Thursday, October 30, 2008

Verdadeira superioridade


Pedro J. Bondaczuk

O poeta e aventureiro italiano, Gabriele D’Annunzio, escreveu, em certa ocasião, algo que desde que li, não parei mais de meditar a respeito. Ressalto que, nem tudo o que ele fez e/ou escreveu é do meu agrado. Já escrevi, inclusive, a seu respeito, em texto anterior, publicado aqui mesmo, neste nobre espaço, apontando aspectos nada exemplares da sua vida e sua obra.
Porém, este trecho, para mim, é especialmente marcante, e concordo com cada uma das suas palavras, cuja veracidade tive a oportunidade de comprovar. A referida citação é a seguinte: “É preciso fazer a própria vida como se faz uma obra de arte. É preciso que a vida de um homem inteligente seja produzida por ele. A verdadeira superioridade não passa disso”. Não passa mesmo!
Conheci uma pessoa que agiu exatamente dessa forma: fez da vida uma sucessão de exemplos, perfeita e belíssima obra de arte. Não se tratou, aviso de antemão, de nenhum astro de rock, ator de novela ou cinema, jogador de futebol ou algo que o valha. Não foi político, médico, engenheiro, advogado, jornalista, cientista etc. etc. etc., nada disso.
Essa pessoa que conheci, e a que me refiro, foi simples mestre-de-obras. Aliás, meu relacionamento com ela foi mais, muito mais do que o de mero conhecimento. Esse ser humano especial é, antes de tudo, responsável por eu existir. E, muito mais ainda do que isso, me incutiu na mente – não mediante meras palavras, mas por ações, atitudes e exemplos –, a ferro e fogo, os princípios que sempre nortearam (e ainda norteiam, claro) os meus passos há já um par de décadas. É meu ídolo, meu herói, meu paradigma, meu referencial.
Refiro-me ao meu pai, a quem devo, há tempos, este comovido testemunho público (que se danem os que acharem este texto piegas!). E para que fique devidamente consignado, e todos os que lerem estas confidências saibam quem de fato foi, declino, com orgulho, seu nome: Ananii Bondaczuk.
Quem o conheceu pessoalmente (e foram muitos, já que se tratava de pessoa extremamente comunicativa, com um círculo de amigos que não tinha fim), sabe que, se algum exagero houver em minhas palavras, este é para menos. Ou seja, foi um homem muito mais exemplar do que eu conseguiria expressar.
Em sua aldeia natal, na Rússia – de onde saiu, aos 16 anos, em 1937, por decisão de seu pai, meu avô, que era muito religioso e lutava por liberdade para exercer sua crença – foi um estudante aplicado e curioso. Não é nenhum exagero dizer que era um aluno brilhante, sempre obtendo a nota máxima em todas as disciplinas. Amava os estudos!
Arrancado de suas raízes, veio parar em um país exótico, onde tudo era diferente do que até então conhecera: língua, costumes, clima etc. Não tardou, porém, em se adaptar. E adotou o Brasil como sua única e definitiva pátria nos 70 anos que aqui viveu. Dava gosto de vê-lo defendendo sua terra de adoção de críticas de outros imigrantes (e de próprios brasileiros), com vigor inusitado e com incontida paixão.
Na mocidade, perambulou pela Argentina, trabalhando na construção de estradas. Sonhava cursar engenharia, mas nunca conseguiu. As circunstâncias não permitiram que realizasse esse sonho. Casou jovem, aos 21 anos e, um ano depois, já era pai. Teve, contudo, a infelicidade de ver seu filho mais velho acometido de paralisia infantil. Não se abateu. Decidiu que, paralítico ou não, faria desse menino um vencedor. E fez.
Mudou-se para São Paulo, apenas com a roupa do corpo, mal sabendo falar português, e com dois filhos nos braços, um dos quais com esse problema de saúde citado. Dotado de férrea força de vontade, aprendeu a ler, sozinho, em uma velha Bíblia, nesse idioma que para um russo era dos mais exóticos, em que até o alfabeto era diferente do seu. De quebra, alfabetizou o filho, que entrou para a escola já sabendo ler e escrever correntemente.
Tinha facilidade para línguas. Aprendeu sete delas sozinho. Sua profissão inicial (não por muito tempo) era a de carpinteiro. Logo, foi guindado à função de mestre de obras e participou da construção de mais de uma centena de prédios em São Paulo, dos mais famosos e luxuosos, que sempre me exibia com orgulho, quando passeávamos pelo centro (velho e novo) da cidade.
Mas um dos feitos de que mais se orgulhava era o de haver participado dessa magnífica “saga” nacional em que se constituiu a construção de Brasília. Trabalhou, com gana, dedicação e amor ao trabalho, até os 65 anos, quando se aposentou por tempo de serviço, já com um patrimônio razoável e arrancado, todo ele, com o suor do próprio rosto, sem a ajuda de ninguém.
Mas não parou para descansar. Era um homem incansável, um guerreiro, no melhor sentido do termo. Pôs na cabeça que era chegado o momento de mexer com o que mais gostava de fazer: o trato da terra. Transformou um enorme terreno abandonado, coberto de mato, pertencente à minha irmã, situado na divisa de Itu com Sorocaba, num dos sítios mais valorizados, bem-cultivados e produtivos da região. E tudo isso sozinho, sem a ajuda de ninguém!
Ali, trabalhou, com o entusiasmo de um menino, até os 85 anos, feliz como um passarinho. Entre outras coisas, criou um apiário moderno e bem-cuidado, “coisa de cinema”. Gostava de abelhas e parecia “conversar” com elas. Não usava sequer proteção contra os enxames e nunca foi picado por um único desses temperamentais insetos, que tratava como “bichinhos de estimação”. E eram.
Não se submeteu às inúmeras circunstâncias adversas com que teve que se haver, mas amoldou-as aos seus propósitos e construiu uma obra de arte de inestimável valor: a própria vida. Conquistou a verdadeira grandeza! E, enquanto eu viver, jamais haverei de permitir que a sua saga pessoal venha a ser esquecida, mesmo sob o risco de ser mal-interpretado. Que me importa?!

Até um dia, querido amigão! Está insuportável esta saudade que você me deixou!!!

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