Thursday, December 30, 2010




Pior que Anne Frank

Pedro J. Bondaczuk

A Segunda Guerra Mundial terminou há 65 anos, pelo menos em território europeu – na Ásia só acabou em 16 de agosto de 1945, com a rendição japonesa, após as explosões das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki –, mas os relatos feitos por sobreviventes dos campos de concentração nazistas continuam despertando interesse nas gerações atuais.
É verdade que o distanciamento dos fatos faz com que as narrativas soem como ficção. Virou moda, hoje em dia, irresponsáveis afirmarem, a despeito da profusão de documentos, fotos e filmes comprobatórios daquele dramático e infernal período, que o Holocausto “não teria acontecido” e que não passaria de “farsa”.
São, todavia, afirmações desonestas, estúpidas e descabidas, feitas por boçais, que se recusam a se ater aos fatos e procuram “apagar” a própria História, como se ela não houvesse acontecido. Desgraçadamente, aconteceu. E resultou, entre outras coisas, no bárbaro e metódico extermínio de seis milhões de judeus, além de uma quantidade jamais determinada, mas imensa, de ciganos, de pessoas de origem eslava, de deficientes físicos, de doentes mentais etc.etc.etc.
Tenho comigo um livro, na verdade um roteiro cinematográfico do filme “Shoah”, com centenas de fotografias que marcam para sempre quem tem a oportunidade de vê-las. Não são recomendadas a pessoas sensíveis, que sejam verdadeiramente “humanas”, na mais lídima expressão do termo. Os autores dessas atrocidades, dessa matança metódica, continuada e em massa, seguida da queima como que “industrial” dos milhões de cadáveres nos fornos crematórios dos vários campos de concentração, não podem ser considerados nossos iguais, da nossa espécie (embora fossem).
É como se seres extraterrestres, sumamente cruéis, insensíveis e sanguinários, tivessem vindo do espaço com a missão específica de eliminar os que fossem verdadeiramente dotados de humanidade. Sua crueldade foi tamanha, que chega a gerar dúvidas no espírito dos que nasceram pós-1945 que tenha sido real.
Em 31 de março de 2010 morreu, em Paris, aos 80 anos de idade, Ana Novac, uma das poucas sobreviventes daqueles campos da morte instituídos pelos nazistas e que foi, simultaneamente, protagonista e testemunha daqueles tempos de horror.
E o que essa anciã tem de especial para que se a mencione? Ela foi a autora de um dos livros mais pungentes e dolorosos já escritos “em” e “sobre” campos de concentração. Por ser judia, aos onze anos de idade foi aprisionada com a família na Romênia, onde eles viviam, e enviada, inicialmente, para Auschwitz. Ali, presenciou, em desespero, a morte dos pais na câmara de gás, impotente para tentar fazer qualquer coisa para salvá-los. Escapou de idêntico destino por milagre. Permaneceu encarcerada nesse local por um bom período, sendo transferida, com o desenrolar da guerra, para outros campos, como o de Plaszow.
Ana, todavia, ainda menininha, tinha uma paixão: escrever. E a escrita foi sua tábua de salvação, o que manteve sua sanidade mental, esperança e fé de que sobreviveria. A exemplo da sua ilustre “xará”, Anne Frank, também redigiu um diário. Só que começou onde a primeira terminou. Ou seja, em um campo de extermínio.
O relato de Anne Frank tem como cenário o esconderijo em que estava, com a família, no afã de evitar a prisão e posterior deportação. Após inúmeras peripécias e golpes de sorte, porém, acabou presa e finalmente executada.
Ana Novac, todavia, fez seu relato das próprias prisões para as quais foi enviada. O incrível foi como conseguiu esconder seu diário dos meticulosos e cruéis guardas nazistas e preservá-lo até ganhar a liberdade. Afinal, cada dia, naquele inferno, ameaçava ser seu último de vida.
Ana Novac, contudo, não só conseguiu sobreviver, como logrou, também, preservar seu intenso, dramático e pungente relato. Seu diário foi publicado, em forma de livro, 21 anos após a libertação, em 1966, primeiro na Hungria, então “satélite” ideológico da extinta União Soviética. Posteriormente, foi lançado, em seqüência, na Alemanha Ocidental (1967), na França (1968) e, posteriormente, na Itália, Bélgica, Holanda e nos Estados Unidos.
Somente agora, no entanto, o livro ganhou versão espanhola e chegou às livrarias de Madri, praticamente coincidindo com sua morte. O despacho da Agência EFE, noticiando o lançamento, enfatiza: “Além de reflexões de uma menina sobre o que significa morrer e sobreviver, o texto tem um estilo direto, limpo, de grande carga emocional e indubitável valor literário”.
Só não entendo o título dado à versão espanhola: “Aquellos maravillosos dias de mi juventud (Destino)”. Como “maravilhosos”?!!! Afinal, Ana Novac estava no inferno, driblando, a cada minuto, a morte, num incrível (e bem-sucedido) exercício de sobrevivência que acabou, como se observa, em final feliz.
Ela escreveu, em determinado trecho do diário: “Por mais estúpido e feio que isso possa resultar, não me vejo sem ela (a vida) nem ela sem mim. Inclusive, se houvesse outra vida melhor, voltaria a esta”.
Os nazistas não puderam com ela, nem torturas, fome e sofrimentos. Seu valente coração, contudo, fraquejou. Findou por traí-la, quando nada e ninguém a ameaçavam. Ana Novac morreu, de ataque cardíaco, em Paris, “cidade que sempre sonhou em viver e onde se estabeleceu em 1968, após uma escala de três anos em Berlim, depois de escapar da Europa do Leste”, como informou a Agência EFE.

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