Monday, October 16, 2006

Cotidiano banal


O escritor travestido de jornalista (ou seria o contrário?) muitas vezes se rebela com a sua tarefa de tentar interpretar a realidade, que de tão fantástica, chega a humilhar a ficção. Comentários acerca de política e de economia não passam disso. De uma tentativa de entender o que está ocorrendo, buscando achar a verdade por entre as aparências e os discursos e entrevistas dos homens públicos, com a finalidade de fazer extrapolações, de adivinhar o que ainda não aconteceu e pode nem acontecer. Na maioria das vezes, esse exercício descamba para o masoquismo, para as previsões das mais sombrias e aterradoras que, felizmente, findam por não se concretizar. Sofre-se por nada, inutilmente.
“Eu tiro ouro do esterco de Ênio”, diz Virgílio na “Eneida”. Esse é o objetivo também do comentarista. Extrair riqueza da miséria, nobreza da canalhice, ética da imoralidade. Tirar verdade de um amontoado de mentiras, de palavras de duplo sentido, quando não sem sentido algum, e desvendar ao leitor os mistérios dos bastidores. Há instantes em que o ato de comentar esse drama sem sentido, esse enredo saído da cabeça de um autor ensandecido, que se convencionou chamar de “realidade”, enoja o escritor travestido de jornalista. (Ou seria o contrário?).
Até porque ele tem a consciência da precariedade do seu texto, da sua transitoriedade, do quanto é perecível. Pois, como constata Georges Dumézil, “as civilizações são mortais, as nações também, tudo é mortal e a longo prazo, o Sistema Solar também”. Escrever, então, sobre o quê, quando se sente aquela angústia causada pelas idéias se acotovelando no cérebro? Sei lá! Talvez sobre flores. Quiçá sobre a quaresmeira florida na rua de casa. Ou, quem sabe, sobre a descontração das crianças, brincando com seus skates ou carrinhos de rolimã.
Banalidades? “Mas o que não é banal debaixo do sol, desde o amor até o empréstimo?”, perguntou Machado de Assis, em crônica que publicou em 9 de julho de 1893. O que não é? Gilberto Amado, no livro “A chave de Salomão e outros escritos”, justifica essa opção pela banalidade. Constata: “Felizmente nem todo o mundo olha para a vida com profundeza. A maioria anda pela Terra, sem procurar saber onde vai e por que vai, sem deitar sobre a vida um só olhar onde fuzile a interrogação. Nem a vida foi criada para ser contemplada; sim para ser vivida. Para que a olhemos, é que as religiões nasceram, e que o doce véu da ilusão primeira caiu-nos sobre os olhos. Talvez porque nesta hora de esclarecimento universal o véu se esgarce, ela aparece ao homem, a espaço, com toda a nitidez, na sua horrenda inanidade”.
Banalidade? O mal, a miséria, a loucura, a corrupção, os escândalos – como o do Orçamento da União ou o das propinas dos bicheiros, para citar dois – as guerras, a violência urbana, a desagregação da família, as utopias, os sistemas, as organizações, os governos, tudo é banal. Apenas a vida, plenamente vivida, é importante, já que é única e não tem, como nos programas de televisão, um replay. É a única a fazer algum sentido.

(Capítulo do livro “Por uma nova utopia”, Pedro J. Bondaczuk, páginas 147 a 149, 1ª edição – 5 mil exemplares – fevereiro de 1998 – Editora M – São Paulo).

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