Monday, March 26, 2007

Trigal dourado


Pedro J. Bondaczuk


As lembranças da minha infância estão, em sua grande maioria, associadas à natureza. Nasci no campo, na região das Missões, no Rio Grande do Sul. Trata-se de uma das áreas mais bonitas não somente do Estado, mas de todo este Brasil, repleto de beleza selvagem que não valorizamos e nem nos empenhamos em conservar.

O cenário, na propriedade do meu avô paterno, era tipicamente europeu, em plena zona tropical, caracterizado pelo estilo das casas com os telhados apropriados para não deixar acumular a neve, o mesmo ocorrendo com os vastos galpões para armazenar feno, pelo tipo de cerca, pela cultura plantada na lavoura etc.

Jamais haverei de esquecer, por exemplo, os vastos trigais da fazenda, principalmente nas vésperas da colheita, quando o trigo estava repleto de espigas maduras, formando um imenso lençol uniforme e dourado. Era uma delícia nos finais das tardes passear no meio dessa plantação, com o vento batendo sobre as plantas e produzindo um cicio altamente relaxante, acompanhado pelo canto de milhares de pássaros, de todas as espécies e tamanhos (verdadeira praga para os agricultores, dada a sua voracidade) e de um aroma que nunca mais consegui sentir em lugar algum.

Só quem já experimentou a sensação de calma que esses passeios sem compromisso, sem rumo ou sem hora certa dão é capaz de entender o que quero dizer. Não há palavras que exprimam. Desde a minha meninice, a idéia de beleza e de paz vem sempre acompanhada da visão desses trigais, renovados de ano para ano.

A despeito das lembranças serem sempre positivas, e até nostálgicas, tão marcantes e irreais que até parecem um sonho, desses que não queremos acordar para que não cessem, há um incidente que na época foi traumatizante, e que hoje me causa riso.

Meu pai trabalhava principalmente com o trigo, por causa da experiência que trouxe da Europa com essa cultura. Como não tinha com quem me deixar, já que a minha mãe também saía para a roça logo de manhãzinha, antes que o sol nascesse por completo, muitas vezes me levava junto com ele, em um rústico carrinho de madeira que ele mesmo havia feito. Deixava-me, geralmente, em uma das alamedas, entre uma parte e outra do trigal, perto de onde ficava trabalhando.

Comigo ficavam o seu cantil e frutas que levava para comer nos intervalos entre uma tarefa e outra. Para não me perder de vista, fincava um pedaço de pau com um lenço vermelho amarrado na ponta. Onde quer que estivesse, portanto, naquele "mar" uniforme, conseguia me localizar sem dificuldades.

Num determinado dia, porém, esqueceu-se desse arranjo. Certamente devia estar com uma disposição incomum, pois começou a capinar bem próximo de onde eu estava e foi se afastando, afastando, afastando cada vez mais, até que eu o perdesse de vista.

A princípio não me preocupei. Quando me deu fome, fiz o que sempre fazia. Colhi umas espigas de trigo maduro, esfreguei entre as mãos as sementes para tirar-lhes a palha e comi os minúsculos frutos. Uma delícia! Até hoje consigo sentir seu sabor natural e saudável em minha boca.

As horas foram passando, o sol forte começou a declinar, anunciando o cair da tarde, e nada do meu pai voltar. Ao longe, muito longe, podia ouvir seus gritos: Pedrinho, Peedriiinho...Tentei responder, mas minha voz devia ser muito fraca, pois parece que não fui ouvido.

Comecei a entrar em pânico. As idéias mais aterradoras passaram-me pela cabeça, desde a da possibilidade de ser atacado por alguma cobra ou animal selvagem, até o medo de ter meus olhos devorados pela Boitatá das histórias contadas pela peonzada, ao redor das fogueiras, que eu ouvira tantas noites.

Uma pessoa bem que poderia se perder no meio daqueles trigais, já que os campos eram bastante uniformes e não havia pontos de referência para orientação. Pior era para uma criança e ainda por cima em pânico. A voz do meu pai, chamando meu nome, ora ficava mais próxima, ora se distanciava a ponto de ficar inaudível. Meu terror crescia com a mesma rapidez com que a tarde caía.

Por puro desespero, comecei a gritar, gritar e gritar, até sentir-me rouco, com a voz não querendo mais sair. Finalmente, meu pai achou-me, desfeito em lágrimas. Afinal, eu era uma criança de somente cinco anos. Em resumo, nunca mais o acompanhei ao trabalho, não mais ouvi o cicio do vento por sobre o trigal dourado e nem senti o aroma indescritível das espigas maduras. Como bem diz o ditado: tudo o que é bom, dura pouco.

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