Monday, October 20, 2008

Possibilidade estética


Pedro J. Bondaczuk

A beleza, a sabedoria e a perenidade do espírito criativo humano estão ao nosso alcance, seja qual for a nossa condição atual, mas exigem de nós um ato volitivo positivo, um certo esforço, uma ação concreta, para que as alcancemos e usufruamos. Não caem do nada. Não são inatas. Não se impõem. Têm que ser buscadas, incansavelmente, para serem usufruídas em sua plenitude e nos qualifiquem e redimam. São meras possibilidades à espera de realização.
Estas palavras, de Jorge Luiz Borges, não somente ilustram melhor o que afirmei, como até explicam: “Pegar um livro e abri-lo contém a possibilidade do fato estético. Que são as palavras impressas em um livro? Que significam esses símbolos mortos? Nada, absolutamente. Que é um livro, se não o abrimos? É, simplesmente, um cubo de papel e couro, com folhas. Mas, se o lemos, acontece uma coisa rara: creio que ele muda a cada instante”.
O mesmo raciocínio vale para uma tela, de qualquer dos mestres das artes plásticas. Se não buscarmos nos informar a propósito das técnicas de pintura, não teremos condições de apreciar, com a devida inteireza, essa manifestação de talento. Enxergaremos, apenas, um quadro de dimensões variáveis, retratando pessoas, objetos e cenários (não raro, nem isso) que seriam captados com maior precisão e nitidez por um bom fotógrafo.
Em alguns casos, veremos, apenas, o que nos parecerá um conjunto de borrões, ou figuras distorcidas e desproporcionais, ou formas geométricas variadas, que não aceitaremos como sendo “arte”. Escaparão de nossos olhos e mentes as nuances dessas obras. Não saberemos apreciar, por exemplo, o senso de proporção, por não atentarmos a ele. Não perceberemos o jogo de luz e sombra. Escapará da nossa observação a perita combinação de cores etc.etc.etc.
O mesmo vale em relação a todas as outras artes. Afinal, a beleza é subjetiva. O que nos parece belo e perfeito pode não parecer assim a quem tenha padrões estéticos (no caso, gosto) diferentes dos nossos e vice-versa. Já escrevi, há algum tempo, a respeito, mas nada me impede de retornar ao tema que, para mim, tem e sempre terá relevância e pertinência.
Frise-se que a beleza não se manifesta, apenas, pelo visual. Não a detectamos “só” com os olhos. Outros sentidos (diria, todos) nos possibilitam contato íntimo com ela. O ouvido é um deles e, convenhamos, não o mais desprezível.
Ouçam, por exemplo, de olhos fechados, um bom poema, declamado por quem saiba lhe dar a devida ênfase. Ou se disponham a ouvir determinadas sinfonias, ou mesmo canções populares de reconhecida qualidade. A alma parece flutuar fora do corpo, nesses momentos de encantamento, e não raro logramos entrar até em estado de êxtase.
Quanto à possibilidade estética que existe (potencialmente) no conteúdo de um livro – a que foi destacada por Borges – o drama de quem gostaria de ler e não pode (porque não sabe) é muito maior do que de quem não quer se dedicar à leitura, pelo menos num determinado momento. Isso pode ocorrer ou porque a pessoa tem outras coisas a fazer, que julga mais importantes naquele instante, ou por não ter cultivado, como deveria, esse hábito e por isso não sente prazer de ler. Para o analfabeto, porém, esses mananciais de informação e conhecimento constituem-se num enorme mistério.
Ele tem intuição de que ali poderia encontrar um mundo de sabedoria e beleza. Mas não te a “chave” que lhe permita abrir essa porta encantada e acessar esse universo que lhe é interdito. É como se quisesse entrar num lugar particular, mas fosse impedido por causa de uma injusta proibição.
Para ele, o livro até pode ser um objeto estético (e em muitos casos, é), mas não pelo seu conteúdo. Conheço muitos analfabetos que têm bibliotecas até de razoável porte. Estas lhes servem, todavia, apenas como meros elementos de decoração. Possuem volumes de encadernações caprichadas, luxuosas e variadas, cujas cores e formatos das lombadas combinam com absoluto bom-gosto e arte. Mas só.
As estantes, geralmente de madeiras nobres e com designs modernos e arrojados, dão, sem dúvida, ares de sapiência e de sóbria austeridade aos ambientes nobres das suas casas. Contudo, essas pessoas estão privadas do essencial. Para elas, não adianta abrir nenhum desses livros, pois o interior de todos eles lhes parecerá absolutamente igual. Estão privadas, portanto, de concretizar a possibilidade estética que, como Borges enfatizou, “muda a cada instante”.

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