczuk
A questão do passado do ex-secretário-geral da Organização das Nações Unidas, Kurt Waldheim, que é candidato favorito nas eleições presidenciais austríacas, vem despertando uma enorme polêmica, não somente na Áustria, mas praticamente em todo o mundo. Isso vem ocorrendo desde quando o Congresso Mundial Judaico divulgou, em março passado, documentos altamente comprometedores contra esse líder.
Em alguns círculos, as afirmações mais comuns são as de que não se pode comprometer a reputação de uma pessoa, principalmente de projeção tão grande quanto esse homem público, com meras suspeitas. Em outros, se argumenta que mesmo que seja comprovada a sua participação em organizações nazistas, o que conta é o presente e esse passado infeliz precisa ser esquecido. Há, finalmente, um outro grupo, esse mais numeroso, que defende que se faça justiça em relação a Waldheim, se as acusações forem comprovadas. E se não, que lhe seja assegurado o direito de uma ampla defesa.
O que é mais comprometedor para o ex-secretário da ONU é o fato dele ter dito meias-verdades quando o assunto veio a público pela primeira vez. Em princípio ele chegou a negar que sequer tivesse servido no Exército alemão. Quando foi divulgada uma foto, mostrando-o todo orgulhoso, ostentando um uniforme de suboficial nazista, retratou-se. Desconversou e disse que a coisa não era bem assim. Afirmou que realmente serviu nas tropas germânicas durante a Segunda Guerra, mas que não cometeu nem participou de nenhuma das atrocidades que lhe são agora atribuídas e a todo o seu grupo.
Mas essa versão também não coincide com a dos iugoslavos e a dos judeus gregos, que tiveram perto de 50 mil vítimas naquele período de ódio e insânia que a humanidade deixou para trás há apenas 41 anos. A imprensa da Iugoslávia, inclusive, publicou uma série de documentos que, no mínimo, despertam dúvidas nas pessoas sobre a inocência de Waldheim. Essas acusações, por outro lado, são reforçadas por documentos existentes sobre o seu passado nos arquivos da ONU, a mesma entidade que esse político dirigiu por tanto tempo. Nesta altura, fica uma dúvida enorme na mente do observador.
E é impossível se furtar a uma pergunta imediata. Será que era do conhecimento dos países que integram a entidade mundial o passado do seu então secretário-geral? Presume-se que sim. Afinal, os iugoslavos, búlgaros, gregos e soviéticos contribuíram com provas para formar esse "dossiê".
Nesta altura, uma nova suspeita assalta a mente de todos. Não poderia ter havido alguma espécie de "chantagem" para inibir a sua atuação à frente dessa organização internacional, facilitando as coisas para governos e pessoas que ameaçassem divulgar tais dados? Ninguém, é óbvio, pode afirmar que sim. Todavia, ninguém também tem condições de dizer, sem despertar novas dúvidas e indagações, que isso não aconteceu.
A reputação, bem dizia outro dia um político, é como a virgindade de uma moça. Uma vez perdida, é impossível de ser restaurada. É verdade que no regime austríaco, o papel do presidente é meramente protocolar. Quem conduz os negócios de Estado, e principalmente a política externa, é o primeiro-ministro. Mesmo assim, sempre haverá um certo mal-estar se um homem, com um passado tão duramente questionado, vencer as eleições e assumir a presidência.
Várias pessoas, por suspeitas bem menores do que esta, foram levadas a diversos tribunais, para responder por seus atos durante a Segunda Guerra. Não se trata de uma questão de vingança como alguns poderiam pensar, mas de justiça. Cada homem público deve assumir a responsabilidade sobre os seus atos e sempre responder por eles, pois se não o fizer, não terá a mínima condição de dirigir nem o próprio destino, quanto mais o de uma nação. E muito menos de gerir um organismo internacional do porte da ONU, que congrega 159 países...
(Artigo publicado na página 20, Internacional, do Correio Popular, em 4 de maio de 1986)
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