Friday, October 03, 2008

Discussão na eternidade


Pedro J. Bondaczuk

A idéia da eternidade fascina e mobiliza as grandes mentes desde os primórdios da civilização. Ela pressupõe, claro, a existência de um quê imaterial no homem, que seria, por sua vez, imortal, denominado de “alma”. Muitos, mundo afora, em todos os tempos, fizeram dessa possibilidade (ou impossibilidade como querem tantos), um dogma, ou seja, ponto de que não se pode duvidar (sob pena de se cometer uma heresia) e muito menos contestar. Fazem, portanto, do assunto mera questão de fé e não de razão.
Racionalmente, contudo, não se pode comprovar tanto essa suposta essência – que, para os que acreditam, seria a sede da inteligência, da sabedoria e das emoções –, quanto, claro, sua imortalidade. Trata-se de tema que envolve os mais diversos campos de estudo, notadamente os da Teologia e da Filosofia, inacessíveis para a maioria.
Da minha parte, prefiro não tomar partido, pois ainda não fiz um juízo pessoal a respeito. Custa-me crer na tal “imortalidade” da suposta alma. Como me é penoso, também, acreditar que tudo acaba com a morte. Essa é outra das tantas questões que geram debates sem fim e sobre as quais nunca se chega a nenhuma conclusão consensual.
Para ilustrar como essa crença na imortalidade da alma está arraigada nas mentes mais racionais e cartesianas, posso citar um episódio envolvendo o espanhol Miguel Servet (nascido em Villanueva de Sigena, em 29 de setembro de 1511). Perseguido tanto por católicos, quanto por protestantes, esta personalidade fascinante e ímpar foi mais uma das milhares e milhares de vítimas do obscurantismo, do fanatismo e da intolerância religiosos, que já causaram tantos males ao longo dos tempos, mundo afora.
Teólogo, médico, filósofo e humanista, homem de imensa e eclética cultura, interessado nos mais variados assuntos, como astronomia, meteorologia, geografia, jurisprudência, matemática e anatomia, Miguel Servet cometeu o erro de acreditar no diálogo e no debate franco e honesto de idéias como caminhos para se chegar à sabedoria e verdade. Pagou, portanto, um preço muito alto, intolerável, por viver num tempo de obscurantismo e ignorância e ter mentalidade avançada demais para sua época.
Entre outras tantas crenças em vigor na ocasião, nunca se convenceu da veracidade da doutrina da Trindade. Argumentou que essa idéia não encontrava respaldo em nenhum lugar da Bíblia, nem no Velho e nem no Novo Testamento. Servet poderia afirmar isso de cátedra, já que era público e notório seu vasto conhecimento dos textos bíblicos.
Para ele, esse dogma não passava de sofisma, implementado pelo Primeiro Concílio de Nicéia (325 DC). Ao contrário de tantas outras vítimas da chamada “Santa Inquisição”, porém, o sábio espanhol, que foi executado, como tantos (Giordano Bruno, por exemplo), na fogueira, não o foi pela Igreja Católica. Seus algozes foram os seguidores do líder protestante João Calvino, em Genebra, em 27 de outubro de 1553, aos 42 anos de idade.
Confesso que até ler o livro de Jorge Luiz Borges, “História da Eternidade”, nunca tinha sequer ouvido falar de Miguel Servet. Depois disso, arregacei as mangas e pesquisei exaustivamente sobre sua vida e suas idéias e fiquei fascinado com ambos.
Foi mais um homem lúcido e genial a ser destruído pelo vil fanatismo e estúpida intolerância. Não foi, claro, o primeiro e, certamente, não será o último (infelizmente). Servet, todavia, acreditava em eternidade, o que me leva a ponderar sobre a possibilidade dela ser um fato.
Como ressaltei, ainda não formei juízo a propósito. Talvez nunca forme, pois busco uma prova – uma única, isolada e solitária que seja para isso –, que instale, sem sombra de dúvidas, esse tipo de convicção em minha mente, excessivamente cartesiana..
Borges refere-se assim a esse sublime e corajoso rebelde: “Uma tradição oral que recolhi em Genebra durante os últimos anos da Primeira Guerra Mundial conta que Miguel Servet disse aos juizes que o haviam condenado à fogueira: ‘Arderei, mas isso não passa de um fato. Logo continuaremos a discutir na eternidade’”.
Isso é que era convicção! Mas não era fanatismo. Diferenciava-o deste o fato do sábio espanhol nunca tentar impor essa idéia a ninguém, muito menos com o recurso da coação, por métodos violentos e homicidas. Acreditava tanto na imortalidade da alma que se propôs a continuar a discussão teológica que o levou à fogueira “na” eternidade, mas não pretendia debater “sobre” ela, que considerava como ponto pacífico.

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