Wednesday, October 18, 2006

Confidências e inconfidências


Pedro J. Bondaczuk

Os papéis pessoais de determinados escritores – suas cartas, seus diários, suas anotações, seus bilhetes mais inocentes para a mulher, ou os filhos, ou até mesmo para as amantes (se tiverem, é claro) – são documentos preciosos, mesmo que não pareçam. Não raro revelam parte de suas personalidades, o que realmente pensavam, como se relacionavam e como agiam diante de fatos corriqueiros, aparentemente banais, do dia-a-dia.
Muita gente não dá valor a esses apontamentos, que reputo valiosos para o entendimento da obra desses mestres da literatura. Por via das dúvidas, venho deixando os meus muito bem organizados, na esperança de me tornar um escritor de peso, que desperte a curiosidade de críticos e de eventuais biógrafos sobre a minha, digamos, um tanto exótica personalidade. Caso não sirvam para nada... não haverá problemas. Os filhos, no seu devido tempo, saberão que fim dar a esses papéis.
Tenho em mãos algumas cartas escritas pelo escritor russo Fedor Dostoievsky, entre 1849 e 1880, que revelam as turbulências de sua vida e alguns traços marcantes do seu caráter. Numa delas, narra, por exemplo, ao irmão, Mikhail, como escapou, na última hora, de ser executado, quando foi preso e deportado primeiro para o campo de trabalhos forçados de Tobolsk (na fortaleza de Orenburg) e depois para o de Omsk (na Praça Semyonovich), ambos na Sibéria, onde passou, provavelmente, os quatro piores anos da sua vida.
Na ocasião da sua prisão, já era relativamente famoso, dado o sucesso da sua primeira novela, “Pobre Gente”. O motivo da punição foi seu alegado envolvimento com os socialistas. Por esse “crime”, foi julgado e condenado à morte, pena posteriormente comutada para trabalhos forçados.
A carta a que me refiro, datada de 22 de dezembro de 1849, trata, exatamente, da forma dramática com que soube da comutação da sua sentença, na última hora, diria “salvo pelo gongo”, quando já estava postado diante de um pelotão de fuzilamento à espera dos disparos fatais. Num determinado trecho, Dostoievsky escreve: “Chamavam três nomes de cada vez. Eu estava no segundo grupo, e assim não tinha mais do que um minuto de vida. Pensei em você, meu irmão, e em toda a sua família; no último momento você, apenas você, esteve em minha mente, e foi então que percebi o quanto o amo, caro irmão!”.
Tenho em mãos várias outras cartas dele, nas quais o escritor revela detalhes pessoais, faz confidências, desabafa mágoas, critica pessoas, enfim, se revela por inteiro. Numa delas, por exemplo, faz menção à sua epilepsia e atribui a doença aos sofrimentos pelos quais passou nos campos de trabalhos forçados. Em outra, tenta justificar ao irmão sua compulsão pelo jogo, que fez com que perdesse verdadeiras fortunas em vários cassinos Europa afora. Em outra, ainda, escrita para A. F. Blagonravov, modesto e obscuro médico de aldeia, mostra seu lado místico, característica atávica do povo russo.
Numa dessas correspondências, no caso a endereçada ao seu editor Katkov, Dostoievsky revela detalhes de um livro que pretendia escrever. E sabem de qual? De um dos maiores clássicos da literatura mundial de todos os tempos, “Crime e Castigo”. Nessa carta, explicou, em determinado trecho: “Trata-se do relato psicológico de um crime. A ação é tópica e se passa neste ano (no caso, 1865). Um jovem estudante de classe média baixa, que foi expulso da universidade e que vive em tremenda pobreza, sucumbe – por falta de raciocínio e por falta de convicções sólidas – a certas idéias estranhas e incompletas que flutuam no ar, e decide sair da sua miséria de uma vez por todas. Ele resolve matar uma mulher idosa, a viúva de um conselheiro titular, que empresta dinheiro a juros. A velhinha é estúpida, surda, doente e avarenta e cobra juros de judeu; ela é perversa e maltrata a vida de sua irmã mais nova, à qual trata como criada”.
Como se vê, em poucas linhas Dostoievsky resumiu a trama de uma história que seria, um dia, um dos maiores best-sellers de todos os tempos e que até hoje é lido, dissecado, comentado e estudado nas mais diversas partes do mundo. No final da mencionada carta, o escritor admite, para seu editor: “Com demasiada freqüência tenho sido obrigado a escrever textos muito fracos por ter de cumprir prazos...”. Contudo, arremata: “Mas essa história em particular vem sendo escrita sem pressa e com ardor. E eu tentarei – tomara que consiga – fazer a conclusão tão logo puder”.
Todavia, das tantas cartas que li de Dostoievsky, a que me chamou mais a atenção, pelo tom dramático e ao mesmo tempo sentimental, foi a primeira que citei, aquela escrita da prisão, em 22 de dezembro de 1849, pouco depois de ter escapado, por muito pouco, da execução por parte de um pelotão de fuzilamento. Nela, o escritor revela profundo respeito e amor pela vida (que quase perdeu na oportunidade), ao afirmar: “Mano, eu não perdi a coragem e não me sinto aniquilado. A vida é vida em qualquer parte, a vida está dentro de nós mesmos e não nas exterioridades”.
Dostoievsky encerra essa carta com estas magníficas palavras, dignas do grande escritor que se tornou: “Haverá pessoas em torno de mim e ser um homem entre homens, continuar assim perpetuamente e nunca perder a esperança, por pior que seja a situação – isso é o que a vida é, esse é o seu objetivo”. E não é mesmo?!
Certamente, voltarei, oportunamente, ao assunto, dada a riqueza de informações contida na correspondência do autor de obras-primas como o citado “Crime e Castigo”, como “Os irmãos Karamazov”, como “Os possessos”, como “Recordação da casa do mortos” e como “Os idiotas”, entre tantas preciosidades que nos legou, mantida com o irmão, com o editor Katkov, com a sobrinha Sofya e com sua segunda esposa, Ana Grigorevna Dostoievskaya, entre outros. Por hoje, no entanto, basta de inconfidências.

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