Geração fracassada
Pedro J. Bondaczuk
O presidente da Tanzânia, Julius Nyerere, 24 anos após ter conduzido o seu país à independência, em 1961, vai entregar, hoje, a presidência que ocupou por quase um quarto de século a um sucessor de sua inteira confiança e provavelmente se afastar de vez da política. Com sua retirada do palco das grandes confrontações sociais, que é este continente, marcado pela violência e pela miséria, duas décadas e meia após o início do processo de descolonização, apenas três dos dez maiores líderes africanos permanecerão em cena. No Zâmbia, Kenneth David Kaunda se mantém decidido a postular novos mandatos, ele que está no poder há 19 anos. Na Costa do Marfim, Felix Houphouet-Boigny, provavelmente o mais bem-sucedido dos mitos africanos, permanece firme à testa do governo, exercido desde 1959. E finalmente no Gâmbia, David Dauda Kairaba Jauara emplaca quinze anos de gestão, sem nenhum sinal de que deseje se afastar, ou de que possa ser forçado a isso por algum eventual golpe.
Os demais, uma porção de homens brilhantes, uma geração que a despeito dos erros e distorções cometidos no exercício da máxima magistratura nacional, deixou saudades e ficou registrada na história pela tentativa de dar personalidade própria às suas respectivas nações, ou morreram, ou estão fora da vida pública, gozando das delícias de serem figuras revestidas de auras de mito, embora ainda estando vivas.
Os estudiosos da África certamente hão de convir comigo que quase todos incorreram na mesma falha de avaliação. Ao conseguirem, muitas vezes a ferro e fogo, a independência para seus respectivos países, não souberam formar uma nova geração de líderes. Fecharam suas jovens nações à experiência democrática, como se esse fosse um sistema desagregador da nacionalidade, quando em verdade seria o único caminho para que elas ganhassem viabilidade e consistência para o futuro. A vaidade e a ambição falaram mais alto do que o patriotismo. Leopold Sedar Senghor, por exemplo, que além de político foi um magnífico intelectual, criador do movimento artístico chamado "Negritude" (destinado a valorizar a cultura negra) passou o bastão a um sucessor apenas em 1 de janeiro de 1981. Isto é, após 23 longos anos de poder. Desgastou-se por isso.
Outros cinco líderes tiveram menos sorte. Ou morreram no exercício dos seus mandatos, ou foram colhidos pelos ódios e discórdias que ajudaram a semear. No primeiro caso estão sir Seretse Khama, de Botswana, morto em 1980 e Jomo Kenyata, do Quênia, falecido em 1978. No segundo, Sylvanus Olympio, no Togo, colhido pelas sangrentas disputas tribais em 1963, após somente cinco anos no poder; Patrice Lumumba, no ex-Congo Belga, atual Zaire, vítima da intervenção estrangeira na sua jovem nação, assassinado em circunstâncias até hoje não explicadas convincentemente em 1961 e Kwame Nkrumah, o caso mais cruel, deposto e exilado para a Guiné em 1972, retornando apenas num caixão para a sua querida Gana.
Nyerere, é certo, afasta-se do governo numa situação muito melhor do que seus sete companheiros de luta contra os colonizadores e que já não ocupam qualquer cargo. A grande maioria já está morta. E em certo aspecto, está também em vantagem em relação aos que ainda teimam em deter, a ferro e fogo, mandatos vitalícios. Mas se ele está por cima, seu país está em petição de miséria. A renda per capita tanzaniana é uma das mais baixas do mundo, de apenas US$ 274 anuais. A dívida externa, em contrapartida, já alcança a 51% do PNB e está nos US$ 2,5 bilhões, insuportável para os padrões africanos.
É certo que também obteve sucesso em algumas áreas. Como na educação, onde o seu país, com 21% de analfabetos, é um dos mais alfabetizados da África. Como na distribuição de rendas, onde a despeito da miséria tanzaniana, os desníveis são pequenos. E como na distribuição de terras, que em relação a outros povos teceiromundistas, é até bem razoável. Mas a mortalidade infantil é bastante elevada. A corrupção campeia em todos os níveis da vida nacional. E os tanzanianos nunca foram chamados a opinar sobre seus próprios destinos, a não ser em pleitos plebiscitários. Ainda assim, a Tanzânia, certamente, sentirá a falta de sua mão segura, mas às vezes dura. Como os outros países sentiram e se perderam em contradições e sucessões de golpes após o afastamento de uma rara geração de líderes da velha, mas sempre jovem, África. Parece até uma sina.
(Artigo publicado na página 13, Internacional, do Correio Popular, em 5 de novembro de 1985)
Pedro J. Bondaczuk
O presidente da Tanzânia, Julius Nyerere, 24 anos após ter conduzido o seu país à independência, em 1961, vai entregar, hoje, a presidência que ocupou por quase um quarto de século a um sucessor de sua inteira confiança e provavelmente se afastar de vez da política. Com sua retirada do palco das grandes confrontações sociais, que é este continente, marcado pela violência e pela miséria, duas décadas e meia após o início do processo de descolonização, apenas três dos dez maiores líderes africanos permanecerão em cena. No Zâmbia, Kenneth David Kaunda se mantém decidido a postular novos mandatos, ele que está no poder há 19 anos. Na Costa do Marfim, Felix Houphouet-Boigny, provavelmente o mais bem-sucedido dos mitos africanos, permanece firme à testa do governo, exercido desde 1959. E finalmente no Gâmbia, David Dauda Kairaba Jauara emplaca quinze anos de gestão, sem nenhum sinal de que deseje se afastar, ou de que possa ser forçado a isso por algum eventual golpe.
Os demais, uma porção de homens brilhantes, uma geração que a despeito dos erros e distorções cometidos no exercício da máxima magistratura nacional, deixou saudades e ficou registrada na história pela tentativa de dar personalidade própria às suas respectivas nações, ou morreram, ou estão fora da vida pública, gozando das delícias de serem figuras revestidas de auras de mito, embora ainda estando vivas.
Os estudiosos da África certamente hão de convir comigo que quase todos incorreram na mesma falha de avaliação. Ao conseguirem, muitas vezes a ferro e fogo, a independência para seus respectivos países, não souberam formar uma nova geração de líderes. Fecharam suas jovens nações à experiência democrática, como se esse fosse um sistema desagregador da nacionalidade, quando em verdade seria o único caminho para que elas ganhassem viabilidade e consistência para o futuro. A vaidade e a ambição falaram mais alto do que o patriotismo. Leopold Sedar Senghor, por exemplo, que além de político foi um magnífico intelectual, criador do movimento artístico chamado "Negritude" (destinado a valorizar a cultura negra) passou o bastão a um sucessor apenas em 1 de janeiro de 1981. Isto é, após 23 longos anos de poder. Desgastou-se por isso.
Outros cinco líderes tiveram menos sorte. Ou morreram no exercício dos seus mandatos, ou foram colhidos pelos ódios e discórdias que ajudaram a semear. No primeiro caso estão sir Seretse Khama, de Botswana, morto em 1980 e Jomo Kenyata, do Quênia, falecido em 1978. No segundo, Sylvanus Olympio, no Togo, colhido pelas sangrentas disputas tribais em 1963, após somente cinco anos no poder; Patrice Lumumba, no ex-Congo Belga, atual Zaire, vítima da intervenção estrangeira na sua jovem nação, assassinado em circunstâncias até hoje não explicadas convincentemente em 1961 e Kwame Nkrumah, o caso mais cruel, deposto e exilado para a Guiné em 1972, retornando apenas num caixão para a sua querida Gana.
Nyerere, é certo, afasta-se do governo numa situação muito melhor do que seus sete companheiros de luta contra os colonizadores e que já não ocupam qualquer cargo. A grande maioria já está morta. E em certo aspecto, está também em vantagem em relação aos que ainda teimam em deter, a ferro e fogo, mandatos vitalícios. Mas se ele está por cima, seu país está em petição de miséria. A renda per capita tanzaniana é uma das mais baixas do mundo, de apenas US$ 274 anuais. A dívida externa, em contrapartida, já alcança a 51% do PNB e está nos US$ 2,5 bilhões, insuportável para os padrões africanos.
É certo que também obteve sucesso em algumas áreas. Como na educação, onde o seu país, com 21% de analfabetos, é um dos mais alfabetizados da África. Como na distribuição de rendas, onde a despeito da miséria tanzaniana, os desníveis são pequenos. E como na distribuição de terras, que em relação a outros povos teceiromundistas, é até bem razoável. Mas a mortalidade infantil é bastante elevada. A corrupção campeia em todos os níveis da vida nacional. E os tanzanianos nunca foram chamados a opinar sobre seus próprios destinos, a não ser em pleitos plebiscitários. Ainda assim, a Tanzânia, certamente, sentirá a falta de sua mão segura, mas às vezes dura. Como os outros países sentiram e se perderam em contradições e sucessões de golpes após o afastamento de uma rara geração de líderes da velha, mas sempre jovem, África. Parece até uma sina.
(Artigo publicado na página 13, Internacional, do Correio Popular, em 5 de novembro de 1985)
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