Wednesday, February 25, 2009

Hora H


Pedro J. Bondaczuk

(Conto)

- Parado aí, vagabundo! Parado, não corra senão atiro! Mãos para cima, rápido! De joelhos, vamos, de joelhos, o que está esperando?!
A primeira reação, até instintiva, de Marcelinho – pego de surpresa no estacionamento do Sambódromo do Anhembi, em São Paulo, ao final do desfile das escolas de samba paulistanas, já na manhã deste domingo, 14 de fevereiro de 1999 – foi tentar correr. Avaliou suas possibilidades de sucesso e concluiu que eram nulas. Correr, naquelas circunstâncias, não era lá muito prudente, tendo em vista a arma apontada na direção do seu peito. O melhor seria obedecer as ordens. Foi o que o rapaz fez. Virou-se, lentamente, na direção do policial e se ajoelhou, bem devagarinho, antes mostrando as mãos, para comprovar que estava desarmado.
- Deitado! Vamos, deitado de bruços! – tornou a ouvir a ordem, num tom autoritário, firme e chato, de quem não estava absolutamente para brincadeiras. Não teve outro jeito. Deitou-se de bruços, como lhe fora ordenado, com os braços voltados para as costas. O policial algemou seus pulsos e Marcelinho sentiu uma dor alucinante tão logo as algemas se fecharam.
O jovem, aparentando vinte anos de idade se tanto, moreno, cerca de 1,80 de altura, cabelos negros e compridos, olhos castanhos e de boa aparência, ainda tentou argumentar com a autoridade, na vã tentativa de se livrar da prisão:
- Policial, o senhor certamente está enganado! Não fiz nada! Só estava assistindo os desfiles! O senhor me confundiu com outra pessoa.
- Não fez nada uma porra! Há um bom tempo que estou na sua cola e da sua quadrilha de pivetes bandidinhos, seu vagabundo!
- Quadrilha, eu?! Deve haver algum engano! Não tenho quadrilha nenhuma. Sou um cidadão honesto, trabalhador...
- Cala a boca seu filho da puta, se não cubro você de porrada!
Dito isso, o policial jogou Marcelinho, como um saco de batatas, no camburão, estacionado perto de onde havia sido efetuada a prisão. Antes, contudo, revistou, meticulosamente, o suspeito.
Encontrou em seu poder uma verdadeira joalheria. Eram uns 20 relógios, a maioria importada, uma quantidade enorme de correntinhas de ouro e de prata, brincos, anéis, pulseiras, alguns jóias legítimas, outros bijuterias, de todos os tipos e valores. Estavam todos nos dois bolsos, bastante fundos, de suas calças, que iam até um pouco abaixo dos joelhos. Neles, cabia uma quantidade impressionante de objetos, principalmente se pequenos.
Marcelinho não tinha mais como negar. Fora apanhado, como se diz popularmente, com a boca na botija. Como justificar todos aqueles objetos em seu poder? Não havia jeito! Que delegado seria tão burro a ponto de acreditar em qualquer história que viesse a inventar?
Decidiu que a melhor estratégia, a partir de então, seria a de se calar e esperar o que desse. Estava consciente que, doravante, quanto menos falasse, mais seguro estaria e viveria por mais anos, possivelmente. Conhecia perfeitamente a lei tácita do silêncio, que imperava no reino da marginalidade. Se preso, tinha que assumir toda a culpa sozinho. Ai de quem não respeitasse esse código e delatasse os comparsas! Sua vida não valeria um tostão furado. Nos presídios, em todos eles, havia verdadeiros esquadrões de execução para eliminar alcagüetes. Não havia perdão para os delatores.
No fundo do camburão, que seguia rumo a alguma das tantas delegacias paulistanas, Marcelinho dizia, a si próprio, meio que em tom de ironia, o mesmo que costumava dizer às suas vítimas, quando as assaltava e essas não tinham a menor condição de reagir:
- Perdeu! Perdeu! Você perdeu!
E perdera mesmo.

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O desfile das escolas de samba paulistanas, do chamado “Grupo Especial”, foi, neste 13 de fevereiro de 1999, o maior e o mais requisitado da história do Carnaval de São Paulo ou, pelo menos, desde que o Sambódromo, projetado pelo renomado arquiteto Oscar Niemeyer, foi inaugurado, em 1991. O motivo principal foi a presença da Gaviões da Fiel, torcida organizada do Corinthians, que entrou na disputa na condição de favorita. É verdade que a tradicional Vai-vai estava de olho no bicampeonato, com chances concretas de repetir a façanha do ano anterior. E fez um desfile impecável, conquistando, se não as arquibancadas, pelo menos boa parte dos jurados.
Os corintianos, a exemplo do que faziam no estádio, com o time de futebol, incentivaram, gritaram, agitaram bandeiras, repetiram coros, cantaram o samba-enredo com inusitado entusiasmo e deram pleno apoio à sua escola. E esta não decepcionou. Não havia como a vitória não ficar entre ela e a tradicionalíssima Vai-vai. Apostas se sucediam sobre quem ficaria com o título desse ano.
Uma das decepções do desfile foi a Unidos do Peruche, da qual muito se esperava, por levar para a avenida o enredo considerado pela imprensa e pelos especialistas o mais moderno e original e o que mais possibilidades visuais dava à escola de todos: “Bill Gates, o cérebro do futuro”, de autoria de Franky Gal. Mas seu desempenho esteve longe do esperado, com vários problemas envolvendo carros-alegóricos e falhas gritantes especialmente no quesito harmonia, o que, certamente, lhe custaria a perda de preciosos pontos.
Outra que decepcionou foi a X-9 Paulistana, longe de repetir a performance do ano em que estreou entre as grandes e abocanhou o título. Já a Camisa Verde e Branco, a Rosas de Ouro e a Mocidade Alegre, apontadas na véspera como sérias concorrentes, fizeram desfiles tecnicamente perfeitos, mas ligeiramente abaixo da Gaviões e da Vai-vai.
Desfilaram, nesse ano, no “Grupo Especial”, doze escolas, e todas numa única noite, o que tornou o espetáculo um tanto monótono e cansativo e prejudicou, principalmente, as últimas a desfilar, já em plena manhã do domingo.
Apresentaram-se, nesse carnaval, no Sambódromo (cujo nome oficial é “Pólo Cultural e Esportivo Grande Otelo”, em homenagem a um dos maiores humoristas e atores de cinema e televisão do País em todos os tempos): Gaviões da Fiel, Vai-vai, Mocidade Alegre, Nenê da Vila Matilde, Camisa Verde e Branco, Rosas de Ouro, Imperador do Ipiranga, X-9 Paulistana, Leandro de Itaquera, Águias de Ouro, Unidos do Peruche e Acadêmicos do Tucuruvi.
Todas essas escolas estavam recheadas, como sempre, de personalidades dos meios artísticos, esportivos e sociais, não apenas da cidade de São Paulo, mas também de várias partes do País. Era um verdadeiro “Butantã” de cobras. Um dos grandes destaques, porém, se não o maior da noite, foi Suzana Alves, conhecida como Tiazinha, cuja característica marcante era seu visual estilo sadomasoquista, atração do “Programa H”, de Luciano Hulk, na Rede Bandeirantes de Televisão.
O Sambódromo paulistano estava superlotado, sem que sobrasse qualquer lugar a eventuais retardatários. Havia tanta gente, que muitas pessoas se aglomeravam até nas laterais da pista de desfile, atrapalhando a evolução das escolas.
Não havia, portanto, local mais propício para a atuação de ladrões, principalmente na “especialidade” de Marcelinho, que era o furto de relógios e jóias, do que essa área em dia de desfile. Seu grupo agia, normalmente, nas ruas, em especial na região da Avenida Faria Lima, na altura dos Jardins. Outro ponto que rendia muito à quadrilha era uma esquina próxima ao Shopping Iguatemi. Quando o rapaz falou aos seus chefes que pretendia ir ao Sambódromo, para ali fazer sua coleta, foi advertido dos riscos. Não deu bola. Sua teimosia e sua desmedida ambição foram a sua perdição.

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Marcelinho ficou órfão aos dez anos de idade. Perdeu os pais num acidente de ônibus, na volta de uma romaria a um santuário de Minas Gerais. Ficara, nesse dia, na casa da Vó Maria, no Jardim Ângela. Só por isso não morreu também. Não tinha outros parentes em São Paulo e por isso, esteve a pique de virar mais um sem-teto na grande cidade.
Vó Maria morava sozinha, numa casinha modesta, e se sustentava com sua parca aposentadoria de professora, que mal lhe dava para comprar os remédios de que necessitava. Ainda assim, acolheu o neto de bom grado, ciente das dificuldades que iriam passar. Para aumentar a renda, e não passarem fome, decidiu fazer as duas coisas que mais sabia, além de lecionar: confeccionar flores artificiais e fazer doces.
Marcelinho era o encarregado de vender as duas mercadorias. Sofreu muito, foi bastante humilhado, resistiu o quanto pôde à tentação para ser aviãozinho de determinado traficante, mas não saiu ileso dessa experiência. Passou a praticar pequenos furtos, o que lhe valeu três internações na FEBEM. É verdade que o máximo de tempo que ficou na instituição foi vinte dias. Era um garoto forte, ágil, esperto demais para a idade e conseguia fugir com a maior facilidade.
Vó Maria ficou horrorizada com a primeira detenção do garoto. Desabafou dizendo que além de azarado – jurava que Marcelinho havia nascido numa sexta-feira 13, em dezembro de 1980, mas na verdade esse dia caíra num sábado – agora dera para ser bandido. O garoto jurava que iria mudar. Não mudou. Passou, porém, a ter mais cuidado. Nunca mais tornou a ser detido.
Sua sorte começou a mudar quando conheceu Alfredo, ex-presidiário, de 25 anos de idade, que chefiava uma quadrilha de pivetes especializada no roubo de relógios importados, notadamente de Rolex. Garantia que esse tipo de delito não envolvia grandes riscos, principalmente se fossem respeitadas determinadas regras de segurança.
Os meninos atuavam em grupos. Um deles, o mais ágil, era o encarregado de surrupiar os relógios dos motoristas incautos. Tinha que ser rápido e bom de drible, para não ser apanhado. Depois de correr uns duzentos metros, passava o objeto a um outro parceiro, que repassava, mais à frente a um terceiro, este a um quarto e este ao quinto e último, que o entregava, finalmente, em segurança, ao Alfredo.
Cada moleque do grupo recebia R$ 20,00 por relógio. Parecia pouco, mas não era. Em dias de boa coleta, Marcelinho chegava a levar para casa até R$ 400,00. A média nunca era inferior a R$ 200,00. O que ninguém da quadrilha podia era se deixar levar pela cobiça. Tempos atrás, determinado garoto até que tentou guardar para si o produto do furto. Não se sabe como, foi descoberto. Nunca mais os colegas o viram. Meses depois, souberam que um corpo de um menino, com todas as características do desaparecido, com visíveis sinais de espancamento, fora encontrado boiando no Rio Tietê, na altura de Pirapora.
Em compensação, tudo o que os membros da quadrilha conseguissem furtar, desde que não fossem relógios, lhes era permitido ficar com os objetos. Eles os repassavam a um receptador conhecido, que morava na Lapa e que lhes pagava em torno de 10% do valor real das correntinhas, braceletes, pulseiras, anéis etc. Para os meninos, valia a pena. Raramente alguém do grupo era detido e encaminhado à FEBEM. E quando isso acontecia, menos de um mês depois, já estava de volta. Eram, porém, transferido de equipe. Alfredo comandava cinco delas, cada qual com cinco integrantes.

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Várias quadrilhas, especializadas no furto de relógios, atuavam em São Paulo. Algumas eram sumamente violentas. Como a que tinha base no município vizinho de Taboão da Serra, por exemplo, que agia, sempre, com o uso de motos. A polícia estava no seu encalço há tempos, mas nunca havia conseguido deter um só dos seus integrantes. Estes aterrorizavam as vítimas, às vezes as espancavam e até as mutilavam.
A que Marcelinho integrava não era, também, tão pacífica. A maioria dos meninos morava no Jardim Ângela e, para convencer as vítimas a lhes entregarem seus pertences, ameaçavam-nas com estiletes ou punhais. Mas jamais feriram nenhuma delas. Não, pelo menos, que Alfredo soubesse. Ele recomendava que os potenciais “doadores” de relógios fossem ameaçados, sim, mas nunca feridos.
Marcelinho, contudo, era “diferente”. Nem, mesmo ameaças fazia. Jamais portara qualquer tipo de arma, nem mesmo uma reles faca enferrujada. Falava maciamente com as vítimas e, não se sabe como, as convencia a entregar os pertences sem nenhuma reação. Talvez o seu tamanho impressionasse por si só e já fosse uma implícita ameaça.
Por causa do seu método, era conhecido nas ruas pelo apelido de “Veludo”. Os colegas, para provocá-lo, davam uma conotação um tanto diferente a esse apodo: a de maricas, ou seja, de efeminado. Sabiam, todavia, que Marcelinho não tinha nada de “mulherzinha”. Viram-no brigando algumas vezes e não queriam estar na pele dos desafetos e muito menos encará-lo. Além de uma força de touro e de uma agilidade impressionante, ele era perito na mais mortal das artes marciais: a capoeira. Quem era lutador dessa modalidade, não precisava de armas. Para quê? Os golpes que conhecia eram, talvez, mais mortais do que balas, estiletes ou punhais.
Para manter a forma e conservar, e até aprimorar, a agilidade, Marcelinho fazia exercícios físicos diários, tão ou mais puxados que o de muitos atletas de alto rendimento. Por todos os seus atributos, não tardou em se tornar a pessoa da mais estrita confiança de Alfredo. Ademais, dos 25 garotos da quadrilha, era o que dava maior rendimento, mesmo nos dias considerados muito ruins.
Há tempos, contudo, a polícia tentava prender o garoto, que se destacava dos demais tanto pelo porte físico avantajado, quanto pela boa aparência. Não tinha, como se dizia entre seus companheiros, “cara de bandido”. Paradoxalmente, era nisso que se distinguia. Podia andar, é verdade, em qualquer hora e lugar, sem preocupações, pois não despertaria suspeitas de quem quer que fosse.
Uma das raras vítimas a registrar boletim de ocorrência por furto de relógio, porém, fizera uma descrição detalhada de Marcelinho. E ela batia direitinho com as imagens feitas pelas câmeras de circuito-fechado de um dos shoppings em que ele estivera. Cópias desse retrato foram distribuídas fartamente aos policiais de várias delegacias da cidade, com a recomendação explícita de que ficassem de olho nesse “elemento” (conforme o jargão usual usado, principalmente, entre investigadores). Estava, portanto, marcado, sem que sequer desconfiasse. Nem ele e muito menos Alfredo, que era sumamente cauteloso em questões de segurança.
Um dos tormentos dos delegados de São Paulo era o fato das vítimas de roubo de relógios não registrarem queixa. Por isso, eram raríssimos os boletins de ocorrência relatando esse delito. As razões desse procedimento eram até óbvias, de tão lógicas. Os proprietários dessas jóias caríssimas eram, na maioria, pessoas de alto poder aquisitivo e de projeção social. Preferiam arcar com os prejuízos, muito altos por sinal, a se expor publicamente e atrair a atenção de bandidos ainda mais perigosos do que esses. Alguns optavam pelo anonimato pelo fato de não conseguirem explicar como adquiriam os relógios. Muitos, compravam-nos de terceiros, por um preço cinco vezes inferior ao do comércio formal, ou traziam-nos de contrabando do Paraguai ou de outros países nas viagens que faziam.

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Marcelinho sabia perfeitamente qual era o destino dos relógios que roubava e dos lucros exorbitantes que essa “indústria” do furto rendia aos verdadeiros bandidos. Os membros das quadrilhas, que arriscavam o pescoço todos os dias, por uma remuneração aparentemente atrativa, não passavam de meros “coletores” da mercadoria, pés-de-chinelo substituíveis e descartáveis. Quem ganhava, de fato, com essa atividade criminosa, eram receptadores endinheirados, à prova de qualquer suspeita (os mais requisitados eram cinco), cujos nomes Alfredo jamais revelou.
Para se ter uma pálida idéia do montante de dinheiro movimentado por esse tipo de delito, basta um só exemplo. Um grupo que atuava na área da Avenida Faria Lima foi preso, em determinada ocasião, pela polícia. Os ladrões tinham em seu poder alguns relógios das marcas Cartier, Montblanc, Victorinox e Breitting. Apenas esse pequeno lote, uma migalha do que é furtado diariamente em São Paulo, foi avaliado, por baixo, em R$ 50 mil. Só Marcelinho entregava a Alfredo, em dias propícios, 20 desses objetos, dessas mesmas quatro marcas e, principalmente, os requisitadíssimos Rolex.
Os receptadores nunca pagam mais de R$ 500,00 por peça. Vendem-nas barato, é verdade, em relação ao preço de loja. Negociam um Rolex, por exemplo, por R$ 2.000,00, ou seja, R$ 8.000,00 a menos do que o custo oficial, que é de R$ 10.000,00, dependendo do tipo.
Outra coisa que Alfredo revelou a Marcelinho foi quanto ao “mercado” em que esses relógios são vendidos. Como eles têm um número de registro, que permite seu reconhecimento, há algum tempo essas preciosidades eram negociadas fora do Brasil, especialmente na Argentina e no Uruguai. Os receptadores, portanto, não corriam nenhum risco.
Eles aprenderam, contudo, a adulterar os números de registros, assim como os que vendem carros roubados adulteram a numeração dos chassis dos automóveis. Dessa forma, hoje atrevem-se a vender os relógios em São Paulo mesmo, entre outros lugares, em diversos locais públicos, como lanchonetes de luxo, boates e shoppings.
Um único e precioso Rolex Oyster Perpetual – do mesmo modelo usado pelo James Bond de Sean Connery, com a única diferença que o do 007 tinha fundo de ouro rosa – nunca sai por menos do que R$ 10.000,00. Mesmo vendendo a R$ 2.000,00, os receptadores têm lucro total, já que não pagam um reles centavo por essa jóia, projetada em Genebra, na Suíça e feita com pulseira de aço.
Esses dados, claro, mexeram com a cabeça de Marcelinho. Ele começou a cogitar, a título de mero exercício de ficção, uma forma de, a cada 15 ou 20 relógios roubados, ficar com pelo menos um para si. Fez os cálculos e concluiu que, em menos de um ano, ficaria milionário. Então, poderia largar de vez a atividade e viver sem jamais voltar a ter problemas financeiros. Difícil seria explicar para Vó Maria de onde viria toda essa dinheirama.
Até aqui, conseguira enganar a velhinha com a fartura de dinheiro que havia, desde que conhecera Alfredo, em casa. Havia meses que Marcelinho faturava até R$ 4.000,00. Para evitar inevitáveis perguntas, que não teria como responder sem mentir, dava-lhe apenas R$ 2.000,00. E ainda assim tinha que convencer Vó Maria que metade provinha da venda de suas flores e doces (ela achava que ele ainda os vendia) e a outra metade era seu salário num emprego que arranjara.
A velhinha, posto que uma vez ou outra ficasse desconfiada, vivia feliz da vida, crente que o neto se regenerara. Não se cansava de elogiá-lo para as amigas e as vizinhas. Sonhava, até, que ele voltasse a estudar, cursasse alguma universidade e conseguisse se estabilizar de vez na vida.
Mal ela sabia que os doces, que fazia com tanto carinho e aplicação, serviam de lanche, diariamente, aos vinte e cinco meninos da quadrilha. E que as flores (algumas) eram usadas como chamariz para atrair a atenção dos motoristas incautos e assim subtrair-lhes seus preciosos Rolex.

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Marcelinho, quando se dirigiu nesse sábado ao Sambódromo, decidiu que seria neste dia que faria a sua independência. Até já sondara um belo sítio, lá para os lados de Itu, que pretendia comprar para lá se fixar com Vó Maria. Se esconderia ali pelo menos até que as coisas esfriassem entre os seus chefes (os receptadores endinheirados) quando descobrissem que ele os roubara. “Vou fazer um favor à sociedade”, pensou com ironia. “Afinal, ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão”, completou.
Já tinha tudo planejado. Nunca atuara em locais de grande aglomeração. Se algo desse errado, seriam enormes as dificuldades para fugir. Achou que estava se preocupando além da conta “Hoje vai ser moleza. Será como tomar doce das mãos de uma criança”, tentou se convencer.
Marcelinho não tinha, contudo, intenções de se regenerar, mesmo com uma fortuna nas mãos. O que pretendia era mudar de ramo. Quem sabe, montar um desmanche de automóveis. Outro dia, encontrou Panqueca por acaso e este o convenceu. Esse cara era, não faz muito, um sujeito duro, que vivia pedindo dinheiro emprestado a todo o mundo. Agora, era capaz de acender cigarro com cédula de R$ 100,00. Há dois anos, trabalhava, em sociedade, num desmanche. Tinha um baita carrão do ano, importado, vestia-se no último figurino da moda e comia as mulheres mais bonitas de São Paulo. “Se esse cara, tão burro, conseguiu, por que eu não iria conseguir?”, pensou.
O primeiro relógio que roubou, no Sambódromo, deu-lhe um frio na barriga. Escapuliu, depressa, antes que a vítima dissesse um “a”. Esperou uns trinta minutos antes de uma segunda investida. Entrou no meio de um grupo de turistas endinheirados, cujos integrantes haviam bebido todas e estavam pra lá de Marrakesh. Foi moleza.
Só ali, “colheu” mais oito relógios, além de umas vinte correntinhas, algumas pulseiras e até um colar, que parecia de pérola legítima. “Quem vem com um objeto desses, para um lugar como o Sambódromo, é porque quer ficar sem ele”, pensou. Cada objeto que surrupiava, ia colocando nos bolsos.
Tivera o cuidado de vestir calças especiais que só usava para missões consideradas difíceis. Eram largas, mas sem exagero, para permitir-lhe liberdade de movimentos, caso precisasse correr. Mandara-as fazer sob encomenda. Especialmente os bolsos, cuja fundura ia até um pouco abaixo dos joelhos, constituindo-se em “sacolas” perfeitas para carregar o que roubasse. Estava calçado com tênis de grife, bastante confortáveis, que facilitavam a corrida, caso precisasse fugir de alguém, vítima ou policial.
Marcelinho tinha a intenção de guardar os objetos furtados no seu Fusca, que estava no estacionamento do Sambódromo, a cada dez colheitas feitas. Antes fizesse isso. Não fez. As coisas estavam tão fáceis, que resolveu continuar. A intenção inicial era a de ir embora antes que começasse a amanhecer. Não foi. Foi ficando, ficando, apanhando um relógio aqui, outro ali, sem atentar para a “hora h”, em que seria seguro bater em retirada.
Esperou os desfiles da Mocidade Alegre, da Rosas de Ouro, da Vai-vai, da Gaviões da Fiel... E no intervalo entre um e outro, surrupiava mais algum relógio, ou alguma corrente, ou mesmo reles pulseira. Quando se deu conta, o dia já ia alto. Dirigiu-se, vagarosamente, com os bolsos pesados, rumo ao estacionamento. Estava feliz. Sua independência estava próxima. Foi quando o mundo desmoronou sobre a sua cabeça....
- Parado aí, vagabundo! Parado, não corra senão atiro! Mãos para cima, rápido! De joelhos, vamos, de joelhos, o que está esperando?!

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