Thursday, June 26, 2008

Óculos do poeta


Pedro J. Bondaczuk

Roubaram os óculos do poeta. E essa não foi a primeira vez que isso aconteceu, mas a quarta. Notem que fui específico na informação e não genérico. Escrevi “do” poeta e não “de um” poeta qualquer. Calma, leitor, que me explico. Refiro-me ao roubo ocorrido no início do ano dos óculos da estátua de ferro fundido, banhada em bronze, de um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos, Carlos Drummond de Andrade, que está na Avenida Atlântica, na altura da Rua Rainha Elizabeth, no Posto 6, em Copacabana, no Rio de Janeiro.
Pela quarta vez, a prefeitura da cidade teve que restaurar o monumento, a um custo, agora, de R$ 3 mil, bancado, claro, pelo nem sempre (ou nunca) farto bolso do contribuinte. O custo, convenhamos, não é bem o caso. O que se estranha é a insistência em deixar o busto do hiper-talentoso mineiro de Itabira sem os seus óculos.
Qual a razão de repetirem o mesmo roubo, da mesmíssima forma, com a mesmíssima personalidade pública? Seria um simples ato de vandalismo, pelo estúpido prazer de depredar um patrimônio público (muitos se divertem com isso)? Seria alguém ávido por uma lembrança da Cidade Maravilhosa? Ou seria um admirador de Drummond querendo algum tipo de recordação do nosso poeta maior?
Caso a resposta seja esta última, o ato, já por si só sumamente sem sentido (e criminoso, claro), ganha dimensões ainda piores. Torna-se de uma estupidez (não diria cavalar, em respeito ao animal) sem limites. Há formas muito mais simples, e honestas, para se conseguir um souvenir de quem quer que seja. Ademais, dos poetas, o que conta é a sua obra, é o seu talento, são seus versos mágicos e divinos.
Se for esse o caso, por que esse indivíduo não comprou um dos tantos livros deixados por Drummond (“A bolsa & a vida”, por exemplo, ou “Viola de bolso”, quem sabe)? Nem precisaria percorrer livrarias. Poderia ter adquirido num sebo qualquer. Ah, não tinha dinheiro para isso?! Que pena!
Mas esse não seria o problema. Por que não entrou, então, na internet, não acessou o Google e não digitou “Carlos Drummond de Andrade”? Se fizesse isso, teria à sua disposição, de imediato, milhares de links, com reproduções de textos do poeta.
O quê? Não tem computador? Que pena! Ah, não é isso? Não gosta de poesia? Mais pena ainda! Se for o caso, é alguém de péssimo gosto, que vê a vida sempre em tons sombrios e cinzas. Ainda não é isso? O que?! Não sabe ler? Pena máxima! Só mesmo um analfabeto (mesmo que não literal, mas “cívico”, dos que não têm respeito sequer com a memória de um país) para fazer uma bobagem dessas!
E foram fazer isso justo com Drummond, que amava tanto essa cidade do Rio de Janeiro! Justo com uma figura tão doce e tão afável! Justo com quem compreendia tanto as pessoas e suas contradições e carências! Infelizmente, na minha indignação, tenho que violentar meu estilo e abusar das interjeições e, principalmente, das exclamações.
Tenho por Drummond um carinho muito especial. Não somente por ter essa figura por paradigma para meus pobres e acanhados versos mambembes, mas por haver conseguido chamar sua atenção e recebido uma comovente carta do poeta, escrita há uma semana exata da sua morte. Que homem brilhante, afável, humilde e generoso que foi!
E quem foi o pilantra que cometeu, e repetiu mais três vezes, essa violação? Foi algum morador da cidade, algum garotão desocupado, que fez a estripulia apenas para se exibir com as garotas? Foi alguém passando fome e que viu a oportunidade de ganhar alguns trocados, sob risco de ser pilhado em flagrante delito? Foram pessoas diferentes que fizeram isso? Foi alguém de fora, algum turista, quem sabe do Exterior? Afinal, o último roubo ocorreu por volta do Carnaval deste ano.
Reitero: foram fazer isso justo com Drummond, que amava tanto essa cidade! Com quem escreveu, no seu poema “A bruxa”, estes versos magníficos e basilares!:

A Bruxa

Nesta cidade do Rio
De dois milhões de habitantes
Estou sozinho no quarto
Estou sozinho na América.

Estarei mesmo sozinho?
Ainda há pouco um ruído
Anunciou vida a meu lado.
Certo não é vida humana,
Mas é vida.
E sinto a Bruxa
Presa na zona de luz.

De dois milhões de habitantes!
E nem precisava tanto...
Precisava de um amigo,
Desses calados, distantes,
Que lêem verso de Horácio
Mas secretamente influem
Na vida, no amor, na carne.

Estou só, não tenho amigo,
E a essa hora tardia
Como procurar amigo?
E nem precisava tanto.
Precisava de mulher
Que entrasse nesse minuto,
Recebesse esse carinho
Salvasse do aniquilamento
Um minuto e um carinho loucos
Que tenho para oferecer.

Em dois milhões de habitantes
Quantas mulheres prováveis
Interrogam-se no espelho
Medindo o tempo perdido
Até que venha a manhã
Trazer leite, jornal, calma.
Porém a essa hora vazia
Como descobrir mulher?

Esta cidade do Rio!
Tenho tanta palavra meiga,
Conheço vozes de bichos,
Sei os beijos mais violentos,
Viajei, briguei, aprendi
Estou cercado de olhos,
de mãos, afetos, procuras
Mas se tento comunicar-me,
O que há é apenas a noite
E uma espantosa solidão

Companheiros, escutai-me!
Essa presença agitada
Querendo romper a noite
Não é simplesmente a Bruxa.
É antes a confidência
Exalando-se de um homem.

Pois é, roubaram, e por quatro vezes, os óculos do poeta. Mas quem foi que ficou sem visão? Foi a vítima (no caso a estátua de Drummond) ou foi o ladrão, que não enxerga um palmo à frente do nariz?

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