Visões do inferno
Pedro J. Bondaczuk
As ditaduras na América Latina, notadamente na nossa bela e tão sofrida América do Sul, constituíram-se em um dos períodos mais difíceis, sofridos, dramáticos e de triste memória da História contemporânea dos povos. Houve tempo, que não vai tão longe assim, em que somente Venezuela e Colômbia (que anos antes conseguiram se livrar de seus ditadores) tinham governos que emergiram das urnas. É verdade que suas democracias eram cheias de defeitos. Mas eram infinitamente melhores do que as ferozes ditaduras do restante do continente, de países como Argentina, Uruguai, Chile, Brasil, Paraguai etc.
Torturas, assassinatos políticos, “desaparecimentos” de pessoas (inclusive de crianças) tornaram-se práticas comuns no continente e não tardou para que virassem rotina. Todos sabiam, em qualquer parte do mundo, o que ocorria nesses países, mas ninguém movia uma só palha em seu socorro. Pelo contrário. As populações locais (salvo honrosas exceções) submetiam-se docilmente a esses regimes. Argumentavam que não queriam “se meter em política”.
A imprensa, censurada, publicava, apenas, o que os ditadores permitiam. Havia, contudo, jornalistas (que hoje posam de democratas fanáticos e de arautos do combate à corrupção) que, espontaneamente, faziam a apologia dessas ditaduras, classificando-as de “redentoras” e de “revoluções democráticas”. Em todas as épocas e lugares, sempre há covardes, oportunistas e bajuladores e nesse período, eles também não faltaram.
O mundo vivia, então, o auge do que se convencionou chamar de “Guerra Fria”. Os vários continentes, subitamente, foram transformados em autênticos tabuleiros de xadrez ideológicos, em que as superpotências travavam mortal partida, indiferentes à sorte de multidões. Valia tudo nesse confronto, de parte a parte. E a América do Sul foi transformada – à revelia dos seus povos – em ponta de lança dos Estados Unidos, em seu obsessivo empenho pela derrocada do comunismo.
Em todo o continente, portanto, o pretexto para essa insanidade, esse espezinhamento da liberdade e da democracia, era, invariavelmente, um único e mesmo: impedir que os comunistas – pintados como “ateus empedernidos” e “demônios sanguinários e cruéis” – chegassem ao poder. E isso até em países em que não tinham a mais remota chance de sucesso.
Os Estados Unidos buscavam impedir, a ferro e fogo, que surgissem novos Fidel Castros, principalmente após o fiasco em que se constituiu a tentativa de invasão na Baía dos Porcos, em Cuba. E os povos ao sul do equador submetiam-se (salvo exceções, reitero) docilmente aos ditames de Washington que, a pretexto de “defesa da liberdade e da democracia”, suprimia, impunemente, tanto uma, quanto a outra.
Em toda a América do Sul, a camada lúcida e esclarecida da sociedade, ou seja, escritores, professores, jornalistas, artistas, estudantes etc., foi a que mais sofreu. Intelectuais foram perseguidos, demitidos do serviço público, caçados como bandidos, presos, torturados, mortos sob tortura e sumamente humilhados, tendo seus direitos mais comezinhos desrespeitados e suprimidos.
Foram muitos e muitos os que morreram nas prisões, sempre abarrotadas de opositores desses regimes. Outros, permanecem, até hoje, profundamente traumatizados e marcados física, mental, psicológica e afetivamente. Mas, embora tivessem descido às profundezas do inferno – muito mais terrível do que o descrito pelo poeta Dante Aligheri em sua “Divina Comédia” – pelo menos lograram sobreviver.
Diversos escritores, a despeito de tamanho sofrimento e tantas privações, mesmo no cárcere, não pararam de produzir. As ditaduras suprimiram-lhes a liberdade, a dignidade, a reputação e o conforto, mas não conseguiram matar sua criatividade.
Um dos que permaneceram ativos, escrevendo regularmente, posto que na prisão, foi o romancista uruguaio Carlos Liscano. Ele ficou preso por treze longos, angustiantes e intermináveis anos, por sua militância no grupo guerrilheiro Tupamaros, que pegou em armas para enfrentar os militares uruguaios.
Embora também torturado, teve mais sorte que boa parte dos companheiros de infortúnio. Para fugir do tédio da rotina da prisão, Liscano fez o que mais sabia e gostava de fazer: escreveu. Produziu cerca de 500 páginas manuscritas, descrevendo o que via, ouvia, sentia, vivia e testemunhava.
Ao ser libertado, há 25 anos, o romancista – que atualmente dirige a Biblioteca Nacional do Uruguai – levou consigo aqueles textos, mas guardou-os a sete chaves, sem publicar nenhum. Aquelas páginas despertavam-lhe angústia e dor. Lembravam todo o sofrimento e horror pelos quais passou por treze anos. Não as destruiu, mas também sequer as releu.
Não todas, no entanto. Utilizou algumas daquelas anotações, as mais “suaves”, como embriões de romances como “El furgon de los locos” e “Ejercício de impunidad”. Agora, contudo, Liscano mudou de idéia. Decidiu publicar a totalidade daquelas 500 páginas que produziu na prisão. Foi convencido a agir dessa forma pela pesquisadora francesa, Fatiha Idmhand.
Entendo que a decisão foi correta, das mais acertadas e até se impunha. É uma forma, inclusive, de reverenciar a memória de tantos outros escritores, não somente uruguaios, mas argentinos, brasileiros, chilenos, paraguaios, bolivianos etc., que não resistiram às torturas e morreram nesses cárceres imundos, verdadeiras sucursais, se não matrizes do inferno.
Aguardo, pois, o livro, certamente doloroso e pungente, de Carlos Liscano, para lê-lo com atenção e comentá-lo objetivamente, com isenção. As ditaduras, que desgraçaram, atrasaram e empobreceram esta nossa América do Sul, não podem ser, simplesmente, ignoradas e, muito menos, esquecidas. Têm que ser trazidas, a todo o momento, à baila, não por uma questão de revanchismo, que não leva a lugar algum, mas para que jamais voltem a se repetir.
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