Tuesday, March 20, 2007

Arte e ciência


Pedro J. Bondaczuk



As duas maiores manifestações de racionalidade são as ciências e as artes. Ambas implicam em criação, mais especificamente em "invenção" e exigem que o autor tenha preparo intelectual para exercê-las. Mas apenas isso não basta. É insuficiente que o artista ou o cientista estejam apenas com a cabeça cheia de conceitos abstratos, se não souberem o que fazer com eles.

No caso das artes, é preciso que o indivíduo seja dotado, sobretudo, de sensibilidade e que conte com aguçado senso de observação. Fernando Pessoa faz longas digressões sobre essas duas vertentes da razão, com observações precisas e originais.

Claro que como artista, na qualidade de escritor e sobretudo de poeta, opta, em suas apreciações, pelas artes. Afirma que se trata da manifestação mais legítima da criatividade, por partir virtualmente do nada, quando muito de um retalho de idéia. Já a ciência tem todo um arcabouço de leis fundamentais que regem a natureza, sem o conhecimento das quais nada poder fazer. Mas o pesquisador científico tem onde se apoiar. Conta com um ponto de partida.

Para tornar o raciocínio mais claro, Pessoa estabelece a diferença entre as disciplinas. "A Ciência descreve as coisas como são; a arte, como são sentidas, como se sente que são. O essencial na arte é exprimir, o que se exprime não tem importância". Seu âmbito, portanto, não é a precisão. É sobretudo o senso estético, a noção do belo, a sugestão dele mesmo onde não exista.

O campo de atuação do artista, "pastor de fantasias", quase sempre é o improvável, o imponderável, o impossível. Mas dessa abstração, mediante a utilização de signos, de símbolos, de sinais, consegue fazer o concreto: a obra de arte.

Na sociedade utilitarista de hoje, essa manifestação de racionalidade é encarada como coisa supérflua. É vista, com muito boa vontade, como um gosto, um "hobby", um passatempo ou às vezes um investimento financeiro. Veja-se o que está acontecendo com a poesia, cujos livros são cada vez menos consumidos e, por conseqüência, editados. No entanto, dos vários gêneros literários existentes, é o mais nobre, mais complexo e de mais difícil manejo.

O verdadeiro valor da arte, no entanto, não está no aspecto econômico, embora haja toda uma indústria orbitando ao seu redor. Ela é, no entender de Fernando Pessoas, "a auto-expressão lutando para ser absoluta". É ela, "e não a História", a verdadeira "mestra da vida". Por pior que seja uma obra, no seu aspecto formal, ainda assim brilha e se justifica se consegue despertar no espectador, senão contemplação, pelo menos reflexão, ou emoção.

"Uma obra de arte é...em sua essência uma invenção com valor", diz Fernando Pessoa. "Se não for invenção, o valor permanece a quem inventou; se não tiver valor não será obra de arte, pois que importa inventar o que não presta?" Na maior parte das vezes o artista parte, na elaboração do seu trabalho, de objetos e experiências pré-existentes.

Um escritor, por exemplo, na criação de um personagem para um romance, conto ou peça teatral, utiliza-se de características físicas e/ou psicológicas de pessoas que conhece ou conheceu. Ao preparar um cenário para o enredo da sua história, pesquisa vários ambientes, estilos e formas de decoração. Tem cuidado para que haja coerência quanto à moda da época em que a trama que elaborou se desenvolve.

Ou seja, lança mão daquilo que o cerca. Usa o que existe ou que existiu. Esse recurso vale tanto para pessoas, quanto para coisas. Ou para fatos, por que não? Mesmo quando projeta seu enredo no futuro, "cria" cenários, personalidades e experiências transformando o já existente. E nem por isso está deixando de fazer arte.

Um artista plástico, ao pintar uma tela, pode tomar como modelo uma paisagem que o impressionou, ou pegar alguém, ou algum objeto, como modelo. Não precisa --- e ultimamente não o faz --- reproduzi-los como são. Projeta-os em seu quadro como os "sente". O importante não é o que o inspirou. Não é como surgiu a idéia original. O que conta é a forma com que o artista a trabalhou. É o toque de inventividade que colocou na obra.

"Ao contrário da invenção prática, que é uma invenção com valor de utilidade, e da invenção científica, que é uma invenção com valor de verdade, a obra de arte é uma invenção com valor absoluto", acentua Fernando Pessoa. E conclui: "A arte é a notação nítida de uma impressão errada (falsa), (a notação nítida duma expressão exata chama-se ciência). O processo artístico é relatar essa impressão falsa de modo que pareça natural e verdadeira".

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