Tuesday, October 31, 2006
Cantinho da memória
Pedro J. Bondaczuk
“A beleza está em toda parte. E talvez em cada momento de nossas vidas”. Esta constatação foi feita por Jorge Luís Borges, que mesmo depois de acometido de cegueira, a vislumbrava, “com os olhos da alma”, em todo o instante e lugar. Como? Através da imaginação, capacidade ímpar, da qual todos somos dotados, e que tende a tornar belos até mesmo situações e lugares dos mais horrendos e deformados.
Ademais, a beleza não se manifesta, apenas, pelo visual. Não a detectamos “só” com os olhos. Outros sentidos nos possibilitam contato íntimo com ela. O ouvido é um deles e, convenhamos, não o mais desprezível. Longe disso. Ouçam, por exemplo, de olhos fechados, um bom poema, declamado por quem saiba lhe dar a devida ênfase. É um deleite! Ou se disponham a ouvir determinadas sinfonias, ou mesmo canções populares de reconhecida qualidade, executadas por artistas de real talento. A alma parece flutuar fora do corpo, nesses momentos de encantamento, e não raro logramos entrar até em estado de êxtase.
Para usufruirmos da beleza contida (nem sempre de forma ostensiva) em todos os momentos de nossas vidas, porém, temos que estar predispostos para o que é bom e belo. Precisamos adotar atitudes positivas, por piores que sejam as circunstâncias e as pessoas que nos rodeiem. Quando nos limitamos a temer as coisas más, sem coragem para enfrentá-las e tentar modificá-las, na verdade as potencializamos em nossa imaginação, e as tornamos maiores do que de fato são. E elas acabam por envenenar as nossas vidas.
O antídoto para isso é buscar, incansavelmente, a beleza que está por toda a parte, principalmente dentro de nós, que se faz presente em cada momento do nosso cotidiano e, não raro, em nossas recordações, guardada em algum cantinho da memória, à nossa inteira disposição. Boas lembranças tenho aos montes e devoto profunda gratidão às pessoas e circunstâncias que me proporcionaram tantos momentos de deleite, quer físicos, quer (e principalmente) estéticos e, portanto, espirituais.
Uma dessas oportunidades raras, que poucas pessoas já tiveram, foi a de conhecer, de perto, cara a cara, um dos maiores cantores líricos de todos os tempos (para mim o maior, talvez no mesmo patamar do mito Enrico Caruso), que foi o tenor italiano Beniamino Gigli.
Artista consagrado, que despertava delírio em grandes platéias do mundo todo, era, sobretudo, um homem generoso. E adorava o Brasil. Tanto que, entre 1921 e 1951, esteve por oito vezes em nosso país. E nessas ocasiões, além de se apresentar nos melhores teatros de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Manaus, cantou, também, em clubes e igrejas, notadamente da colônia italiana na capital paulista, sempre com entrada franca. Até gravou para a posteridade duas famosas canções brasileiras: “Mimosa” (de Leopoldo Froes) e o clássico do nosso cancioneiro, “Casinha pequenina”.
Tive a oportunidade de ouvir, tocar e até de receber um beijo na testa de Beniamino Gigli em sua última passagem por São Paulo, em 1951. Eu tinha, na oportunidade, apenas oito anos de idade. Era um garotinho franzino, loirinho, de vivos e inquietos olhos azuis, muito tagarela, mas marcado pela vida, ao ser acometido por uma insidiosa poliomielite dois anos antes. Minha profunda tristeza comoveu aquele excepcional artista na ocasião.
Jamais me esqueci (e nem poderia) da figura marcante daquele mito internacional, da sua nobre postura no palco e, principalmente da sua belíssima e incomparável voz de tenor. Gigli interpretou, na oportunidade, além de árias de diversas das óperas que integravam seu vasto e eclético repertório, tradicionais canções napolitanas, como “Ave Maria”, “Mamma”, “Solo per te”, “Santa Lucia”, “O sole mio”, “Non ti scordare di me” e, principalmente, a inesquecível “Parlame damore Mariu” e as duas composições brasileiras que gravaria dias depois, “Mimosa” e “Casinha Pequenina”.
Este momento de beleza e encantamento mudou, por completo, a minha vida. Determinou, acima de tudo, o meu gosto estético. Essa uma hora e meia de sonho e fantasia (diria, de intensa magia) está marcada, profundamente, de forma indelével, em minha memória, passados mais de meio século, como se houvesse ocorrido há pouco, há simples minutos.
Ao recordar desse episódio tão especial, entendo, em toda a sua plenitude, o real significado das palavras de Jorge Luís Borges quando registrou para a posteridade as palavras com que iniciei esta despretensiosa crônica: “A beleza está em toda a parte. E talvez em cada momento de nossas vidas”. Para gozá-la plenamente, basta calar-se por um momento, fechar os olhos e deixar somente o coração falar. Experimente, querido leitor!
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