Escudo vulnerável
Pedro J. Bondaczuk
A Literatura surge, na vida de muita gente, meio que por acaso. Nem todos os escritores manifestam vocação para as letras precocemente, desde tenra idade. Aliás, diria, estes casos são mais exceções do que propriamente a regra. Boa parte começa a escrever sem nenhum compromisso, como uma espécie de desabafo íntimo e pessoal, de catarse, para, senão se livrar, pelo menos atenuar mágoas familiares, decepções amorosas, fracassos profissionais ou outros tipos de sofrimentos psicológicos.
Escrever, sem dúvida, é excelente terapia. Quem começa a produzir textos com essa intenção não raro descobre (por si só ou por opinião alheia) que consegue expressar com clareza e precisão idéias e observações e comunicar aos outros o que está sentindo, aprendendo ou pensando. Nem todos, convenhamos, que começam a escrever por essa razão, se tornam escritores.
Há muito literato em potencial por aí que sequer desconfia disso. Há quem componha poemas maravilhosos, para a namorada, para a esposa, para alguma bela mulher que sequer conheça e que nem por isso se julga poeta, mesmo sendo, de fato, um. Para alguns, falta, apenas, um empurrãozinho, um incentivo a mais dos parentes e amigos e, não raro, uma orientação a propósito de quem já é do ramo.
Tenho a felicidade de, ao longo da minha já extensa carreira (são 48 anos de janela!) haver “descoberto” para o mundo das letras vários desses inequívocos talentos. Muitos deles são, hoje, escritores consagrados (há, até, quem já ocupe cadeira em uma das tantas academias de letras). Se alguém lhes dissesse, há alguns anos, que um dia viriam a se tornar poetas acatados, romancistas de mão cheia, campeões de vendas de livros, certamente se mostrariam céticos e até poderiam se zangar conosco. São estranhos os caminhos da vida.
Claro que para se tornar um escritor, de fato, não basta o sujeito rabiscar seus íntimos desabafos, ou num diário, ou num blog, ou num caderno destinado a esse fim. São necessários vários e vários outros requisitos. Entre estes, destaco muito estudo, muita observação, muito treino; muito escrever, rasgar, tornar a escrever, tornar a rasgar e repetir esse exercício uma infinidade de vezes, até produzir um texto que lhe agrade em primeiro lugar, condição primária para adquirir possibilidade de agradar a terceiros.
Cesare Pavese costumava dizer que “a literatura é uma defesa contra as ofensas da vida”. Mas será que defende mesmo? É, de fato, escudo seguro contra as inúmeras rasteiras materiais, espirituais, afetivas e emocionais etc. que sofremos amiúde em nosso cotidiano? Protege-nos dos nossos demônios interiores ou os assanha e os torna mais perversos?
Sou, pois, obrigado a discordar, solenemente, do ilustre jornalista e poeta italiano. A Literatura pode até se tratar de escudo. Mas de um sumamente vulnerável, que deixa passarem flechas e mais flechas, sobretudo as mais pontiagudas e rígidas, que findam por nos ferir, posto que não mortalmente.
O bom escritor, o que faz escola, cujos livros são procurados avidamente, que tem um número incontável de fiéis leitores e se destaca pelo conteúdo da sua obra, é o que, virtualmente, se “desnuda” em público, que expõe suas intimidades e até suas entranhas para o mundo inteiro ver (no aspecto emocional, claro, pois se o fizesse literalmente, poderia estar sujeito até a prisão, por atentado ao pudor) e tem, nessa exposição, sua grande força, o fulcro da sua credibilidade, uma espécie de “cabelos de Sansão” que nenhuma Dalila consegue raspar.
Há quem se perca pelo excesso de pudor. Domina as técnicas do texto, tem conhecimento do idioma de fazer inveja a qualquer gramático, é objetivo, criativo e observador, sua cultura é muito maior do que a média, exsuda talento por todos os poros e, ainda assim... fracassa.
Por que? Via de regra, por não despertar a menor empatia no leitor. Este, intuitivamente detecta quando há falsidade num texto, mesmo formalmente bem-escrito. Nota quando falta-lhe paixão. Fareja quando falta sinceridade. Um texto desse tipo é bonitinho, mas ordinário, pois falta a exposição explícita das entranhas de quem o escreveu. É algo muito sutil, mas que nosso subconsciente capta.
Portanto, quem quer fazer da literatura mero escudo contra as ofensas da vida, pode se dar mal. É melhor que desista dela enquanto houver tempo. Muito talento se perde, muito diamante perfeito permanece escondido sob a ganga, muito escritor priva o mundo da sua visão e criatividade por medo (em alguns casos, pânico) de exposição.
Já li textos de Lygia Fagundes Telles, de Rachel de Queiroz e de outros tantos escritores, confessando seu temor de escrever. “Mas como?”, perguntarão, incrédulos, os que nunca passaram por essa dramática experiência Quem tem coragem de fazer essa confissão (e as escritoras citadas tiveram) explicam que aquilo que temem é justamente ter que se expor.
Mas no momento de produzirem suas obras, nem por isso fazem da literatura escudo coisa nenhuma. Expõem, sem nenhum pudor, seu âmago, sua alma, suas entranhas, suas vísceras, sem nada esconder e sem pudor, por mais que isso lhe doa. Se você não tiver essa coragem, esqueça a Literatura. Procure outra atividade em que não precise ser tão explícito e despudorado.
Pedro J. Bondaczuk
A Literatura surge, na vida de muita gente, meio que por acaso. Nem todos os escritores manifestam vocação para as letras precocemente, desde tenra idade. Aliás, diria, estes casos são mais exceções do que propriamente a regra. Boa parte começa a escrever sem nenhum compromisso, como uma espécie de desabafo íntimo e pessoal, de catarse, para, senão se livrar, pelo menos atenuar mágoas familiares, decepções amorosas, fracassos profissionais ou outros tipos de sofrimentos psicológicos.
Escrever, sem dúvida, é excelente terapia. Quem começa a produzir textos com essa intenção não raro descobre (por si só ou por opinião alheia) que consegue expressar com clareza e precisão idéias e observações e comunicar aos outros o que está sentindo, aprendendo ou pensando. Nem todos, convenhamos, que começam a escrever por essa razão, se tornam escritores.
Há muito literato em potencial por aí que sequer desconfia disso. Há quem componha poemas maravilhosos, para a namorada, para a esposa, para alguma bela mulher que sequer conheça e que nem por isso se julga poeta, mesmo sendo, de fato, um. Para alguns, falta, apenas, um empurrãozinho, um incentivo a mais dos parentes e amigos e, não raro, uma orientação a propósito de quem já é do ramo.
Tenho a felicidade de, ao longo da minha já extensa carreira (são 48 anos de janela!) haver “descoberto” para o mundo das letras vários desses inequívocos talentos. Muitos deles são, hoje, escritores consagrados (há, até, quem já ocupe cadeira em uma das tantas academias de letras). Se alguém lhes dissesse, há alguns anos, que um dia viriam a se tornar poetas acatados, romancistas de mão cheia, campeões de vendas de livros, certamente se mostrariam céticos e até poderiam se zangar conosco. São estranhos os caminhos da vida.
Claro que para se tornar um escritor, de fato, não basta o sujeito rabiscar seus íntimos desabafos, ou num diário, ou num blog, ou num caderno destinado a esse fim. São necessários vários e vários outros requisitos. Entre estes, destaco muito estudo, muita observação, muito treino; muito escrever, rasgar, tornar a escrever, tornar a rasgar e repetir esse exercício uma infinidade de vezes, até produzir um texto que lhe agrade em primeiro lugar, condição primária para adquirir possibilidade de agradar a terceiros.
Cesare Pavese costumava dizer que “a literatura é uma defesa contra as ofensas da vida”. Mas será que defende mesmo? É, de fato, escudo seguro contra as inúmeras rasteiras materiais, espirituais, afetivas e emocionais etc. que sofremos amiúde em nosso cotidiano? Protege-nos dos nossos demônios interiores ou os assanha e os torna mais perversos?
Sou, pois, obrigado a discordar, solenemente, do ilustre jornalista e poeta italiano. A Literatura pode até se tratar de escudo. Mas de um sumamente vulnerável, que deixa passarem flechas e mais flechas, sobretudo as mais pontiagudas e rígidas, que findam por nos ferir, posto que não mortalmente.
O bom escritor, o que faz escola, cujos livros são procurados avidamente, que tem um número incontável de fiéis leitores e se destaca pelo conteúdo da sua obra, é o que, virtualmente, se “desnuda” em público, que expõe suas intimidades e até suas entranhas para o mundo inteiro ver (no aspecto emocional, claro, pois se o fizesse literalmente, poderia estar sujeito até a prisão, por atentado ao pudor) e tem, nessa exposição, sua grande força, o fulcro da sua credibilidade, uma espécie de “cabelos de Sansão” que nenhuma Dalila consegue raspar.
Há quem se perca pelo excesso de pudor. Domina as técnicas do texto, tem conhecimento do idioma de fazer inveja a qualquer gramático, é objetivo, criativo e observador, sua cultura é muito maior do que a média, exsuda talento por todos os poros e, ainda assim... fracassa.
Por que? Via de regra, por não despertar a menor empatia no leitor. Este, intuitivamente detecta quando há falsidade num texto, mesmo formalmente bem-escrito. Nota quando falta-lhe paixão. Fareja quando falta sinceridade. Um texto desse tipo é bonitinho, mas ordinário, pois falta a exposição explícita das entranhas de quem o escreveu. É algo muito sutil, mas que nosso subconsciente capta.
Portanto, quem quer fazer da literatura mero escudo contra as ofensas da vida, pode se dar mal. É melhor que desista dela enquanto houver tempo. Muito talento se perde, muito diamante perfeito permanece escondido sob a ganga, muito escritor priva o mundo da sua visão e criatividade por medo (em alguns casos, pânico) de exposição.
Já li textos de Lygia Fagundes Telles, de Rachel de Queiroz e de outros tantos escritores, confessando seu temor de escrever. “Mas como?”, perguntarão, incrédulos, os que nunca passaram por essa dramática experiência Quem tem coragem de fazer essa confissão (e as escritoras citadas tiveram) explicam que aquilo que temem é justamente ter que se expor.
Mas no momento de produzirem suas obras, nem por isso fazem da literatura escudo coisa nenhuma. Expõem, sem nenhum pudor, seu âmago, sua alma, suas entranhas, suas vísceras, sem nada esconder e sem pudor, por mais que isso lhe doa. Se você não tiver essa coragem, esqueça a Literatura. Procure outra atividade em que não precise ser tão explícito e despudorado.
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