Sunday, January 23, 2011




Papéis do escritor

Pedro J. Bondaczuk

O escritor tem vários papeis na sociedade contemporânea (como, ademais, sempre teve nas que a precederam) a que sequer se dá conta. Um deles, é o de guardião do idioma do seu país. Como cumprir essa função é óbvio e a maioria a cumpre com razoável zelo e competência. É utilizando-o com clareza e precisão e sempre respeitando todas as suas regras, quer as semânticas, quer as gramaticais.

Outro papel do escritor, e este muito mais complexo e abrangente, é o de divulgar e consolidar valores duramente conquistados ao longo de milênios pela humanidade – como justiça, respeito, lealdade, honra, fidelidade, amor, amizade e solidariedade, entre outros – resgatando os que estiverem em risco de desaparecer (e muitos deles estão) e ampliando os demais, impedindo que se “esclerosem”, que se transformem em mera retórica, em simples palavras, despidas de vida e conteúdo.

Roger William Riis lembra que "somente nós, entre as coisas vivas, descobrimos a Beleza, a amamos e criamo-la para os nossos olhos e para os nossos ouvidos". Nessa mesma linha de raciocínio, o autor teatral Thornton Wilder, na peça "Our Town" (Nossa Cidade), coloca na boca de um personagem: "Oh, Terra, és maravilhosa demais para que alguém te perceba. Acaso os seres humanos têm consciência da vida enquanto vivem? Da vida em todos os seus minutos?". Certamente que não têm. O ideal de beleza, de cultura, de harmonia e de inteligência plena tem que ser, igualmente, cultivado no dia-a-dia, por sua transcendência e importância, sob pena de retroagirmos à barbárie. E ninguém tem melhores condições de fazer isso do que o escritor.

Claro que há formas e formas de fazer isso. Em alguns casos, por exemplo, abordagens diretas e lógicas sobre cultivo de valores funcionam, mas nem sempre. Há quem considere esse tipo de procedimento maçante, pedante e chato. Para não ter tais características, o escritor tem que se valer do seu talento de comunicação, para tornar o tema interessante e atrativo. Esse assunto requer abordagens inteligentes, diria “estratégicas”, como num campo de batalha. As palavras soam, via de regra, ambíguas, e é preciso cuidado, rigor e bom-senso na sua utilização.

Muitas vezes, por exemplo, na criação de um personagem forte, virtuoso ou absolutamente despido de virtudes e de ética (rigorosamente imoral) transmitimos, ou temos condições de transmitir, muito mais ensinamentos, de forma subreptícia e apenas implícita, do que explicitando o discurso. Caso consigamos emocionar o leitor com atos de nobreza acima do usual praticados pelo protagonista da história que criamos (e narramos), transmitiremos com maior eficácia a mensagem da importância dos valores da civilização. Podemos, ademais, fazer o mesmo despertando-lhe repulsa pelas atitudes do vilão. Para tanto, todavia, nosso enredo terá que ser natural, espontâneo e, principalmente, verossímil.

Milan Kundera, em seu livro “A Imortalidade”, cita um comportamento curioso, que eu já havia observado (até em mim mesmo), mas que me sentia relutante em abordar. Receava ser considerado “ridículo” se o mencionasse, embora tivesse convicção de não me enganar nessa observação. O escritor checo constatou, em determinado trecho: “Existe apenas uma coisa que todos desejamos: que o mundo inteiro nos considere grandes pecadores! Que os nossos vícios sejam comparados aos temporais, às tempestades, aos furacões!”. Em contrapartida, parecemos nos envergonhar das nossas virtudes (se as tivermos, claro), dos valores que absorvemos, cultivamos e praticamos, com receio de sermos considerados covardes, medrosos, fracos, tíbios ou sabe-se lá mais o quê.

Mais adiante, Kundera acrescenta: “Cada um de nós deseja transgredir as convenções, os tabus eróticos, e entrar com embriaguez no reino do Proibido. Mas nos falta tanta audácia”. Por que desse desejo pelo interdito, embora secreto, tão secreto que não o admitimos nem a nós mesmos?

A prática nos mostra que os valores referidos antes – justiça, respeito, lealdade, honra, fidelidade, amor, amizade e solidariedade – de fato funcionam como pilares da civilização e do relacionamento sadio entre pessoas, grupos sociais e nações. Caso contrário... não teriam sobrevivido ao tempo e ao esquecimento.

O que ocorre com eles então? Acontece que os que deveriam transmiti-los não o fazem com perícia e sabedoria. Apelam para maçantes “sermões”, tratam a respeito com arrogância e pedantismo e, com isso, repelem os leitores. Fazem com que seu público-alvo, mesmo que inconscientemente, sinta desejos de violá-los, derrubá-los, aniquilá-los, querendo (mesmo que não fazendo) transgredir esses valores, como se fossem coisas muito ruins, mas sem os quais a civilização não se sustentaria por nem mais um dia sequer.

A educação, valor básico do homem, está em crise. Cristalizada em dogmas, não acompanha a evolução da humanidade – da passagem de uma sociedade industrial para outra de informação, por exemplo. Não satisfaz, portanto, as necessidades sociais, em um mundo assoberbado por novas questões e crescentes problemas. O fenômeno ocorre tanto no Ocidente, quanto no Oriente. Verifica-se quer em países altamente evoluídos política, econômica, social e tecnologicamente, quer em Estados carentes, até inviáveis (nestes, logicamente, de forma mais intensa).

É necessário exigir o seu resgate, com um enfoque mais ético e humanístico. E não somente exigir, mas trabalhar nesse sentido. O escritor, com seu poder de comunicação, com sua capacidade de convencimento e criatividade e, em suma, com seu talento, tem condições de ser esse agente resgatador. Desde que queira, logicamente. Pense nisso.

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