Monday, March 05, 2007

A edição inesquecível


Pedro J. Bondaczuk


O bom jornalismo – o que vale a pena fazer por respeitar a inteligência do leitor – caracteriza-se, sobretudo, pela imparcialidade, isenção, precisão e absoluta veracidade dos fatos noticiados. Por isso, recomenda-se que seus principais agentes, em especial repórteres e editores, não tenham qualquer espécie de envolvimento emocional, ou de interesse pessoal no que noticiem. Ou seja, que deixem a emoção em casa (como se isso fosse possível) e atuem com absoluta objetividade no exercício da sua função. Pelo menos, é o que ditam os melhores manuais de redação que circulam por aí. Certo? Depende!
Pode até ser que tudo isso seja o ideal (provavelmente é). Mas seria possível (pelo menos sempre)? O jornalista é, evidentemente, como todas as pessoas do mundo, movido a emoções e interesses. É sujeito a determinadas circunstâncias que não pode evitar ou (muito menos) fugir delas. Não é máquina, como alguns editores-chefes parecem pensar, que possa ser programada para executar determinada tarefa, de forma mecânica, rigorosamente dentro do programado. Embora isso seja óbvio, nem todos entendem as coisas dessa maneira.
Todo editor veterano tem, em seu portfólio profissional, diversas edições que considera inesquecíveis: ou pela relevância dos fatos relatados, ou pelas circunstâncias que as cercaram, ou por qualquer outro motivo (e se subjetivo ou objetivo não importa). Claro que nestas quatro décadas de janela, tive, também, as minhas. E não foram poucas.
Quando editava política internacional, por exemplo, posso citar como edições marcantes, por serem históricas, as dos atentados contra o papa João Paulo II e, tempos depois, contra Ronald Reagan. A primeira guerra do Golfo, por sua vez, valeu-me, inclusive, importantes prêmios jornalísticos e se constituiu num marco para o jornal em que trabalhava, o Correio Popular, que aproveitou a ocasião para lançar fotos em cores em todas as suas páginas.
Ainda nessa editoria, posso citar, assim de passagem, sem dar muitos tratos à memória, como momentos marcantes na carreira, os assassinatos de Indira Gandhi e, posteriormente, de seu filho Rajiv, na Índia; o golpe frustrado contra Mikhail Gorbachev, na antiga URSS; a desintegração da União Soviética; a queda do Muro de Berlim; a reunificação da Alemanha; o desmantelamento sangrento da Iugoslávia; a morte da princesa Diana, seguida da de Madre Teresa de Calcutá, e tantas e tantas e tantas outras jornadas, tidas pelos meus superiores (e, principalmente, pelos meus generosos leitores) como notáveis.
Em outras editorias em que trabalhei, também tive edições inesquecíveis. Em economia, por exemplo, creio ter feito um trabalho soberbo com os planos Cruzado, Verão e Real; com o confisco da poupança anunciado pela ministra Zélia Cardoso e com a moratória da dívida externa brasileira.
Em política, citaria o impeachment de Collor e o caso dos Anões do Orçamento, além do assassinato de PC Farias e de tudo o que o cercou. No Caderno C, de Artes e Variedades, destaco as edições das mortes de Ellis Regina e de Tom Jobim, entre tantas outras. E no Esporte, a co-edição dos cadernos especiais das Copas do Mundo de 1994 e de 1998 e da morte de Ayrton Senna. Fiz, também, algumas capas que foram consideradas obras-primas de edição, no pouco tempo em que fui editor da Primeira Página do Correio Popular. São trabalhos dos quais, sem dúvida, me orgulho e que nunca irei esquecer. Nem poderia. Marcaram e valorizaram minha carreira.
Todavia, minha “edição inesquecível número um”, a que põe, com folga, todas as citadas acima no chinelo – porque feita nos limites da minha emoção, que fiz chorando copiosa e convulsivamente, e que nem sei como consegui concluir – foi a da morte de uma pessoa que aprendi a gostar e a admirar ao longo de uma curta, mas profunda convivência profissional.
Relutei muito antes de fazer a confidência que se segue. Sei que corro o risco de ser mal-interpretado e deste texto vir a ser considerado “piegas” (infelizmente, nestes tempos medíocres e violentos que vivemos, emoções sadias são interpretadas, por pessoas amargas e infelizes, como “pieguice”). Talvez até o seja. Mas devo este relato à memória dessa figura tão especial (e saudosa), que teve a vida ceifada tão prematuramente, pondo fim, abruptamente, a uma carreira jornalística que tinha tudo para ser das mais brilhantes e vitoriosas.
Em 1997, após conquistar um merecido Prêmio Esso, o Correio Popular resolveu fazer um jornal ainda melhor do que já fazia e que lhe valera tão honrosa premiação. Seria mais organizado, mais volumoso e, sobretudo, mais bonito. O objetivo principal, porém, era o de facilitar a leitura. Tratou-se da culminância de um longo e meticuloso planejamento, de uma grande e afinada equipe, que havia visitado, inclusive, vários jornais do exterior, notadamente da Europa. Partiu-se para a chamada “cadernelização”.
O caderno de Cidades, editoria tida e havida como das mais importantes em qualquer jornal que se preze, por tratar de notícias locais, daquelas que ocorrem na localidade em que ele tem sua sede, por razões industriais, tinha que fechar, impreterivelmente, às 18 horas. Esse deadline apertado, contudo, abriu perigosas e incômodas brechas para o concorrente deitar e rolar, acumulando furos e mais furos noticiosos sobre nós.
Para sanar essa deficiência, o Conselho Editorial decidiu criar uma nova editoria. Foi intitulada, simplesmente, de “Últimas”. Dispunha de pouco espaço e de imensa abrangência. Sua finalidade era a de noticiar tudo, absolutamente tudo o que ocorresse de importante em Campinas, quer na área política, quer na policial, na de esportes, na de artes etc., após o fechamento das respectivas editorias. Era a única seção do jornal autorizada a fechar depois da Primeira Página. Ainda assim, seu deadline era apertadíssimo e não se toleravam atrasos sequer de segundos.
O editor, os repórteres e fotógrafos dessa editoria, portanto, teriam que ser sumamente ágeis, eficientes e atentos para cumprir o horário e ainda assim não levar nenhum furo e muito menos comprometer a qualidade. Coube-me essa árdua e indigesta tarefa. Mas também me foi dada a prerrogativa da escolha das pessoas que eu queria ao meu lado. Entre os repórteres de Cidades que me foram oferecidos, havia alguns de muita experiência, com passagens por grandes jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro. Optei, todavia, por uma baixinha elétrica, agitada, brigona (no bom sentido), embora de texto não tão bom como os demais. Era a Luíza Fonseca.
Quem não nos conhecesse, acharia que nos odiávamos. Passávamos noites e mais noites trocando farpas, discutindo, invariavelmente, a cada edição, dopados de adrenalina, como exigiam as respectivas funções que ocupávamos: ela reclamando do pequeno número de linhas que eu lhe destinava para as suas matérias. Eu, cobrando agilidade, eficiência e correção dos textos. Mas o resultado do nosso trabalho logo saltou aos olhos. Modéstia a parte, era impecável. Na verdade, tínhamos um mútuo respeito profissional. Mais do que isso, um afeto de dois irmãos, desses muito ligados um ao outro, nos unia. Um confiava cegamente no outro, a despeito das mútuas queixas e recriminações (que eram só da boca para fora).
A Luiza apaixonou-se por um colega de serviço, da área de informática do jornal, namorou com ele, casou-se e não tardou a engravidar. Embora, para preservá-la, eu quisesse transferi-la para outra editoria, que lhe exigisse menos esforço, ela não aceitou. E tanto falou em meus ouvidos, que resolvi mantê-la na função. Mas sem lhe dar o mínimo refresco. E a valente repórter trabalhou até dias antes do parto, com entusiasmo crescente e sem atrasar uma só matéria pautada e nem levar o mínimo furo. Era um azougue!
Após dar a luz, fato recebido com festa por toda a redação, eis que pinta uma tragédia. Um traiçoeiro aneurisma cerebral estourou e... Luíza morreu, uma semana após o nascimento de sua filha. Fiquei em estado de choque! Solicitei licença à direção do jornal, que me foi negada, sem qualquer explicação. Pior: decidiu-se que seria feita uma matéria especial, a ser publicada com grande destaque, e justo na minha (ou melhor, na nossa) editoria. Roguei, insisti, ameacei e tentei de tudo para que outro editor me substituísse na tarefa. Não adiantou. Coube-me a dificílima incumbência dessa edição.
Até hoje, não sei como consegui concluir a tarefa. Foi como se estivesse em transe. As lembranças desse dia ainda estão muito confusas em minha mente. Só me recordo que meus olhos estavam embaçados pelas lágrimas, que me escorriam, abundantes, pelo rosto e pingavam em meu peito. Não conseguia, por mais que tentasse, ler o texto, redigido por um dos melhores repórteres do jornal, sobre a trajetória profissional da Luiza: objetivo, sóbrio e ponderado, sem deixar de realçar os méritos da querida amiga (conforme constatei, tempos depois).
Se contivesse erros, estes sairiam, fatalmente, na edição. Eu não tinha a menor condição psicológica (e sequer física) de revisar e editar o que quer que fosse, quanto mais essa matéria específica, sobre uma companheira de trabalho com quem tinha tão fortes laços de amizade e de admiração (diria, de cumplicidade). Houve, no entanto, unanimidade no jornal: todos, do diretor ao porteiro, consideraram essa a melhor edição que fiz nos vinte anos que trabalhei no Correio Popular. Pudera! Foi feita com garra, com lágrimas e com intensíssima e incontrolável emoção. Afinal, como dizem os artistas (notadamente os de teatro): haja o que houver, o espetáculo tem que continuar! No jornalismo, como se vê, essa máxima também prevalece.

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