Monday, February 23, 2009

Do milênio passado


Pedro J. Bondaczuk

Os mais jovens, se preconceituosos e néscios (nem todos são), quando querem desmerecer alguém mais idoso, com mais de trinta anos, dizem, torcendo o nariz: “Você é ultrapassado! É do século passado! Melhor, é do milênio passado!”. E nós, que temos mais de trinta (aliás, na verdade, mais de dez, abrangendo, portanto, esses mesmos jovens que dizem essas bobagens), de fato somos.
E daí? Não fomos nós que construímos esse mundo, que bem ou mal, ainda está de pé? O que herdamos daqueles que nos antecederam foi muito pior. Até doze anos antes de se expirar o século XIX, por exemplo, aqui no Brasil, era normal uma pessoa escravizar outra por causa da cor da sua pele. Era, aliás, rotina tratá-la como animal irracional – comprá-la, vendê-la, agredi-la, surrá-la etc. – e tudo isso feito com o beneplácito das leis então vigentes.
Hoje, a despeito de existir escravidão disfarçada em muitos lugares (inclusive em nosso País), a legislação prevê severas punições para quem age assim. É verdade que muitos conseguem subornar autoridades e continuar com sua torpe e covarde exploração, impunes. Mas esta é uma outra história, que fica para uma outra vez.
Nunca, em tempo algum, as pessoas dispuseram de tanto conforto e tantas facilidades, ditados pelo miraculoso avanço da tecnologia, como hoje. Transportes rápidos por terra, mar e ar; telefone celular, computadores, internet, rádio, televisão, alimentos saudáveis assegurando crescente longevidade etc.etc.etc. E quem possibilitou tudo isso? Foi essa geração, tão criticada e achincalhada, do “milênio passado”.
É certo que, a despeito da criação das Nações Unidas, que se propunha a ser um fórum democrático e justo para impedir agressões entre países e povos, guerras e “revoluções salvadoras” continuam pipocando, aqui, ali e acolá, matando milhares de pessoas, em geral inocentes e alheias às controvérsias dos poderosos (como os conflitos posteriores à desagregação da ex-Iugoslávia, as invasões norte-americanas ao Iraque, os ataques ao Afeganistão e por aí vai).
Mas nenhuma dessas insanidades sequer se aproxima dos horrores proporcionados pelas duas guerras mundiais da primeira metade do século XX (do Holocausto, por exemplo), que culminou com a maior chacina de que se tem notícia, que foram as explosões nucleares que pulverizaram as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Não foi, porém, esta geração a responsável por tamanha atrocidade.
O mundo é perfeito? Claro que não! Seria uma idiotice afirmar o contrário. Mas uma geração que mal chega à adolescência nesta primeira década do século XXI, não deve nutrir preconceitos contra a que a precedeu. Até porque, ainda nem teve tempo de dizer a que veio. Tomara que não cometa os mesmíssimos erros das que a precederam.
Não me sinto nem um pouco vexado por haver nascido no século passado ou, como queiram, no “milênio passado”. Já houve períodos piores, muito piores, na história da humanidade. O que nos compete cuidar é para que não venhamos a superar, em insânia, ganância e violência, os que hoje (justamente) tanto criticamos e tão enfaticamente condenamos.
Eduardo Galeano escreveu, no livro “Um convite ao voo”: “Milênio vai, milênio vem, a ocasião é propícia para que os oradores de inflamado verbo discursem sobre os destinos da humanidade e para que os porta-vozes da ira de Deus anunciem o fim do mundo e o aniquilamento geral, enquanto o tempo, de boca fechada, continua sua caminhada ao longo da eternidade e do mistério”.
Quem nunca ouviu, por exemplo, algum místico de ocasião, mal-informado, afirmar esta imensa bobagem: “A mil chegará, de dois mil não passará” (referindo-se ao mundo), garantindo, com ares de suprema sapiência, que essa sandice está escrita na Bíblia (não está, evidentemente)? No entanto... O novo milênio já está próximo de completar a primeira década e estamos todos aqui, vivinhos da silva.
Eduardo Galeano lembrou, ainda: “Em 1948 e em 1976, as Nações Unidas proclamaram extensas listas de direitos humanos, mas a imensa maioria da humanidade só tem o direito de ver, ouvir e calar. Que tal começarmos a exercer o jamais proclamado direito de sonhar? Que tal delirarmos um pouquinho? Vamos fixar o olhar num ponto além da infâmia para adivinhar outro mundo possível”.
É isso o que nos falta: um pouquinho de otimismo, de sonho, de delírio até, mas em sentido positivo. Não adianta, contudo, somente projetar, sonhar, delirar e tentar adivinhar outro mundo possível e melhor. É preciso agir, com sabedoria e bom-senso, para que isso aconteça.
É possível, a esta altura, nutrirmos alguma certeza, qualquer que seja, quanto ao futuro? Temo que não! Tanto a humanidade pode criar juízo e se regenerar, quanto... nem é bom pensar. Daí concordar (mais uma vez) com Eduardo Galeano quando constata: “Temos uma única certeza: no século XXI, se ainda estivermos aqui, todos nós seremos gente do século passado e, pior ainda, do milênio passado”. E como estamos (ainda) aqui... é melhor que nos conformemos.

No comments: