Monday, September 14, 2009

Lucidez e loucura


Pedro J. Bondaczuk

Os homens dotados de aguçado sentido crítico que, no entanto, saibam expressar suas críticas com bom-senso, lucidez e, sobretudo, diplomacia – para não ferir suscetibilidades, não despertar iras e, portanto, não ter que se preocupar com represálias – e cujas observações sejam construtivas e não se destinem a lhes granjear quaisquer espécies de vantagens, são raros.
São poucos os que criticam obras e atos com honestidade, no intuito exclusivo de colaborar com os criticados. E são mais raros, ainda, os que recebem críticas com elegância e humildade e não as levem para o terreno pessoal. O recurso de que, via de regra, os poucos críticos inteligentes e bem-intencionados lançam mão, para não darem eventual e indesejável toque de agressividade às suas palavras, é o do refinado humor. Quase sempre, apelam para a ironia. Mas não a escrachada e explícita, aquela que ofende mais do que o xingamento chulo e desabrido, porém a elegante e sutil.
Um dos grandes mestres desta arte da crítica, cujo livro “Elogio à loucura” é um primor de análise do comportamento (pessoal, coletivo, político, religioso e social), foi Erasmo Desidério, mais conhecido pela designação da cidade em que nasceu, “de Rotterdã” (Holanda), como uma espécie de sobrenome. É uma figura que me fascina pela inteligência, cultura e coragem. Pessoas, como ele, fazem muita falta nos dias atuais.
O leitor arguto certamente já percebeu que me refiro a Erasmo de Rotterdã, mestre da polêmica, sutileza e ironia. Veja como é pitoresca, por exemplo, essa sua avaliação sobre amizade – e que, no fundo, no fundo, é, acima de tudo, verdadeira:
“Fechar os olhos aos desregramentos dos amigos, iludir-se no tocante aos seus defeitos, imitá-los, amar neles os maiores vícios, admirá-los como se fossem virtudes, não é o que se chama beirar à loucura? Esse amante que beija apaixonadamente a pele manchada da mulher desejada, esse outro que cheira voluptuosamente o pólipo de sua querida, esse pais cujo filho zarolho lhe parece dotado de terníssimo olhar, não são dignos representantes da mais pura loucura? Sim, é claro que se trata de loucuras, das mais completas loucuras que formam e mantêm amizades”. E não são assim que as coisas acontecem?
Erasmo e, notadamente suas idéias, merecem não apenas uma crônica, mas todo um tratado, para demonstrar seu incomum senso de observação. Frise-se que esse genial observador do comportamento cultivou, com esse aguçado sentido crítico, amizades e inimizades imensas em suas andanças pela Europa. E viagens e aventuras não lhe faltaram, ora a trabalho, ora a passeio e ora, e não raro, fugindo de poderosos adversários aos quais criticou. Erasmo, por exemplo, lecionou nas principais universidades européias do seu tempo, o que não deixa de ser um feito notável.
Foi por duas vezes professor em Sorbonne. Deu aulas em Oxford, em 1499; no Colégio das Rainhas, em Cambridge, em 1509 (onde ensinou grego e Teologia) e em Louvain na França. Dos amigos ilustres que fez, destacam-se Thomas More, em cuja casa escreveu o “Elogio à loucura” e o lorde Mountjoy (William Blount), que se julgava seu discípulo e foi seu protetor. Já inimigos... Foram tantos, que não há, sequer, como destacar um em especial.
Erasmo tinha tudo para ser tratado de forma preconceituosa em seu tempo. E de fato foi. Sua vida era um “prato cheio” para críticos mesquinhos e maldosos, para amantes de mexericos e de intrigas. Por exemplo, a cidade em que nasceu não gozava, então, do prestígio que hoje ostenta, como centro cultural e artístico não apenas da Holanda, mas da Europa. Era vista como uma localidade atrasada, de mercadores, cúpidos, rudes e incultos (o que estava muito longe da verdade).
Seu próprio país de origem sequer existia como Estado independente. Suas terras (boa parte das quais “roubada” do mar), eram disputadas, a ferro e fogo, por senhores feudais, de várias partes da Europa, em intermináveis e sucessivas guerras, que impediam seu desenvolvimento. Tudo o que era construído num período, não tardava em ser destruído a seguir, em ferozes e selvagens batalhas.
Para complicar, Erasmo era filho ilegítimo de um padre, o que era razão mais do que suficiente para ser hostilizado por uma sociedade ainda presa a toda a sorte de tabus, preconceitos e falso moralismo. Como se vê, não tinha, pois, o perfil de alguém habilitado a criticar costumes de quem quer que fosse. Nada disso, porém, lhe importou.
Seu livro “Elogio à loucura” é um esbanjar de talento, criatividade e capacidade de observação. Em vez de criticar a insanidade social e comportamental do seu tempo, optou por “elogiá-la”, com picardia e inteligência. Ler Erasmo é um deleite para o espírito.
Hoje nós somos melhores do que nossos ancestrais do século XV, vítimas desse implacável mestre da ironia? Nem um pouco! Despendemos, por exemplo, nossos esforços ao limite da nossa capacidade, investimos nossos melhores talentos e habilidades, mas não em busca de valores eternos e transcendentais, mas em coisas triviais, sem nenhuma importância real, em detrimento da nossa paz e da nossa felicidade. Ou seja, agimos exatamente como os contemporâneos de Erasmo faziam.
Pior, matamo-nos por essas quinquilharias vãs. Juntar dinheiro tornou-se, para muitos, obsessão, sem que usufruam das vantagens que a riqueza proporciona, esquecidos que a morte é a única certeza que há e que a fortuna de nada valerá quando chegar a hora fatal.
São raros os que param, por mísero instante que seja, para pensar na estupidez dessa opção e, quando o fazem, dão de ombros e prosseguem nessa corrida insensata, que não é mais do que desperdício de vida. E quem não junta, por não ter condições, coloca esse ato de juntar como supremo ideal que pretende alcançar algum dia, como se isso fosse sua redenção.
Claro que não é! Não passa de insensatez! Pura, estúpida, explícita e reiterada insensatez. Ou seja, é a loucura que Erasmo tanto “elogiou”, com elegante ironia e rara lucidez. Imaginem o quanto teria a escrever (e provavelmente escreveria) caso vivesse em nosso tempo! Leiam o “Elogio à loucura”. Certamente irão gostar (claro, caso não vistam a “carapuça” e não se coloquem na condição de criticados).

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