Privacidade ou promiscuidade?
Pedro J. Bondaczuk
A morte do escritor norte-americano J. D. Salinger – ocorrida em 27 de janeiro de 2010 (26 dias após completar 91 anos de idade, a maior parte dos quais vividos em rigoroso e absoluto isolamento em uma propriedade rural do Estado de New Hampshire) – suscita, na opinião pública, série interminável de indagações, a respeito não somente do seu livro “O apanhador em campo de centeio” (campeoníssimo de vendas), como também, e principalmente, acerca dele, seu excêntrico autor. O que teria motivado, de verdade, o seu afastamento dos holofotes da imprensa, e ainda por cima, no auge do sucesso, quando a maioria procuraria gozar ao máximo a fama, que é efêmera e passageira?
As especulações são inúmeras. Algumas, fazem sentido, outras são tão estapafúrdias (ou mais) como esse comportamento, inexplicável para a maioria. Há quem diga, por exemplo, que o isolamento dele se tratou de um golpe de mestre, em termos de marketing. Que Salinger tinha consciência que, enquanto persistisse o mistério em torno da sua figura, permaneceria na crista da onda. Expondo-se, logo as pessoas se enjoariam dele e procurariam outro para endeusar e assediar. Não acredito nessa hipótese, mesmo sendo possível.
Para nós, escritores (e não importa nossa projeção ou obscuridade), temos no leitor a figura central da nossa atividade. O argentino Ricardo Piglia chegou a escrever um livro inteiro (excelente e instigante, por sinal) explicando a razão da nossa necessidade radical desse personagem anônimo e sem rosto, que determina nosso sucesso ou fracasso no mundo editorial.
Ninguém escreve, salvo uma ou outra raríssima exceção, para o próprio deleite. Via de regra escrevemos para que outros leiam nossas idéias, pensamentos, sentimentos, descrições, criações e informações. Isso é tido, consensualmente, como “normal”.
Salinger, porém, ao que se deduz de uma suas raras declarações à imprensa, não agia dessa forma. Declarou, certa feita (há algumas décadas), por telefone, a repórteres: “Tenho paixão pela escrita. Nada me agrada mais do que escrever. Escrevo, todavia, para o meu deleite, não para outros lerem. A leitura, por parte de terceiros, é, para mim, intolerável invasão da minha privacidade!”. “Mas como?!”, perguntará, aturdido, o leitor dessas considerações. “Mas como?!”, pergunto, igualmente atônito, aos meus botões.
Salinger estaria sendo sincero? Como saber? Impossível! Só podemos especular a respeito. Outra indagação que fica é se deixou textos inéditos, quantos, a respeito do que etc. Afinal, para um sujeito que confessou ter obsessão pela escrita, seria improvável que tenha passado os últimos quarenta anos de vida, rigorosamente afastado do mundo, sem escrever uma única e reles linha. Deve ter escrito, e muito. Mas escreveu? Quanto? O que? O que foi feito desses textos, caso os tenha escrito?
Se existirem, certamente virão a público (valem uma fortuna!) e haverão de saciar a curiosidade, não raro até mórbida, das multidões. É verdade que um sujeito excêntrico, como ele, pode ter destruído tudo o que escreveu. Não seria, sequer, caso único na literatura. O russo Nikolai Gogol, por exemplo, escreveu uma infinidade de contos, que teve o capricho de queimar posteriormente, um a um. Por que? Só ele sabia.
Fica a questão para ser respondida pelos escritores que me dão a honra da sua leitura: o que você prefere, a privacidade ou a promiscuidade com os leitores? Ou seja, sua opção é a de escrever para o próprio deleite ou você produz textos para o mundo, mais especificamente, para essa figura anônima e sem rosto, não importando quem seja, se sábio ou néscio, se sadio ou lunático, se gênio ou burro? Afinal, após publicados, você jamais saberá em que mãos foram parar os seus escritos.
Os críticos, que escreveram textos e mais textos sobre Salinger nos últimos dias, lembraram um fato que à primeira vista nada tem a ver com a decisão do escritor para tentar colocar toda a distância possível dos leitores. Revelaram que tanto o sujeito que tentou assassinar o ex-presidente Ronald Reagan em 30 de março de 1981, ou seja, John Hincley Jr.; quanto o assassino do beatle John Lennon, a quem abateu à saída do edifício Dakota, em Nova York, em 8 de dezembro de 1980, Mark David Chapman, portavam consigo o livro “O apanhador em campo de centeio”.
A novela de Salinger teria influenciado a ambos (ou algum deles) a cometer os desatinos que cometeram? Vai saber! Pode ser que sim, pode ser que não. É tarefa para titãs tentarem entender a mente de um psicopata. Que ao menos teoricamente essa promiscuidade com os leitores pode trazer esse tipo de risco, isso pode mesmo.
Como saber de que forma as idéias que expus serão devidamente entendidas, no contexto adequado que pretendi que fossem entendidas? Não se pode saber. Afinal, reitero, nunca saberemos em quantas e em quais mãos nossos livros cairão e em que ocasiões.
Hinckley teria tentado matar Reagan, em frente ao Washington Hilton Hotel supostamente motivado por doentia paixão por Jody Foster, por quem se apaixonara perdidamente após vê-la atuando no filme “Táxi Driver”, em 1970. Na película, a então atriz-mirim interpretou o papel de uma prostituta de 12 anos. Seu parceiro, para conquistá-la, tenta assassinar um senador, candidato à Presidência dos Estados Unidos.
O livro de Salinger teve alguma coisa a ver com isso? Vá saber! Reitero, é impossível decifrar o que se passa na mente de um psicopata. Mais maluca ainda foi a motivação de Mark Davi Chapman para assassinar John Lennon. Afinal, confessou, na época (e sustenta até hoje essa versão), que adorava de tal forma o controvertido beatle, que o tinha como um deus. E por que o matou? Ele respondeu: “Porque pensei que ele fosse de mentira”. E complementou, em tom que me soa como de triunfo: “Eu era ninguém até que matei o maior alguém da Terra”. É aterrorizante!
Cá pra nós, amigo escritor, não o assusta a idéia de um livro seu cair em mãos de um imbecil como este? A mim, me apavora. Vá que descubra nas entrelinhas o que nunca escrevi e nem em sonhos cogitei escrever e saia por aí cometendo atrocidades como as cometidas por Hinckley e por Chapman, em meu nome! Vá que nutra, por mim, adoração como a nutrida por John Lennon e queira testar se sou de verdade ou de mentira! Deus que me livre!
Pedro J. Bondaczuk
A morte do escritor norte-americano J. D. Salinger – ocorrida em 27 de janeiro de 2010 (26 dias após completar 91 anos de idade, a maior parte dos quais vividos em rigoroso e absoluto isolamento em uma propriedade rural do Estado de New Hampshire) – suscita, na opinião pública, série interminável de indagações, a respeito não somente do seu livro “O apanhador em campo de centeio” (campeoníssimo de vendas), como também, e principalmente, acerca dele, seu excêntrico autor. O que teria motivado, de verdade, o seu afastamento dos holofotes da imprensa, e ainda por cima, no auge do sucesso, quando a maioria procuraria gozar ao máximo a fama, que é efêmera e passageira?
As especulações são inúmeras. Algumas, fazem sentido, outras são tão estapafúrdias (ou mais) como esse comportamento, inexplicável para a maioria. Há quem diga, por exemplo, que o isolamento dele se tratou de um golpe de mestre, em termos de marketing. Que Salinger tinha consciência que, enquanto persistisse o mistério em torno da sua figura, permaneceria na crista da onda. Expondo-se, logo as pessoas se enjoariam dele e procurariam outro para endeusar e assediar. Não acredito nessa hipótese, mesmo sendo possível.
Para nós, escritores (e não importa nossa projeção ou obscuridade), temos no leitor a figura central da nossa atividade. O argentino Ricardo Piglia chegou a escrever um livro inteiro (excelente e instigante, por sinal) explicando a razão da nossa necessidade radical desse personagem anônimo e sem rosto, que determina nosso sucesso ou fracasso no mundo editorial.
Ninguém escreve, salvo uma ou outra raríssima exceção, para o próprio deleite. Via de regra escrevemos para que outros leiam nossas idéias, pensamentos, sentimentos, descrições, criações e informações. Isso é tido, consensualmente, como “normal”.
Salinger, porém, ao que se deduz de uma suas raras declarações à imprensa, não agia dessa forma. Declarou, certa feita (há algumas décadas), por telefone, a repórteres: “Tenho paixão pela escrita. Nada me agrada mais do que escrever. Escrevo, todavia, para o meu deleite, não para outros lerem. A leitura, por parte de terceiros, é, para mim, intolerável invasão da minha privacidade!”. “Mas como?!”, perguntará, aturdido, o leitor dessas considerações. “Mas como?!”, pergunto, igualmente atônito, aos meus botões.
Salinger estaria sendo sincero? Como saber? Impossível! Só podemos especular a respeito. Outra indagação que fica é se deixou textos inéditos, quantos, a respeito do que etc. Afinal, para um sujeito que confessou ter obsessão pela escrita, seria improvável que tenha passado os últimos quarenta anos de vida, rigorosamente afastado do mundo, sem escrever uma única e reles linha. Deve ter escrito, e muito. Mas escreveu? Quanto? O que? O que foi feito desses textos, caso os tenha escrito?
Se existirem, certamente virão a público (valem uma fortuna!) e haverão de saciar a curiosidade, não raro até mórbida, das multidões. É verdade que um sujeito excêntrico, como ele, pode ter destruído tudo o que escreveu. Não seria, sequer, caso único na literatura. O russo Nikolai Gogol, por exemplo, escreveu uma infinidade de contos, que teve o capricho de queimar posteriormente, um a um. Por que? Só ele sabia.
Fica a questão para ser respondida pelos escritores que me dão a honra da sua leitura: o que você prefere, a privacidade ou a promiscuidade com os leitores? Ou seja, sua opção é a de escrever para o próprio deleite ou você produz textos para o mundo, mais especificamente, para essa figura anônima e sem rosto, não importando quem seja, se sábio ou néscio, se sadio ou lunático, se gênio ou burro? Afinal, após publicados, você jamais saberá em que mãos foram parar os seus escritos.
Os críticos, que escreveram textos e mais textos sobre Salinger nos últimos dias, lembraram um fato que à primeira vista nada tem a ver com a decisão do escritor para tentar colocar toda a distância possível dos leitores. Revelaram que tanto o sujeito que tentou assassinar o ex-presidente Ronald Reagan em 30 de março de 1981, ou seja, John Hincley Jr.; quanto o assassino do beatle John Lennon, a quem abateu à saída do edifício Dakota, em Nova York, em 8 de dezembro de 1980, Mark David Chapman, portavam consigo o livro “O apanhador em campo de centeio”.
A novela de Salinger teria influenciado a ambos (ou algum deles) a cometer os desatinos que cometeram? Vai saber! Pode ser que sim, pode ser que não. É tarefa para titãs tentarem entender a mente de um psicopata. Que ao menos teoricamente essa promiscuidade com os leitores pode trazer esse tipo de risco, isso pode mesmo.
Como saber de que forma as idéias que expus serão devidamente entendidas, no contexto adequado que pretendi que fossem entendidas? Não se pode saber. Afinal, reitero, nunca saberemos em quantas e em quais mãos nossos livros cairão e em que ocasiões.
Hinckley teria tentado matar Reagan, em frente ao Washington Hilton Hotel supostamente motivado por doentia paixão por Jody Foster, por quem se apaixonara perdidamente após vê-la atuando no filme “Táxi Driver”, em 1970. Na película, a então atriz-mirim interpretou o papel de uma prostituta de 12 anos. Seu parceiro, para conquistá-la, tenta assassinar um senador, candidato à Presidência dos Estados Unidos.
O livro de Salinger teve alguma coisa a ver com isso? Vá saber! Reitero, é impossível decifrar o que se passa na mente de um psicopata. Mais maluca ainda foi a motivação de Mark Davi Chapman para assassinar John Lennon. Afinal, confessou, na época (e sustenta até hoje essa versão), que adorava de tal forma o controvertido beatle, que o tinha como um deus. E por que o matou? Ele respondeu: “Porque pensei que ele fosse de mentira”. E complementou, em tom que me soa como de triunfo: “Eu era ninguém até que matei o maior alguém da Terra”. É aterrorizante!
Cá pra nós, amigo escritor, não o assusta a idéia de um livro seu cair em mãos de um imbecil como este? A mim, me apavora. Vá que descubra nas entrelinhas o que nunca escrevi e nem em sonhos cogitei escrever e saia por aí cometendo atrocidades como as cometidas por Hinckley e por Chapman, em meu nome! Vá que nutra, por mim, adoração como a nutrida por John Lennon e queira testar se sou de verdade ou de mentira! Deus que me livre!
No comments:
Post a Comment