Wednesday, March 07, 2007
Comércio com fantasmas
Pedro J. Bondaczuk
A correspondência entre escritores constitui importante acervo de informações sobre sua vida, seus gostos, suas idéias, suas idiossincrasias, suas amizades e até (ou, quem sabe, principalmente) suas inimizades. Após sua morte, tornam-se, não raro, preciosa coleção de documentos, onde seus biógrafos, via de regra, se abastecem, para explicar determinadas passagens da sua vida. Estão aí as cartas escritas e recebidas por Fedor Dostoievski, Mário de Andrade, Monteiro Lobato e tantos outros, transformadas em livros, alguns verdadeiros best-sellers.
Antes do advento do e-mail, escrevi (e recebi) poucas cartas. Preguiça minha, claro! Por causa dessa inércia, afastei-me de amigos muito queridos, aos quais prezava muito e de quem perdi contato. Pena! Ademais, a maioria da minha correspondência se perdeu nas várias mudanças de casa por que passei, até adquirir a atual, em que resido, e que jamais pretendo me desfazer. Por conseqüência, esse enorme acervo tornou-se irrecuperável. Puro relaxo meu, que prometo não mais repetir!
Passei a ter consciência da importância de conservar minha correspondência para a posteridade apenas de uns dez anos para cá. Desde então (aprendi a lição), arquivo todos os e-mails, tanto os que escrevo, quanto os que recebo (claro, os pessoais, aqueles que possam conter informações úteis aos meus eventuais futuros biógrafos, e não os comerciais, que deleto).
Tive o capricho, também, de digitar, e arquivar na memória do computador, as cartas que se salvaram da destruição, ou do extravio, ou então da perda, não importa. Infelizmente, restaram poucas delas para contar a história. Estimo que dois quintos (ou menos) das que recebi (ou que escrevi) foram recuperados. E estas últimas só escaparam de se perder por causa do hábito que sempre cultivei de escrever cartas com cópia.
A correspondência que consegui preservar melhor foi a que mantive com o jornalista, poeta, conferencista, acadêmico e extraordinária figura humana, Maurício de Moraes, já falecido, mineiro de Ouro Fino, cidade que, aliás, preserva a sua memória. Não faz mais do que a obrigação! Afinal, esse meu querido e saudoso amigo amou, como ninguém, sua pequenina, mas acolhedora terra natal, que perpetuou em magníficos versos e em marcantes crônicas.
O que consegui salvar, todavia, foram apenas 16 cartas que lhe escrevi (a primeira, datada de 12 de janeiro de 1993 e a última, de 20 de julho desse mesmo ano). Pelos assuntos que comento com o poeta, dá para deduzir algumas coisas que ele me escreveu, no seu estilo lírico, mas sempre bem-humorado. Aliás, o bom-humor e o otimismo sempre foram características marcantes de Maurício de Moraes. Era uma pessoa que nunca vi triste. Vivia em outro mundo. Com ele não tinha “tempo quente”, como diz o povão. Tinha uma espécie de filtro na mente e só enxergava o lado cor-de-rosa, belo e nobre da vida. Teve, por conseqüência, influência marcante no meu comportamento e na minha mentalidade, notadamente nas muitas crises existenciais que atravessei (e que com sua ajuda superei).
A primeira das cartas que lhe escrevi começa assim:
“Campinas, 12 de janeiro de 1993
Caro amigo e irmão de ideais Maurício:
Espero que esta carta o encontre gozando de paz e saúde, na companhia dos seus. Antes de tudo, quero penitenciar-me por minha imperdoável falta de delicadeza, ao não retribuir a tempo o seu gentil cartão de boas festas, com mensagem tão profunda e emocionante, que só pode sair, mesmo, da alma, da sensibilidade e do talento de um grande poeta, como você é.
Você sabe que a amizade que diz ter por mim é recíproca. Nem precisava dizer, não é mesmo?! Você tem certeza disso! Afinal, não nos conhecemos ontem. Aliás, devo confessar que o considero, se não o único, pelo menos um dos raros verdadeiros amigos que me restaram. Muita gente me jura "eterna" e desinteressada amizade. Mas na hora do vamos ver...É puro interesse! Deixa pra lá!
Concordo com você quando observa que não deixa de ser estranho o fato de dois amigos, que se gostam tanto e que residem na mesma cidade, se comunicarem apenas por carta. Mas você sabe do meu empenho na profissão. Não tenho tempo nem para respirar! (...)”
A última das cartas que lhe escrevi, e que consegui preservar, tem este início:
“Campinas, 20 de julho de 1993
Amigo Maurício:
Nesta terça-feira gelada, com os termômetros das ruas da cidade marcando cinco graus centígrados, sinto-me como se estivesse na Sibéria. Ainda assim, dez horas da noite, concluído o meu trabalho, sento-me diante da familiar máquina de escrever, com os dedos enregelados, para dar continuidade ao nosso interminável "papo epistolar".
Melhor seria, claro, se estivéssemos cara a cara, em casa ou em algum desses tantos bares aconchegantes que ainda há em Campinas, com um copo de bom uísque (digamos, um Jack Daniel's 12 anos, por exemplo), "cowboy" (isto é, sem gelo e sem soda), nas mãos, a trocarmos confidências, falando da vida, do trabalho, da cultura e, principalmente, de literatura, nossa mútua paixão. Como isso não é possível, é melhor nos contentarmos mesmo com essa troca de cartas, para sabermos notícias um do outro e até para fazermos pequenas "fofocas" (por que não?!).
Primeiro vou falar da minha saúde, que tanto vem preocupando o amigo. Não se preocupe! "Vaso ruim não quebra", como diz o povão. O fato de eu ser chorão impressiona algumas pessoas. Afinal, "quem não chora, não mama". Mas tenho uma resistência física "cavalar". Não é qualquer achaquezinho besta que me derruba.
Apesar de me sentir cansado (devo estar com a imunidade muito baixa e com algum foco infeccioso no organismo), estou razoavelmente bem. A conjuntivite cedeu quase por completo, embora a acuidade visual do olho direito tenha ficado muito reduzida. Não faz mal! Se a natureza quer assim, ficarei caolho! O que fazer?! É o preço que devo pagar por tantas e tantas horas de leitura e de texto. Aliás, é um tributo irrisório para tamanho prazer intelectual. (...)”
As nossas cartas eram extensas, com média de dez páginas de vinte linhas cada (algumas chegavam a trinta laudas), em espaço dois, redigidas em minha Olivetti portátil (as dele, eram manuscritas). Eram descontraídas e brincalhonas, como deve ser a correspondência entre dois amigos íntimos, que não têm cerimônias e nem segredos um com outro. Os que as leram, juram que só essas 16, que se salvaram, dariam um livro interessante. Será?! Bondade deles. Não chegam a tanto.
Franz Kafka confidenciou, certa ocasião, a amigos: “Escrever cartas é um comércio com fantasmas”. E, de fato, é. Principalmente, a releitura dessa correspondência. Pessoas pelas quais nutrimos grande afeto e admiração, que já morreram, ganham vida, subitamente, outra vez. Fatos que então nos afligiam e tiravam o sono, hoje nos causam risos, mas, não raro, até saudades. A vida muda e oscila ora para cima, ora para baixo. Tudo, porém, constitui-se em valiosas experiências, em preciosíssimas lições, em capítulos da nossa biografia, que escrevemos, com suor, sangue e lágrimas, no cotidiano. Continuarei, pois, por muitos anos, a manter esse “comércio com fantasmas”, posto que não mais por cartas (obviamente), mas agora por e-mails, mais ágeis, limpos e, sobretudo, modernos. Por que não?!
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