Precursor da ficção científica
Pedro J. Bondaczuk
Gosto de ficção científica. São histórias que me atraem, sobretudo, por misturarem conhecimentos reais – de física, química, biologia e astronomia, por exemplo – com a mera imaginação do escritor, que faz todo o tipo de extrapolações possíveis e imagináveis e torna o impossível em absoluta possibilidade, quase certeza. Sou leitor compulsivo desse tipo de literatura. E, liminarmente, considero os livros de Isaac Asimov os melhores desse tipo.
Agora, porém, faço-lhes um desafio. Vocês sabem quem foi, no Brasil, o precursor das histórias de ficção científica? Forcem a memória, façam um exercício de imaginação e depois me respondam. Ah, ainda não conseguiram sequer imaginar quem foi? Pois lhes informo: foi Machado de Assis! Sim, senhores, não se espantem. Foi, mesmo, o nosso querido “Bruxo do Cosme Velho”.
Vocês não se lembram de nenhuma história do gênero escrita por ele? É que talvez desconheçam seu conto “O Imortal” – escrito em pleno meado do século XIX – ou, se o leram, não conseguiram estabelecer relação entre esse picante (e inteligente) enredo e a ficção científica.
Essa é outra demonstração, outra prova – como se ainda fosse preciso provar qualquer coisa quando se trata de Machado de Assis – da genialidade do nosso mais completo e maior escritor de todos os tempos. Não sei se devo classificá-lo de gênio ou de mágico. Na dúvida, classifico-o em ambas categorias. E que me desmintam os puristas.
Cabe, aqui, um esclarecimento. O que caracteriza a ficção científica não são apenas histórias que se passem num futuro avançadíssimo no tempo, em séculos ou milênios à frente, e nem que se refiram ao espaço, a outros planetas e a seus hipotéticos extraterrestres inteligentes e que mantenham contatos (amistosos ou conflituosos, não importa) com os humanos. Pode, por exemplo, abordar o passado também, desde que una conhecimentos científicos reais com ficção, com coisas inventadas por alguma mente fértil. Pois é o que Machado de Assis faz em “O Imortal”.
Quem ainda não leu esse conto, leia e quem leu, faça uma cuidadosa releitura. Não vou reproduzir o enredo, óbvio (até para não fazer o papel de estraga prazer), mas irei me limitar a dar algumas indicações a respeito.
A história começa com o médico homeopata, Dr. Leão, que recém havia trazido essa ciência (que muitos contestam como tal e outros, como eu, têm verdadeira fascinação por ela) para o Brasil e dava consultas e fazia tratamentos no Rio de Janeiro, sede, então, da Corte. O ilustre cientista (para muitos, mero empulhador), narra as peripécias de seu pai, Rui Garcia de Meireles e Castro Azevedo de Leão.
Ele estava na casa do Coronel Bertioga e tinha, como outro ouvinte (e testemunha) o tabelião do vilarejo, João Linhares. O local? O próprio Machado o identifica, ou melhor, deixa de identificá-lo: “A vila era na província fluminense, suponhamos, Itaboraí ou Sapucaia”. A época da narrativa? Ano de 1855, “uma noite de novembro, escura como breu, quente como um forno, passante de nove horas”.
O Dr. Leão começa sua “revelação” dizendo que seu pai nasceu em 1600. O tabelião João Linhares corrige-o, dizendo que ele deve ter se enganado e que o ano de nascimento seria 1800. O interlocutor, porém, insiste e garante que foi mesmo em 1600. E depois informa que seu pai havia descoberto, por acaso, a “fórmula” da imortalidade.
Antes, diz que o “imortal” Rui Leão nasceu no Recife. E enfatiza que foi em 1600. Afirma que ele estava num convento, quando os holandeses conquistaram a atual capital pernambucana. Como fosse bom cozinheiro, agrada os conquistadores com sua culinária e estes dão-lhe a liberdade.
Nosso personagem (ou melhor, o do Dr. Leão, ou melhor ainda, o de Machado de Assis), ao cabo de algumas peripécias, refugia-se numa aldeia indígena. Ali, faz-se amigo do cacique Pirajuá, que lhe dá a filha Maracujá por esposa. Narra, na seqüência, suas aventuras entre os índios e desvenda, nesse ponto, como Rui teve acesso ao segredo da imortalidade. Vai direto ao ponto.
Conta que o cacique, pressentido a morte, desenterra um vaso que continha um elixir que, se bebido, faria com que a pessoa não só não morresse nunca, como também não envelhecesse. O aventureiro, em princípio, não acredita no cacique, que morreu na seqüência. “Por que ele não se valeu da mistura para sobrevir”?, indaga antes da morte do índio. Este justifica-se dizendo que estava “cansado de viver”.
Rui esquece-se, por um bom tempo, do preparado, até que um dia adoece. E a doença era tão grave, que o indigitado aventureiro estava às portas da morte. É quando se lembra do elixir. Resolve tomá-lo, pois não tinha nada a perder, mas toma apenas a metade do conteúdo. Miraculosamente se cura.
Na seqüência, o Dr. Leão narra uma série de peripécias, que abrangem mais de dois séculos de vida do seu pai “imortal”. Ele não somente não sentia a proximidade da morte, como ainda não envelhecia. Mantinha o porte e o vigor dos 40 anos, mesmo estando com 200.
Depois de muitas aventuras, perdas, traições e decepções de toda a sorte, Rui se enjoa de viver. Quer a morte, anseia pela morte, suplica a morte, em vão. É imortal. Tenta várias vezes o suicídio, mas as feridas, que para seres humanos normais seriam fatais, não lhe causam maiores danos. Um dia, lembra-se do elixir, do qual havia tomado apenas a metade. Resolve, então, beber o resto e....Morre. Afinal, pelo princípio básico da homeopatia, de que para curar determinada doença é necessário valer-se da mesma coisa que a causa, o elixir da imortalidade resulta na sua morte.
Um enredo desses só poderia passar, mesmo, pela cabeça de um gênio (ou de um maluco?) como o “Bruxo do Cosme Velho”. E queiram ou não os puristas, é uma legítima história de ficção científica, dessas de nos tirar o fôlego. De quebra, Machado de Assis planta uma dúvida no espírito do leitor: o Dr. Leão é um tremendo mentiroso, desses bem criativos e caras pau que mentem sem sequer ficarem vermelhos, ou um precursor dos marqueteiros de hoje, fazendo instigante e eficaz propaganda da homeopatia? E vocês, o que acham?
O Bruxo do Cosme Velho deve, ele mesmo, ter tomado o elixir da imortalidade que o cacique Pirajuá deu ao aventureiro Rui. E vários escritores continuam tomando, posto que a conta-gotas, o tal preparado até hoje. Afinal, não se tornou “imortal”? Não fundou a Academia Brasileira de Letras, que confere “imortalidade” (embora apenas do nome e da obra) aos que são eleitos para essa augusta casa? Pois então!!!
Acompanhe-me no twitter: @bondaczuk
Pedro J. Bondaczuk
Gosto de ficção científica. São histórias que me atraem, sobretudo, por misturarem conhecimentos reais – de física, química, biologia e astronomia, por exemplo – com a mera imaginação do escritor, que faz todo o tipo de extrapolações possíveis e imagináveis e torna o impossível em absoluta possibilidade, quase certeza. Sou leitor compulsivo desse tipo de literatura. E, liminarmente, considero os livros de Isaac Asimov os melhores desse tipo.
Agora, porém, faço-lhes um desafio. Vocês sabem quem foi, no Brasil, o precursor das histórias de ficção científica? Forcem a memória, façam um exercício de imaginação e depois me respondam. Ah, ainda não conseguiram sequer imaginar quem foi? Pois lhes informo: foi Machado de Assis! Sim, senhores, não se espantem. Foi, mesmo, o nosso querido “Bruxo do Cosme Velho”.
Vocês não se lembram de nenhuma história do gênero escrita por ele? É que talvez desconheçam seu conto “O Imortal” – escrito em pleno meado do século XIX – ou, se o leram, não conseguiram estabelecer relação entre esse picante (e inteligente) enredo e a ficção científica.
Essa é outra demonstração, outra prova – como se ainda fosse preciso provar qualquer coisa quando se trata de Machado de Assis – da genialidade do nosso mais completo e maior escritor de todos os tempos. Não sei se devo classificá-lo de gênio ou de mágico. Na dúvida, classifico-o em ambas categorias. E que me desmintam os puristas.
Cabe, aqui, um esclarecimento. O que caracteriza a ficção científica não são apenas histórias que se passem num futuro avançadíssimo no tempo, em séculos ou milênios à frente, e nem que se refiram ao espaço, a outros planetas e a seus hipotéticos extraterrestres inteligentes e que mantenham contatos (amistosos ou conflituosos, não importa) com os humanos. Pode, por exemplo, abordar o passado também, desde que una conhecimentos científicos reais com ficção, com coisas inventadas por alguma mente fértil. Pois é o que Machado de Assis faz em “O Imortal”.
Quem ainda não leu esse conto, leia e quem leu, faça uma cuidadosa releitura. Não vou reproduzir o enredo, óbvio (até para não fazer o papel de estraga prazer), mas irei me limitar a dar algumas indicações a respeito.
A história começa com o médico homeopata, Dr. Leão, que recém havia trazido essa ciência (que muitos contestam como tal e outros, como eu, têm verdadeira fascinação por ela) para o Brasil e dava consultas e fazia tratamentos no Rio de Janeiro, sede, então, da Corte. O ilustre cientista (para muitos, mero empulhador), narra as peripécias de seu pai, Rui Garcia de Meireles e Castro Azevedo de Leão.
Ele estava na casa do Coronel Bertioga e tinha, como outro ouvinte (e testemunha) o tabelião do vilarejo, João Linhares. O local? O próprio Machado o identifica, ou melhor, deixa de identificá-lo: “A vila era na província fluminense, suponhamos, Itaboraí ou Sapucaia”. A época da narrativa? Ano de 1855, “uma noite de novembro, escura como breu, quente como um forno, passante de nove horas”.
O Dr. Leão começa sua “revelação” dizendo que seu pai nasceu em 1600. O tabelião João Linhares corrige-o, dizendo que ele deve ter se enganado e que o ano de nascimento seria 1800. O interlocutor, porém, insiste e garante que foi mesmo em 1600. E depois informa que seu pai havia descoberto, por acaso, a “fórmula” da imortalidade.
Antes, diz que o “imortal” Rui Leão nasceu no Recife. E enfatiza que foi em 1600. Afirma que ele estava num convento, quando os holandeses conquistaram a atual capital pernambucana. Como fosse bom cozinheiro, agrada os conquistadores com sua culinária e estes dão-lhe a liberdade.
Nosso personagem (ou melhor, o do Dr. Leão, ou melhor ainda, o de Machado de Assis), ao cabo de algumas peripécias, refugia-se numa aldeia indígena. Ali, faz-se amigo do cacique Pirajuá, que lhe dá a filha Maracujá por esposa. Narra, na seqüência, suas aventuras entre os índios e desvenda, nesse ponto, como Rui teve acesso ao segredo da imortalidade. Vai direto ao ponto.
Conta que o cacique, pressentido a morte, desenterra um vaso que continha um elixir que, se bebido, faria com que a pessoa não só não morresse nunca, como também não envelhecesse. O aventureiro, em princípio, não acredita no cacique, que morreu na seqüência. “Por que ele não se valeu da mistura para sobrevir”?, indaga antes da morte do índio. Este justifica-se dizendo que estava “cansado de viver”.
Rui esquece-se, por um bom tempo, do preparado, até que um dia adoece. E a doença era tão grave, que o indigitado aventureiro estava às portas da morte. É quando se lembra do elixir. Resolve tomá-lo, pois não tinha nada a perder, mas toma apenas a metade do conteúdo. Miraculosamente se cura.
Na seqüência, o Dr. Leão narra uma série de peripécias, que abrangem mais de dois séculos de vida do seu pai “imortal”. Ele não somente não sentia a proximidade da morte, como ainda não envelhecia. Mantinha o porte e o vigor dos 40 anos, mesmo estando com 200.
Depois de muitas aventuras, perdas, traições e decepções de toda a sorte, Rui se enjoa de viver. Quer a morte, anseia pela morte, suplica a morte, em vão. É imortal. Tenta várias vezes o suicídio, mas as feridas, que para seres humanos normais seriam fatais, não lhe causam maiores danos. Um dia, lembra-se do elixir, do qual havia tomado apenas a metade. Resolve, então, beber o resto e....Morre. Afinal, pelo princípio básico da homeopatia, de que para curar determinada doença é necessário valer-se da mesma coisa que a causa, o elixir da imortalidade resulta na sua morte.
Um enredo desses só poderia passar, mesmo, pela cabeça de um gênio (ou de um maluco?) como o “Bruxo do Cosme Velho”. E queiram ou não os puristas, é uma legítima história de ficção científica, dessas de nos tirar o fôlego. De quebra, Machado de Assis planta uma dúvida no espírito do leitor: o Dr. Leão é um tremendo mentiroso, desses bem criativos e caras pau que mentem sem sequer ficarem vermelhos, ou um precursor dos marqueteiros de hoje, fazendo instigante e eficaz propaganda da homeopatia? E vocês, o que acham?
O Bruxo do Cosme Velho deve, ele mesmo, ter tomado o elixir da imortalidade que o cacique Pirajuá deu ao aventureiro Rui. E vários escritores continuam tomando, posto que a conta-gotas, o tal preparado até hoje. Afinal, não se tornou “imortal”? Não fundou a Academia Brasileira de Letras, que confere “imortalidade” (embora apenas do nome e da obra) aos que são eleitos para essa augusta casa? Pois então!!!
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