Tuesday, September 19, 2006
Entre dois mundos
Pedro J. Bondaczuk
A minha vida, desde os cinco anos, transcorre, simultaneamente, em dois mundos diferentes, não raro conflitantes, nenhum dos quais estou disposto a abrir mão. Um deles é o da suposta realidade, o do cotidiano, com dificuldades, privações, injustiças e violências de toda a sorte e tudo o que de ruim se possa imaginar (e que os meios de comunicação despejam todos os dias em minha casa e, não raro, sinto na própria carne). Contudo, ele tem, igualmente, sutilíssimas surpresas agradáveis e momentos inesquecíveis de exaltação e de felicidade. Abriga canalhas e santos, patifes e heróis, gênios e loucos, sanguinários assassinos e sublimes curadores de corpos e de mentes.. Tem de tudo! Por isso, viver nele me fascina e me desafia, pelo quê de aventura e de mistério que cada momento proporciona.
O outro mundo, exclusivo (só meu), é o da cultura, da arte e, principalmente, da literatura sob o meu enfoque pessoal: o dos gostos que cultivo desde que me entendo por gente. Este “planeta” particular materializa-se nas centenas de discos que coleciono há décadas (de vinil, claro, pois ainda não entrei na era do CD), na infinidade de gravuras e de reproduções da obra dos grandes mestres das artes plásticas (quem me dera possuir os originais!) e, principalmente, nos milhares de livros que compõem a minha eclética e caótica biblioteca. E assim vou tocando a vida, que já passa das 60 primaveras, aprendendo e ensinando, me indignando e me emocionando, rindo e chorando, tentando modificar a realidade para melhor e cultivando sonhos, como se fossem delicadas flores de um místico jardim. Oscilo entre a inovação e a tradição.
Mas por que passei a viver, simultaneamente, nestes dois mundos, especificamente após somente os meus cinco anos, nem antes e nem depois, como afirmei? Porque foi nessa idade que aprendi a ler, com meu pai, tendo por cartilha uma velha Bíblia, de páginas hoje amareladas e amassadas de tanto manuseio e que conservo como minha mais preciosa relíquia. Considero esse o momento mais transcendental desde que nasci, que determinou o meu rumo: o que sinto, o que penso e o que sou.
A vida simultânea nestes dois mundos foi decisiva na escolha, principalmente, das minhas atividades, do que faço para me sustentar e do que produzo para me deleitar. A realidade fez de mim um jornalista, obcecado à cata de informações sobre o que de principal acontece, dia após dia, mundo afora. Ou seja, reproduzo a história (sob a minha versão) no momento exato em que ela acontece. Já o mundo das artes fez de mim um poeta, um ficcionista, um malabarista da palavra. É aí que entram os livros e o convívio espiritual, diário, semana após semana, mês após mês, ano após ano, com os seus autores.
Há escritores que não se concebe que jamais tenham existido. Enriqueceram o mundo com sua genialidade e seu talento de criação e por isso são imprescindíveis. Embora fisicamente mortos, conquistaram a imortalidade pelas obras que legaram à humanidade. Cada apreciador de literatura tem sua própria relação de preferidos, sendo que alguns são unanimidade e integram todas as listas.
No meu rol pessoal de preferências, por exemplo, nomes como os de Jorge Luís Borges, Juan Rulfo, Mário Vargas Llosa, Érico Veríssimo, Mário Quintana, Carlos Drummond de Andrade, Machado de Assis, Cecília Meirelles, Manuel Bandeira, Pablo Neruda, Gabriela Mistral, Gabriel Garcia Márquez e Fernando Sabino – cada qual por alguma razão particular – jamais poderiam faltar. Isso, entre os contemporâneos, ou seja, do século passado para cá.
É claro que esse desfile de gênios poderia engrossar e alcançar as dimensões de uma lista telefônica como a da cidade de São Paulo. Nela, jamais esqueceria de incluir Ernest Hemmingway, William Faulkner, John Steinbeck, Edgar Allan Poe, Leon Tolstoi, Jorge Amado, Marcel Proust, Fiodor Dostoievski, Honoré de Balzac, Montaigne, Gustave Flaubert, Émile Zola, Gogol, Pushkin, Guimarães Rosa, Stendhal, Henry David Thoreau, Will Durant, Ralph Waldo Emerson, Rabindranath Tagore, T. S. Eliot, Rainier-Marie Rilke, Jean-Paul Sartre, Albert Camus, Franz Kafka, Alberto Moravia, Fernando Pessoa, Augusto dos Anjos, Vinícius de Moraes, Cora Coralina e tantos e tantos outros criadores de vida, garimpeiros de beleza e pastores de sonhos e ilusões que me embalam com freqüência.
Entre os “eternos”, ou seja, os clássicos - os que estariam, sempre, num patamar mais elevado, todo especial – cito, sem pestanejar, Platão, Aristóteles, Homero, Ovídio, Juvenal, Cícero, Virgílio, Petrarca, Camões, Dante, o Padre Antônio Vieira, William Shakespeare, Johann Wolfgang Göethe e mais alguns milhares de luminares do saber e das artes. Há livros que, se não existissem, determinariam até um destino mais mesquinho para povos e civilizações, um atraso irreversível e irrecuperável.
Hoje nós, intelectuais ditos pós-modernos, que tanto nos jactamos de nossa cultura, não passaríamos de anões do pensamento sem esses gênios. Somos (supostamente) grandes, porque estamos sobre os ombros de gerações e mais gerações de pensadores notáveis que dedicaram suas vidas a iluminar os corações e as mentes dos néscios como nós e que nos agigantam.
Esses escritores viveram, na prática, o mito de Prometeu. Ousaram subtrair a chama sagrada de Zeus para dar vida à matéria inanimada dos seus sentimentos e das suas fantasias pessoais. Por isso, foram punidos, atados aos Montes Urais das suas lembranças, tendo o fígado devorado pelos abutres dos tormentos psicológicos e emocionais por toda a eternidade. Sublimes sonhadores! Loucos é que foram! Santa loucura!
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