Wednesday, December 08, 2010




Rebeldia com causa

Pedro J. Bondaczuk

Júlia Valentina da Silveira Lopes de Almeida, fluminense, nascida em 24 de setembro de 1862, foi uma pioneira em seu tempo. Pode-se dizer que se tratou de uma rebelde, mas de uma rebeldia com causa, como vocês verão na seqüência.
Numa época em que a sociedade patriarcal brasileira reservava à mulher um papel específico, delimitado e definido – ou seja, o de casar, cuidar do marido e da casa, gerar muitos filhos e educá-los e só isso, sem tirar e nem pôr – ela teve a “suprema ousadia” de sair desse script. Resolveu que seria escritora, correndo riscos de ser incompreendida (e de fato foi) e execrada.
E por que trago este tema, hoje, à baila? Em parte é por bairrismo explícito. Afinal, Júlia Lopes de Almeida passou a maior parte da infância e da adolescência nesta cidade que generosamente me adotou (e que amo de paixão) que é Campinas. Foi aqui que publicou, ainda moçoila, seus primeiros textos, que denunciavam a madura e talentosa escritora em que se tornaria.
Muitos leitores achavam que o nome que usava para assinar suas colaborações era pseudônimo, que as crônicas publicadas na “Gazeta de Campinas” eram de autoria masculina, de alguém muito tímido, que preferia se esconder sob um nome de mulher. Vejam quanta burrice! E isso não faz tanto tempo assim, menos de um século e meio.
Quem não gostava nem um pouco dessa “ousadia” era o pai da meninota, Valentim José da Silveira Lopes, professor e médico, que recebeu um título de nobreza do Imperador Dom Pedro II, tornando-se o Visconde de São Valentim.
Júlia escrevia às escondidas, o que confessaria anos mais tarde, em 1905, em entrevista que concedeu ao consagrado cronista carioca João do Rio. Para acabar com a mania da filha, o pai só viu um caminho e fez o que lhe parecia óbvio naquele tempo: casou-a. No entanto, o tiro saiu pela culatra. O marido escolhido foi um jovem escritor português, Filinto de Almeida, que logo se apaixonou (também) pelo talento literário da esposa.
Na época, ele era o diretor da revista “A Semana”, do Rio. Não tardou para o maridinho derretido reservar uma coluna semanal justo para quem? Para a mulherzinha criativa e talentosa, logicamente. E foi um sucesso enorme, com ou sem oposição familiar.
Gosto de Júlia Lopes. Seus livros estão entre os meus preferidos, quer os de ficção, quer os de crônicas (os meus prediletos). Só não entendo porque sua obra não vem sendo republicada, privando as novas gerações de suas idéias e de seu estilo delicioso e coloquial.
Vejam como era o machismo, notadamente nos primeiros anos do século XX (para não dizer no século XIX, que era muito pior). A escritora, colunista por mais de trinta anos do jornal “O País”, participou, ativamente, das reuniões que redundaram na criação da Academia Brasileira de Letras.
Era amiga pessoal de Machado de Assis, admirador do seu talento. Mas, na hora de se definirem os titulares, os primeiros ocupantes das 42 cadeiras, o que vocês acham que aconteceu? Isso mesmo! Júlia Lopes sequer foi sugerida e em momento algum chegou a ser cogitada para integrar uma instituição cuja contribuição para existir foi decisiva da sua parte. Motivo da exclusão? Era mulher!
Bem que sua obra, de mais de 40 livros – entre romances, contos, literatura infantil, teatro, jornalismo, crônicas e obras didáticas – a credenciavam, mais do que à maioria dos escolhidos, a uma cadeira na ABL.
Digam, honestamente, se quem escreveu coisas como este trecho do “Livro das donas e donzelas”, merece ou não a imortalidade literária: “Datas são algarismos sem forças para fazer sentir o violento azul do nosso céu, nem os ramalhões purpurinos das nossas árvores, nem este chiar incessante das cigarras entontecidas de luz, anunciando o calor”.
Ou este: “Para gente moça o maior encanto da vida está no que há de vir, no que se ignora; para quem transpõe o cabo dos quarenta, está no passante, que passa ligeiro, ligeiro, como a corrente de um rio caudaloso”.
Ou este: “O ano em que parte da nossa vida discorreu, acaba? Deixa-o acabar. O outro que vier terá as mesmas quatro estações; o sol inflamará a terra no verão, o vento fará cair as folhas no outono, as neves caracterizarão o inverno, e as boninas esmaltarão os campos na primavera. Assim como o tempo, fosco ou luminoso, os homens serão maus ou bons e a vida fará seu giro imperturbável, desfazendo e criando, entre declínios e triunfos”.
Que droga que é o preconceito, não é mesmo?!!!!

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