Wednesday, November 24, 2010




Livro perdido de Shakespeare

Pedro J. Bondaczuk

Fala-se, amiúde, em “elo perdido” que, na teoria da evolução de Charles Darwin seria aquele momento em que determinado animal, recém-adaptado à vida fora do mar, teria iniciado prolongado processo de mutação que iria redundar, milhões de anos depois, no homem. Se ele existe ou não é outra história. Creio que todos pelo menos já ouviram falar nisso.
O raro, todavia, é alguém referir-se a algum “livro perdido”. Pois isso, justamente, é, há pelo menos dois séculos e meio, motivo de controvérsia entre críticos, historiadores e outros especialistas em literatura, que se digladiam em torno da autoria de determinada obra.
Para tornar a questão ainda mais apimentada, a polêmica envolve não um escrevinhador qualquer, desses obscuros, de província, mas um gênio. Aliás, é tão genial que, qualquer relação dos melhores escritores de todos os tempos que não contiver seu nome já nascerá morta. É considerado (com inteira justiça) o “poeta nacional” da Inglaterra e os ingleses se referem a ele, carinhosamente, como “The Bard” (O Bardo). Você, certamente, já matou a charada. Nosso personagem é ninguém menos do que William Shakespeare.
Sim senhores. É ele mesmo. É esse genial dramaturgo, que nos legou uma obra densa, profunda e copiosa. Só de peças, das que se tem certeza que escreveu, são 38. Além disso, deixou-nos 154 sonetos, dois longos poemas narrativos e diversas outras poesias.
Sua obra é de estudo obrigatório em todas as escolas de países de língua inglesa, nas aulas de Literatura. Da mesma forma que no Brasil (e em Portugal), analisamos “Os Lusíadas”, de Luiz Vaz de Camões (ou, pelo menos, era analisado nos meus tempos de estudante), os livros de Shakespeare “são virados no avesso”, na Inglaterra, Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia e vai por aí afora.
Ainda assim, teme-se que boa parte da sua obra tenha se perdido. Como é possível?! Não sei. Volta e meia, aparecem novos livros, atribuídos a Shakespeare, a maioria grosseiras falsificações, que não resistem a uma análise mais artificial. Suas principais peças seguem sendo encenadas por companhias do mundo todo, amadoras ou profissionais, em praticamente todas as semanas (e não acharia exagero se me dissessem que o são todos os dias).
Quem não conhece, por exemplo, “Romeu e Julieta”? Quem não leu a peça e não assistiu à sua representação no teatro, deve ter visto sua versão cinematográfica. E se não viu, conhece, nem que for por alto, o drama desses jovens apaixonados. Esses personagens são tão conhecidos que há, até, uma sobremesa muito comum com o seu nome, envolvendo queijo e marmelada (ou goiabada, ao gosto do freguês).
Muitos de nós, certamente, vivemos a situação desse casal de apaixonados (posto que, felizmente, não com seu trágico desfecho). Quantas pessoas já não se apaixonaram por alguma garota, de família inimiga da sua? E Shakespeare tratou desse drama, tão comum, de forma majestosa, poética, verossímil e bela.
Além de “Romeu e Julieta”, sua peça mais conhecida, legou-nos preciosidades como “Hamlet” (tida pela maioria dos críticos como sua obra-prima), “Sonho de uma noite de verão”, “A tragédia de Júlio César”, “Rei Lear”, “Macbeth”, “Ricardo III”, “A megera domada”, “A comédia dos erros”, “Henry V”, “Titus Andronicus” e vai por aí afora.
Como pode, pois, o autor dessas obras tão geniais ter a autoria de algum livro contestada? Pois é, tem. Trata-se de “Double falsehood”. É de Shakespeare? Não é de Shakespeare? O especialista na obra desse gênio, Brean Hammond, acredita que pode, finalmente, pôr fim à controvérsia. Trata-se de um dos maiores peritos em obras literárias antigas e professor de Literatura da Universidade de Nottingham, na Inglaterra.
Suas conclusão, assegurando não só a autenticidade do livro, mas sua autoria, foi divulgada em 16 de março, em Londres, ao cabo de dez longos anos de análise. A matéria da Agência France Press, que nos traz essa notícia, informa: “Em 1727, Lewis Theobald, editor especializado em Shakespeare, assegurou que havia encontrado uma das três cópias de uma obra perdida do dramaturgo, intitulada ‘Double falsehood or the distrest lovers’. Os especialistas da época denunciaram a suposta falsidade negando que Shakespeare tivesse algo a ver com essa obra. Mas, segundo Brean Hammond, que se dedicou dez anos ao estudo de ‘Double falsehood’, não há nenhuma dúvida que o texto leva a marca de Shakespeare”.
Trata-se, em resumo, de uma tragicomédia que relata a rivalidade entre o malvado Henríquez e o bondoso Julio pelas belas Violante e Leonora. Muitos podem estar se perguntando: como teria acontecido o extravio dessa peça e por que ela não foi publicada na época, quando Shakespeare era vivo? Afinal, ela veio a público, apenas, um século depois da morte do dramaturgo.
As causas, convenhamos, podem ser muitas. Só eu poderia citar, sem pensar muito, umas quatro ou cinco. Quem já escreveu peça de teatro sabe que é muito fácil disso acontecer. Eu mesmo escrevi uma, para ser representada na escola em que estudava, há coisa de quarenta anos.
Durante os ensaios, várias falas tiveram que ser mudadas para facilitar a performance dos atores. O texto sofreu, pois, inúmeras rasuras. Para eventualmente publicá-lo, teria de passá-lo a limpo, pois na época eu não contava com a moleza que se tem hoje, do computador, que facilita tudo, para todo o mundo. Tinha que reescrever o texto na unha
Depois que a peça foi encenada, prometi a mim mesmo consolidar, finalmente, a redação definitiva, aquela que os atores encenaram . O tempo foi passando, o rascunho foi mudando de gaveta, e eu fui mudando de casa, de cidade, de Estado até que.... Lá um belo dia, quando me dispus a, finalmente, passá-lo a limpo, cadê?! Não o encontrei nem com reza brava. Felizmente, não sou nenhum Shakespeare. Portanto, não se perdeu nada que valesse tanto, ou que sequer tivesse algum valor, não sei. Pode ser que dentro de quarenta ou cinqüenta anos a tal peça reapareça por aí. Não pode ter acontecido o mesmo com “The Bard”? Tenho convicção que sim.


Acompanhe-me no twitter: @bondaczuk

No comments: