Pedro J. Bondaczuk
O preconceito, qualquer que seja seu alvo, fulcro, motivação e intensidade, é o mais letal dos venenos dos relacionamentos entre indivíduos, povos e nações. Escrevi a esse respeito inúmeras vezes e reiterarei o quanto for necessário meu repúdio a esse comportamento doentio e irracional. Quem é vítima desse absurdo conceito prévio que alguns fazem de seus semelhantes, sabe o quanto isso dói, revolta e frustra.
Se houve alguém que poderia falar com propriedade a respeito dos estragos emocionais que o preconceito causa na vida de quem é vítima dele, esse foi Charles Chaplin. É verdade que esse homem talentoso e sábio – a exemplo do imortal personagem que criou, o ao mesmo tempo sagaz e ingênuo Carlitos, que driblava, com agilidade, as autoridades que lhe queriam barrar o caminho em alguma das suas peripécias – driblou essas circunstâncias injustas e absurdas de que foi vítima. E isso só valoriza ainda mais seu sucesso, que hoje é consensual, 32 anos após a sua morte, ocorrida em 25 de dezembro de 1977.
Chaplin foi, por exemplo, vítima do preconceito social. Nascido nas camadas mais baixas da sociedade inglesa, elitista por excelência, em que o “berço” conta mais do que o caráter, as aptidões e as virtudes, foi encarado com irônico menosprezo pelos seus conterrâneos quase que durante sua vida toda.
Hoje, contudo, é visto como um dos heróis nacionais. Tanto que, em 1975, foi sagrado como “Sir”, ou seja, como nobre, pela Rainha Elizabeth II, em cerimônia das mais concorridas no Parlamento britânico e com ampla cobertura da imprensa internacional (e, sobretudo, nacional).
Outro preconceito que sofreu (este ainda mais incompreensível) foi o étnico. Alguns historiadores afirmaram que o nome Chaplin é uma corruptela do judeu “Kaplan”. Um deles foi Theodore Huff, que demonstrou, também, que a mãe de Charles, embora irlandesa, tinha ascendência judia. O ator, na verdade, divertia-se com isso e ora confirmava, ora negava (como que confirmando) essa suposta origem.
Durante a Segunda Guerra Mundial, com boa parte da Europa ocupada pelas tropas nazistas e com o pleno andamento do hediondo plano de Adolf Hitler de simplesmente eliminar “todos os judeus” da face da Terra com sua delirante “solução final”, Chaplin pareceu vacilar. Deu declarações que, seis anos depois, iria negar. Afirmou, categoricamente, em 1940, em uma entrevista à imprensa: “Eu não sou judeu!”. Contudo, no filme “O grande ditador”, em que satirizou o “füherer” alemão (apenas quatro dias mais velho do que ele), tenha interpretado o papel de um barbeiro justamente de ascendência judia.
Terminado o conflito, em 1946, Charles voltaria a se manifestar a respeito da sua suposta ascendência hebraica. Na oportunidade, desdisse o que havia dito seis anos antes. Declarou, e não apenas uma única vez, mas em várias entrevistas que concedeu: “Dizem que eu sou meio judeu e é verdade. Eu nunca neguei”.
Hoje, num mundo razoavelmente mais esclarecido (embora nem tanto), essa suposta origem étnica certamente não teria a menor importância. Mas naquele período, em que o ódio fervilhava e o preconceito disseminado pelos propagandistas nazistas era candente... Era algo perigoso. Charles poderia, por exemplo, até ser assassinado por algum fanático nazista (e nos Estados Unidos havia muitos simpatizantes dessa ideologia), somente por essa suposta origem.
A terceira forma de preconceito a que Chaplin também teve que driblar foi a ideológica. Em 1952, o criador do Carlitos foi virtualmente expulso dos Estados Unidos, por influência da então todapoderosa “Comissão de Atividades Anti-americanas”. Os processos políticos, naqueles tempos sombrios e tensos, sequer exigiam provas incontestáveis para punir quem quer que fosse. Podiam basear-se em meras suspeitas, ou em denúncias anônimas sem nenhuma comprovação. Ou mesmo em provas meramente circunstanciais e ambíguas ou em evidências improváveis e duvidosas.
O mundo estava em plena guerra fria. Dos dois lados do Atlântico, o fanatismo ideológico campeava e obcecava as pessoas, notadamente as ligadas aos respectivos governos, dos Estados Unidos e da União Soviética. Foi uma época que não condiz nem um pouco com as tradições e convicções norte-americanas, que apregoavam (e apregoam) que o país é o paraíso da liberdade e da tolerância, ou seja, a pátria da democracia.
Charles Chaplin soube que estava sendo investigado a bordo de um navio, quando regressava a Nova York, após turnê pelo exterior. Sua primeira reação, como seria de se esperar, foi de surpresa. Essa seria sucedida, tempos após, pela de mágoa e, finalmente, pela de raiva. Pudera! O ator decidiu que não se deixaria crucificar passivamente, como tantos outros fizeram, e que iria se defender com todos os recursos ao seu dispor. Estes, porém, para as circunstâncias, eram virtualmente inócuos.
O que estava acontecendo, então, nos Estados Unidos, ia contra tudo o que Charles acreditava. Na tentativa de esclarecer o mal-entendido, ele resolveu escrever diretamente ao então secretário de Justiça, James McGranery. E para que tudo andasse mais rápido, optou por enviar um telegrama à referida autoridade, esclarecendo sua posição. Foram estes os dizeres da sua mensagem: “Não sou comunista. Jamais em minha vida aderi a qualquer partido político. Sou o que o senhor chamaria de mercador da paz. Espero não tê-lo ofendido”.
McGranery, todavia, ignorou a mensagem. Não levou as palavras do ator em conta. Em vez disso, veio a público e declarou, em uma entrevista à imprensa: “Na minha opinião, ele (Chaplin) faz pronunciamentos que indicam sua atitude de desdém para com o país cuja hospitalidade o enriqueceu”.
Charles, ao regressar à Inglaterra, ainda mandou outra mensagem ao secretário de Justiça. Não se tratou (como seria lícito de se esperar naquelas circunstâncias) de nenhuma ofensa, pois isso não era do seu feitio. Escreveu, apenas: “Não penso que se deva dividir as pessoas de acordo com suas opiniões. Isso conduz ao fascismo. Creio na liberdade. Essa é a minha política”.
Alguns jornais (poucos, felizmente) atacaram o genial cineasta em suas páginas. O “Saturday Evening Post”, por exemplo, chegou, inclusive, a classificá-lo de “Pierrô Vermelho”. Não tardou, porém, para a verdade ser restabelecida. Seus acusadores jamais provaram a mais remota ligação de Charles com o comunismo. Mas não tiveram a grandeza de se retratar. Pagaram por isso. O jornal que o chamou de “Pierrô Vermelho”, não existe mais. E Chaplin...
O criador de Carlitos recebeu três prêmios Oscar ao longo de sua vitoriosa carreira. No entanto, apenas um deles, justamente o último, teve valor especial para Chaplin. Foi o de 1972, considerado como o da “reconciliação”. O prestigioso “The New York Times” afirmou, na ocasião da entrega da estartueta, em editorial: “Ainda bem que ele (Charles) veio. Se uma nação pudesse enrubescer coletivamente, e além disso amargar para sempre um sentimento de culpa, essa nação era a nossa”. E não era?!
O preconceito, qualquer que seja seu alvo, fulcro, motivação e intensidade, é o mais letal dos venenos dos relacionamentos entre indivíduos, povos e nações. Escrevi a esse respeito inúmeras vezes e reiterarei o quanto for necessário meu repúdio a esse comportamento doentio e irracional. Quem é vítima desse absurdo conceito prévio que alguns fazem de seus semelhantes, sabe o quanto isso dói, revolta e frustra.
Se houve alguém que poderia falar com propriedade a respeito dos estragos emocionais que o preconceito causa na vida de quem é vítima dele, esse foi Charles Chaplin. É verdade que esse homem talentoso e sábio – a exemplo do imortal personagem que criou, o ao mesmo tempo sagaz e ingênuo Carlitos, que driblava, com agilidade, as autoridades que lhe queriam barrar o caminho em alguma das suas peripécias – driblou essas circunstâncias injustas e absurdas de que foi vítima. E isso só valoriza ainda mais seu sucesso, que hoje é consensual, 32 anos após a sua morte, ocorrida em 25 de dezembro de 1977.
Chaplin foi, por exemplo, vítima do preconceito social. Nascido nas camadas mais baixas da sociedade inglesa, elitista por excelência, em que o “berço” conta mais do que o caráter, as aptidões e as virtudes, foi encarado com irônico menosprezo pelos seus conterrâneos quase que durante sua vida toda.
Hoje, contudo, é visto como um dos heróis nacionais. Tanto que, em 1975, foi sagrado como “Sir”, ou seja, como nobre, pela Rainha Elizabeth II, em cerimônia das mais concorridas no Parlamento britânico e com ampla cobertura da imprensa internacional (e, sobretudo, nacional).
Outro preconceito que sofreu (este ainda mais incompreensível) foi o étnico. Alguns historiadores afirmaram que o nome Chaplin é uma corruptela do judeu “Kaplan”. Um deles foi Theodore Huff, que demonstrou, também, que a mãe de Charles, embora irlandesa, tinha ascendência judia. O ator, na verdade, divertia-se com isso e ora confirmava, ora negava (como que confirmando) essa suposta origem.
Durante a Segunda Guerra Mundial, com boa parte da Europa ocupada pelas tropas nazistas e com o pleno andamento do hediondo plano de Adolf Hitler de simplesmente eliminar “todos os judeus” da face da Terra com sua delirante “solução final”, Chaplin pareceu vacilar. Deu declarações que, seis anos depois, iria negar. Afirmou, categoricamente, em 1940, em uma entrevista à imprensa: “Eu não sou judeu!”. Contudo, no filme “O grande ditador”, em que satirizou o “füherer” alemão (apenas quatro dias mais velho do que ele), tenha interpretado o papel de um barbeiro justamente de ascendência judia.
Terminado o conflito, em 1946, Charles voltaria a se manifestar a respeito da sua suposta ascendência hebraica. Na oportunidade, desdisse o que havia dito seis anos antes. Declarou, e não apenas uma única vez, mas em várias entrevistas que concedeu: “Dizem que eu sou meio judeu e é verdade. Eu nunca neguei”.
Hoje, num mundo razoavelmente mais esclarecido (embora nem tanto), essa suposta origem étnica certamente não teria a menor importância. Mas naquele período, em que o ódio fervilhava e o preconceito disseminado pelos propagandistas nazistas era candente... Era algo perigoso. Charles poderia, por exemplo, até ser assassinado por algum fanático nazista (e nos Estados Unidos havia muitos simpatizantes dessa ideologia), somente por essa suposta origem.
A terceira forma de preconceito a que Chaplin também teve que driblar foi a ideológica. Em 1952, o criador do Carlitos foi virtualmente expulso dos Estados Unidos, por influência da então todapoderosa “Comissão de Atividades Anti-americanas”. Os processos políticos, naqueles tempos sombrios e tensos, sequer exigiam provas incontestáveis para punir quem quer que fosse. Podiam basear-se em meras suspeitas, ou em denúncias anônimas sem nenhuma comprovação. Ou mesmo em provas meramente circunstanciais e ambíguas ou em evidências improváveis e duvidosas.
O mundo estava em plena guerra fria. Dos dois lados do Atlântico, o fanatismo ideológico campeava e obcecava as pessoas, notadamente as ligadas aos respectivos governos, dos Estados Unidos e da União Soviética. Foi uma época que não condiz nem um pouco com as tradições e convicções norte-americanas, que apregoavam (e apregoam) que o país é o paraíso da liberdade e da tolerância, ou seja, a pátria da democracia.
Charles Chaplin soube que estava sendo investigado a bordo de um navio, quando regressava a Nova York, após turnê pelo exterior. Sua primeira reação, como seria de se esperar, foi de surpresa. Essa seria sucedida, tempos após, pela de mágoa e, finalmente, pela de raiva. Pudera! O ator decidiu que não se deixaria crucificar passivamente, como tantos outros fizeram, e que iria se defender com todos os recursos ao seu dispor. Estes, porém, para as circunstâncias, eram virtualmente inócuos.
O que estava acontecendo, então, nos Estados Unidos, ia contra tudo o que Charles acreditava. Na tentativa de esclarecer o mal-entendido, ele resolveu escrever diretamente ao então secretário de Justiça, James McGranery. E para que tudo andasse mais rápido, optou por enviar um telegrama à referida autoridade, esclarecendo sua posição. Foram estes os dizeres da sua mensagem: “Não sou comunista. Jamais em minha vida aderi a qualquer partido político. Sou o que o senhor chamaria de mercador da paz. Espero não tê-lo ofendido”.
McGranery, todavia, ignorou a mensagem. Não levou as palavras do ator em conta. Em vez disso, veio a público e declarou, em uma entrevista à imprensa: “Na minha opinião, ele (Chaplin) faz pronunciamentos que indicam sua atitude de desdém para com o país cuja hospitalidade o enriqueceu”.
Charles, ao regressar à Inglaterra, ainda mandou outra mensagem ao secretário de Justiça. Não se tratou (como seria lícito de se esperar naquelas circunstâncias) de nenhuma ofensa, pois isso não era do seu feitio. Escreveu, apenas: “Não penso que se deva dividir as pessoas de acordo com suas opiniões. Isso conduz ao fascismo. Creio na liberdade. Essa é a minha política”.
Alguns jornais (poucos, felizmente) atacaram o genial cineasta em suas páginas. O “Saturday Evening Post”, por exemplo, chegou, inclusive, a classificá-lo de “Pierrô Vermelho”. Não tardou, porém, para a verdade ser restabelecida. Seus acusadores jamais provaram a mais remota ligação de Charles com o comunismo. Mas não tiveram a grandeza de se retratar. Pagaram por isso. O jornal que o chamou de “Pierrô Vermelho”, não existe mais. E Chaplin...
O criador de Carlitos recebeu três prêmios Oscar ao longo de sua vitoriosa carreira. No entanto, apenas um deles, justamente o último, teve valor especial para Chaplin. Foi o de 1972, considerado como o da “reconciliação”. O prestigioso “The New York Times” afirmou, na ocasião da entrega da estartueta, em editorial: “Ainda bem que ele (Charles) veio. Se uma nação pudesse enrubescer coletivamente, e além disso amargar para sempre um sentimento de culpa, essa nação era a nossa”. E não era?!
No comments:
Post a Comment