Tuesday, September 01, 2009

Mentiroso ou criativo?


Pedro J. Bondaczuk

O escritor austríaco, Robert Musil, escreveu, no livro “O homem sem qualidades”: “A criança é criativa porque é crescimento e se cria a si própria. É como um rei, porque impõe ao mundo as suas idéias, os seus sentimentos e as suas fantasias. Ignora o mundo do acaso, pré-laborado, e constrói o seu próprio mundo de ideais. Tem uma sexualidade própria. Os adultos cometem um pecado bárbaro ao destruir a criatividade da criança pelo roubo do seu mundo, sufocando-a com um saber artificial e morto e orientando-a no sentido de finalidades que lhe são estranhas”.
Este trecho cabe como uma luva para caracterizar o menino imaginativo que um dia fui e que ainda permanece vivo, posto que adormecido, dentro de mim. Tive uma infância, digamos, um tanto conturbada, em virtude de uma poliomielite que me acometeu quando tinha, apenas, seis anos de idade. Subitamente, da noite para o dia, me vi impedido de fazer tudo o que gostava: jogar bola, andar de bicicleta, empinar papagaio, correr atrás de balões etc.etc.etc.
De repente, meu mundo ameaçou ruir. Passei a viver uma rotina aflitiva, caracterizada por médicos, hospitais, fisioterapias, internatos etc. Mas a vida estava ali, como uma delicada e rara flor, para ser colhida e apreciada por mim. Como?
Fisicamente não dava! Não conseguia acompanhar as outras crianças em suas brincadeiras e isso me frustrava. A intuição infantil, contudo, sugeriu-me uma solução, uma alternativa, um caminho a seguir. Em vez da frustração, optei por me valer da imaginação. O que me impedia de criar um mundo só meu, em que poderia fazer o que e quando quisesse, como melhor me aprouvesse?! Nada! Foi o que fiz.
Como tanta criança sempre fez, faz e fará mundo afora, criei um séqüito de amigos imaginários que me eram sumamente fiéis. Brincavam comigo, quando ninguém mais queria brincar. Ouviam-me, compreendiam-me e justificavam-me. Não me abandonavam nem de dia e nem de noite, chovesse ou fizesse sol.
Cabe aqui um esclarecimento. Muitos confundem a imaginação infantil com “mentiras”. Tentam reprimir suas fantasias, sob a argumentação de que “é feio e, por isso, condenável mentir”. De fato é. O que falta a esses adultos é lembrar de como eles eram quando crianças. Ou seja, o que lhes passava pela cabeça naquela fase das suas vidas?
A mentira caracteriza-se pela intenção de esconder algo de ruim que fizemos de alguém e que negamos de pés juntos termos feito ou para, em geral deliberadamente, enganarmos outras pessoas, visando obter alguma vantagem por meio ilícito, qualquer que ela seja. Não tem, pois, muito a ver (diria nada) com a imaginação, sobretudo a infantil.
Na época, embora eu já soubesse ler (aprendi com o meu pai, quando tinha apenas cinco anos de idade, numa velha Bíblia, que nem sei onde foi parar), não havia lido, ainda, esse marcante livro de Jonathan Swift, “As viagens de Gulliver”.. Pois não é que recriei essa história, que nunca até então havia lido (fui lê-la, apenas, quando já tinha catorze anos) nos mínimos detalhes?! Como? Não sei.
Nessa ocasião, eu residia em São Caetano do Sul, cidade operária do ABC paulista. Morávamos, de forma improvisada, em uma pequena (mas confortável e aconchegante) casa de fundos, enquanto na frente, meu pai construía uma residência maior, o dobro daquela, com inúmeras interrupções na obra, de acordo com a disponibilidade de dinheiro (que era sempre curto). Levou cinco anos para concluí-la.
Observando as formigas, passatempo de que gostava demais, no qual despendia horas e mais horas, dias e mais dias, semanas e mais semanas, dei asas à imaginação. “Criei” um minimundo povoado por anões tão pequenos, que mediam, somente, um palmo de altura. E mais, “inventei” toda uma cidade, em que esses personagens viviam: trabalhavam, brincavam, amavam, brigavam, se reproduziam, mas, sobretudo, conversavam comigo e narravam-me fatos das suas vidas.
Devo dizer que nunca fui considerado mentiroso pelos meus pais. Aliás, não raro, eu era sincero até demais. Sempre que aparecia alguma coisa quebrada em casa, por exemplo, e que meus pais queriam culpar minha irmã por isso, de pronto assumia a culpa, mesmo que isso me valesse algumas palmadas (e valiam muitas) e horas e horas de castigo.
Subitamente, a fantasia dos “anões” liliputianos ganhou ares de “verdade” em minha mente. Primeiro, falei a respeito deles para um raro garotinho que se dispunha a brincar comigo quando ninguém mais queria fazer. Essa alma pura e sem malícia acreditou na minha história e espalhou-a entre a meninada das redondezas. Subitamente, me vi diante de platéias crescentes de garotos, ávidos por meus relatos sobre as peripécias dos tais “anões”. E minhas narrativas se sucediam, cada vez mais verossímeis, em meio a tanta inverossimilhança.
O caso, não sei como, caiu nos ouvidos do meu pai. Certa noite, ele chamou-me num canto e disse: “Pedrinho, você sabe que é feio mentir. Você anda contando mentiras para seus amigos?”. Respondi-lhe, convicto (pois na minha ótica, aquelas histórias eram muito reais): “Não!”. E não mentia, de fato. Limitava-me a dar asas à imaginação, com isso estimulando, também, a dos meus crescentes ouvintes.
Certa feita, um dos garotos mais incrédulos, desses precocemente amadurecidos, chamou-se de “mentiroso” na cara, sob apupos gerais. Irritado, desafiou-me: “Se é verdade, por que você não nos mostra essa sua cidade de anões?”. Boa pergunta. Como sair dela? Prometi consultar o líder deles para saber se permitiriam que outros, que não eu, os vissem. Fui salvo pelo gongo. No dia seguinte, fui levado por meu pai para um internato, em que passei longos quatro anos.
Passadas várias décadas, já adulto, fui considerado por muitos coleguinhas de então como um “grande mentiroso, um tremendo cara de pau, que mentia sem ficar vermelho”. A maioria, no entanto, passou a me considerar como um “competente e criativo contador de histórias”. E estes amigos queridos passaram, desde então, a me incentivar para que eu me tornasse um escritor. Deu no que deu!
Na minha ótica infantil, eu não mentia. Nunca menti. Afinal, assumi todas as culpas que me eram cabíveis, sem jamais buscar lançá-las às costas de quem quer que fosse. Meu pai, homem sensível, sábio e, sobretudo, bom, soube compreender isso e nunca tocou nesse assunto até sua morte.
Aquele mundo em miniatura e aquelas criaturas compreensivas e amigáveis de fato existiam. Aliás, existem até hoje, bem no fundo da minha memória, na criança que vive em mim. Os adultos é que não eram (e nem são) imaginativos o suficiente para enxergá-las e se relacionar com elas. Azar deles!

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