Ainda Steinbeck
Pedro J. Bondaczuk
.
Iniciei o texto de recente crônica com a seguinte afirmação: “Há livros que, mesmo sendo de ficção, causam muito mais impacto do que milhares de reportagens sobre determinado tema, principalmente se escritos com alma e verdade e por escritores que realmente conheçam o ofício”. Como exemplo, citei os romances “Les miserables” e “Notre Dame de Paris”, de Victor Hugo, mas me detive, sobretudo, em “As vinhas da ira”, de John Steinbeck.
No que esta obra se distingue das demais, de outros escritores, ou mesmo deste? Na verossimilhança com a realidade da história narrada. Na convicção com que o autor trata de assunto tão delicado (tanto que os originais manuscritos não têm quase rasuras, acréscimos e cortes, o que demonstra que a história foi escrita como que num único “sopro”). Na linguagem sóbria e equilibrada de Steinbeck. Eu poderia enumerar ainda uma dezena de virtudes, mas não o farei. Deixo isso por sua conta, na leitura desse memorável romance.
“As vinhas da ira” foi escrito em 1939, quando os Estados Unidos começavam a se recuperar, posto que lentamente, da Grande Depressão, que sucedeu ao “crash” na Bolsa de Valores de Nova York, em 1929. Foi um período duríssimo, caracterizado pelo desemprego em massa e por suas perversas seqüelas.
O livro denuncia a exploração (a que ainda são submetidos trabalhadores itinerantes e sazonais, os bóias-frias dos norte-americanos), através da história da família Joad. Premida pela necessidade, após a perda de suas terras em Oklahoma para os grandes banqueiros, por não poder honrar o pagamento da hipoteca em decorrência de uma safra desastrosa, despejada sumariamente de sua casa e sem ter para onde ir, ela migra para a Califórnia.
Esse Estado, que no século XIX havia presenciado a “corrida do ouro”, era, então, tido e havido como a terra da promissão, dos sonhos dos deserdados da fortuna, uma espécie de Jardim do Éden. E agora não mais por causa do precioso metal, mas dos seus pomares verdejantes e seu clima ameno. Era para ali que uma imensa multidão de norte-americanos empobrecidos seguia, em busca de vida melhor.
Esse tipo de migração em massa realmente ocorreu ao longo da década de 30 do século XX. Como os descendentes de mexicanos, que hoje representam a mão de obra barata explorada pelos grandes fazendeiros produtores californianos de frutas, em sua ânsia de lucros a qualquer custo, e são chamados, pejorativamente de “chicanos”, na ocasião eram, sobretudo, os pequenos agricultores de Oklahoma que constituíam essa massa de manobra e eram tratados (igualmente com deboche e desprezo) de “oakies”.
Mas os migrantes só perceberam a “roubada” em que se meteram quando chegaram à Califórnia. Poucos conseguiam emprego e quem tinha essa “sorte”, era tratado em regime de semi-escravidão. Seus acampamentos, miseráveis e insalubres, eram como campos de concentração. Eram norte-americanos explorando, impunemente, outros norte-americanos (ao contrário do que se faz hoje em relação aos latinos).
Steinbeck despertou, de fato, com seu romance, a consciência nacional para essa tragédia humana. Mas pagou preço duríssimo, diria proibitivo, por sua ousadia. A maneira como concluiu “As vinhas da ira” exemplifica toda sua magistralidade, ou melhor, genialidade. Poucos escritores teriam a coragem de terminar um livro dessa forma. E os que se arriscassem, dificilmente deixariam de resvalar para a pieguice.
Nos parágrafos finais do romance, Steinbeck narra que a família Joad – esfacelada e desfalcada pela morte dos avós, pela fuga de Tom, que para defender um trabalhador, agrediu um guarda que o espancava e se tornou foragido da justiça, e pela morte do bebê, que Rosa de Sharon deu à luz – abrigava-se, precariamente, da enchente que atingia a região e afetava, sobretudo, os acampados, em um barracão abandonado.
Os refugiados “oakies” não tinham para onde ir e sequer o que comer. Muitos morriam de fome, outros estavam doentes e alguns agonizavam Num canto, um deles estava morrendo de inanição.
Rosa de Sharon havia acabado de ter o bebê, que morrera a seguir. Estava com os peitos repletos de leite. E não teve dúvidas. Em cumplicidade com a mãe, teve um gesto de suprema abnegação e solidariedade. Deu os seios para o moribundo mamar e dessa forma conseguir sobreviver. Steinbeck descreve assim a dramática e solene cena, com que encerrou o romance:
“-Sciu! – fez Mãe. Lançou olhares a Pai e tio John, que estavam contemplando o doente. Olhou Rosa de Sharon, envolta no cobertor. Seus olhares fugiram dos de Rosa de Sharon e tornaram a encontrá-los. E as duas mulheres liam tudo nas respectivas almas. A moça ofegava, respirava com um ritmo curto e apressado.
Ela disse:
- Sim.
Mãe sorriu:
- Eu sabia. Eu sabias que tu me compreendeu. – Olhou as mãos enlaçadas com firmeza sobre o colo.
Rosa de Sharon disse baixinho:
- Saiam vocês todos... por favor. – A chuva fustigava fracamente o teto.
Mãe inclinou-se sobre a filha e com a palma da mão afastou as mechas revoltas que lhe caíam sobre a testa e lhe deu um beijo na testa.
- Bom, andem depressa, vão saindo – disse Mãe, pondo-se de pé. – Fiquem aí fora um pouquinho.
Ruthie abriu a boca para dizer qualquer coisa.
- Sciu! – fez Mãe. – Fica quieta e vá saindo, - Empurrou-a porta afora, e o mesmo fez com os outros. Por fim, pegando o menino pela mão, também saiu, fechando a porta guinchante atrás de si.
Por um minuto, Rosa de Sharon permaneceu imóvel no centro do galpão, em cujo teto cochichava a chuva. Depois ergueu-se pesadamente, enrolando-se mais no cobertor. Lentamente, dirigiu-se ao canto escuro e quedou-se a olhar o rosto sofredor do desconhecido, lendo-lhe nos olhos arregalados e cheios de temor. Então, com vagar, dobrou os joelhos e deitou-se ao lado dele. O homem esboçou um movimento negativo com a cabeça, um movimento fraco e muito lento. Rosa de Sharon desfez-se do cobertor, deixando os seios desnudos.
- Tem que ser – falou, aproximando-se mais dele, e puxando-lhe a cabeça a si. – Assim – disse. Apoiou-lhe a cabeça com a direita e seus dedos lhe sulcaram suavemente os cabelos. Ergueu os olhos e seu olhar percorreu o galpão escuro e seus lábios cerraram-se e ela sorriu misteriosamente”.
Ufa! É de tirar o fôlego! O que dizer, depois de ler uma descrição como essa? É coisa de gênio! Só mesmo um escritor genial, como John Steinbeck (que se confessava admirador do russo Fedor Dostoievski) consegue dar absoluta verossimilhança a uma cena e, principalmente, a uma atitude tão inverossímil e improvável como esta! Qualquer comentário a mais seria supérfluo e redundante.
Pedro J. Bondaczuk
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Iniciei o texto de recente crônica com a seguinte afirmação: “Há livros que, mesmo sendo de ficção, causam muito mais impacto do que milhares de reportagens sobre determinado tema, principalmente se escritos com alma e verdade e por escritores que realmente conheçam o ofício”. Como exemplo, citei os romances “Les miserables” e “Notre Dame de Paris”, de Victor Hugo, mas me detive, sobretudo, em “As vinhas da ira”, de John Steinbeck.
No que esta obra se distingue das demais, de outros escritores, ou mesmo deste? Na verossimilhança com a realidade da história narrada. Na convicção com que o autor trata de assunto tão delicado (tanto que os originais manuscritos não têm quase rasuras, acréscimos e cortes, o que demonstra que a história foi escrita como que num único “sopro”). Na linguagem sóbria e equilibrada de Steinbeck. Eu poderia enumerar ainda uma dezena de virtudes, mas não o farei. Deixo isso por sua conta, na leitura desse memorável romance.
“As vinhas da ira” foi escrito em 1939, quando os Estados Unidos começavam a se recuperar, posto que lentamente, da Grande Depressão, que sucedeu ao “crash” na Bolsa de Valores de Nova York, em 1929. Foi um período duríssimo, caracterizado pelo desemprego em massa e por suas perversas seqüelas.
O livro denuncia a exploração (a que ainda são submetidos trabalhadores itinerantes e sazonais, os bóias-frias dos norte-americanos), através da história da família Joad. Premida pela necessidade, após a perda de suas terras em Oklahoma para os grandes banqueiros, por não poder honrar o pagamento da hipoteca em decorrência de uma safra desastrosa, despejada sumariamente de sua casa e sem ter para onde ir, ela migra para a Califórnia.
Esse Estado, que no século XIX havia presenciado a “corrida do ouro”, era, então, tido e havido como a terra da promissão, dos sonhos dos deserdados da fortuna, uma espécie de Jardim do Éden. E agora não mais por causa do precioso metal, mas dos seus pomares verdejantes e seu clima ameno. Era para ali que uma imensa multidão de norte-americanos empobrecidos seguia, em busca de vida melhor.
Esse tipo de migração em massa realmente ocorreu ao longo da década de 30 do século XX. Como os descendentes de mexicanos, que hoje representam a mão de obra barata explorada pelos grandes fazendeiros produtores californianos de frutas, em sua ânsia de lucros a qualquer custo, e são chamados, pejorativamente de “chicanos”, na ocasião eram, sobretudo, os pequenos agricultores de Oklahoma que constituíam essa massa de manobra e eram tratados (igualmente com deboche e desprezo) de “oakies”.
Mas os migrantes só perceberam a “roubada” em que se meteram quando chegaram à Califórnia. Poucos conseguiam emprego e quem tinha essa “sorte”, era tratado em regime de semi-escravidão. Seus acampamentos, miseráveis e insalubres, eram como campos de concentração. Eram norte-americanos explorando, impunemente, outros norte-americanos (ao contrário do que se faz hoje em relação aos latinos).
Steinbeck despertou, de fato, com seu romance, a consciência nacional para essa tragédia humana. Mas pagou preço duríssimo, diria proibitivo, por sua ousadia. A maneira como concluiu “As vinhas da ira” exemplifica toda sua magistralidade, ou melhor, genialidade. Poucos escritores teriam a coragem de terminar um livro dessa forma. E os que se arriscassem, dificilmente deixariam de resvalar para a pieguice.
Nos parágrafos finais do romance, Steinbeck narra que a família Joad – esfacelada e desfalcada pela morte dos avós, pela fuga de Tom, que para defender um trabalhador, agrediu um guarda que o espancava e se tornou foragido da justiça, e pela morte do bebê, que Rosa de Sharon deu à luz – abrigava-se, precariamente, da enchente que atingia a região e afetava, sobretudo, os acampados, em um barracão abandonado.
Os refugiados “oakies” não tinham para onde ir e sequer o que comer. Muitos morriam de fome, outros estavam doentes e alguns agonizavam Num canto, um deles estava morrendo de inanição.
Rosa de Sharon havia acabado de ter o bebê, que morrera a seguir. Estava com os peitos repletos de leite. E não teve dúvidas. Em cumplicidade com a mãe, teve um gesto de suprema abnegação e solidariedade. Deu os seios para o moribundo mamar e dessa forma conseguir sobreviver. Steinbeck descreve assim a dramática e solene cena, com que encerrou o romance:
“-Sciu! – fez Mãe. Lançou olhares a Pai e tio John, que estavam contemplando o doente. Olhou Rosa de Sharon, envolta no cobertor. Seus olhares fugiram dos de Rosa de Sharon e tornaram a encontrá-los. E as duas mulheres liam tudo nas respectivas almas. A moça ofegava, respirava com um ritmo curto e apressado.
Ela disse:
- Sim.
Mãe sorriu:
- Eu sabia. Eu sabias que tu me compreendeu. – Olhou as mãos enlaçadas com firmeza sobre o colo.
Rosa de Sharon disse baixinho:
- Saiam vocês todos... por favor. – A chuva fustigava fracamente o teto.
Mãe inclinou-se sobre a filha e com a palma da mão afastou as mechas revoltas que lhe caíam sobre a testa e lhe deu um beijo na testa.
- Bom, andem depressa, vão saindo – disse Mãe, pondo-se de pé. – Fiquem aí fora um pouquinho.
Ruthie abriu a boca para dizer qualquer coisa.
- Sciu! – fez Mãe. – Fica quieta e vá saindo, - Empurrou-a porta afora, e o mesmo fez com os outros. Por fim, pegando o menino pela mão, também saiu, fechando a porta guinchante atrás de si.
Por um minuto, Rosa de Sharon permaneceu imóvel no centro do galpão, em cujo teto cochichava a chuva. Depois ergueu-se pesadamente, enrolando-se mais no cobertor. Lentamente, dirigiu-se ao canto escuro e quedou-se a olhar o rosto sofredor do desconhecido, lendo-lhe nos olhos arregalados e cheios de temor. Então, com vagar, dobrou os joelhos e deitou-se ao lado dele. O homem esboçou um movimento negativo com a cabeça, um movimento fraco e muito lento. Rosa de Sharon desfez-se do cobertor, deixando os seios desnudos.
- Tem que ser – falou, aproximando-se mais dele, e puxando-lhe a cabeça a si. – Assim – disse. Apoiou-lhe a cabeça com a direita e seus dedos lhe sulcaram suavemente os cabelos. Ergueu os olhos e seu olhar percorreu o galpão escuro e seus lábios cerraram-se e ela sorriu misteriosamente”.
Ufa! É de tirar o fôlego! O que dizer, depois de ler uma descrição como essa? É coisa de gênio! Só mesmo um escritor genial, como John Steinbeck (que se confessava admirador do russo Fedor Dostoievski) consegue dar absoluta verossimilhança a uma cena e, principalmente, a uma atitude tão inverossímil e improvável como esta! Qualquer comentário a mais seria supérfluo e redundante.
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